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Um manifesto eco-socialista inscrito em RNA

Por Vinícius Portella

O vírus não é nem vivo nem morto, é um conjunto de instruções para sua própria replicação envolvido numa capa. Um microorganismo sem metabolismo próprio, que só consegue se reproduzir inserindo o seu material genético no núcleo de células alheias, muitas vezes maiores do que ele, co-optando suas máquinas de reprodução a produzirem suas cópias.

Um agregado intermediário entre o inorgânico e a vida, não sabemos se anterior ou posterior a ela. Sabemos que por volta de 10% do nosso genoma é composto de material virótico. Os danados estão conosco há um bom tempo.

Sua simplicidade lhe permite variar e evoluir muito rápido, desdobrando estruturas estratégicas para lidar com os sistemas de defesa dos seres que parasitam, com os quais estão tão profundamente co-configurados quanto os ambientes que ambos partilham.

De uma maneira casual, dizemos que o vírus quer se reproduzir, mas é claro que intenção é algo complicado de se projetar em um ser tão simples. Mesmo sem plano, sem coordenação superior, no momento ele emerge na forma de um alarme ressoado numa frequência comum.

Ele não fala, mas já diz muito na transmissão da sua simples mensagem de destruição pulmonar em progressão geométrica. Por onde passa ele revira a infraestrutura de produção da vida do avesso, trazendo as contradições e assimetrias pra superfície, empurrando os sistemas de saúde muito além do seu limite. É um evento natural, claro, epidemias nos acompanham desde sempre. Mas certamente não um evento externo aos nossos sistemas.

Sem nem entrar na destruição de habitat que deve ter causado a transmissão zoonótica original, o fato incontornável é que a propagação do vírus expressa nosso modo coletivo de vida, a redundância destrutiva do capitalismo e da falsa facilidade que ele criou de circulação de bens e pessoas. Toda essa brincadeira tem um custo, e a conta começou a bater na nossa porta um pouco antes do que projetávamos.

Ele demonstra, além disso, e com a sutileza de uma bigorna, a profundidade real do insosso truísmo de que estamos todos conectados, algo que é repetido até a náusea tanto por misticismos baratos quanto por publicitários cínicos, e cuja realidade massiva de logística e fluxos materiais é impossível de ser inteligida em toda sua extensão.

Nisso ele certamente é mais democrático do que a maioria dos males propagados pelo fluxo de capital, mas está longe de ser tão justo quanto alguns dizem. É claro que ele mata e matará muito mais os vulneráveis do que os privilegiados, e é claro que a quarentena é muito mais tranquila e agradável numa mansão, com as contas no débito automático. Mas o mero fato de que os ricos não estão totalmente a salvo, como geralmente estão, já deixa vários rebuliçados e histéricos. Celebridades prendendo criados no jardim e surtando sobre os sacrifícios incríveis que estão fazendo.

Sem contar os tantos que prontamente vieram a confirmar com entusiasmo e brio a dimensão literal de religião da morte do capitalismo, invocando de antemão o sacrifício patriótico de milhares de trabalhadores como um custo tranquilo diante da possibilidade de, imaginem só, perder dinheiro.

A realidade paralela dos ideólogos liberais, onde ricos produzem riqueza a partir do nada e não existe sociedade, derrete rapidinho sempre que as coisas ficam sérias. De repente você vê nos mesmos megafones corporativos de sempre todo mundo falando da atuação decisiva e central do estado, saudando pacotes trilionários de apoio e resgate, até mesmo verdadeiros hierofantes do liberalismo elogiando a presteza logística do estado chinês. Por aqui, a imprensa que defende a precarização da saúde pública e trabalhos de cuidado em geral de repente quer aplaudir enfermeiras e defender o SUS. Estavam clamando pelo teto de gastos até ontem.

Tudo o que existe é social, diriam Tarde ou Whitehead em resposta. Contrariando Margaret Thatcher. Não só na atividade humana, mas na natureza que a produziu, composta de ecologias ricas e complexas onde cada especie individuada é uma sociedade celular aninhada quimicamente em sociedades eletro-magnéticas. Nada existe sozinho, o cosmos todo está implicado em todo evento. A única cultura na historia que parece ignorar isso é o individualismo moderno. Onde só existem as vontades racionais e livres de machos competindo por recursos infinitos e escravos invisíveis.

Cada indivíduo humano é uma coletividade celular diversa onde nosso material genético geralmente não é nem maioria (dependendo do quanto teu intestino estiver cheio de merda). Somos todos colonizados por uma infinidade de bactérias, fungos e protistas, e vivemos imersos em sistemas implementados por vastas redes técnicas. A própria célula eucarionte, base de toda vida vegetal e animal, nasceu de uma simbiose entre uma bactéria e uma célula procarionte, como descobriu a bióloga Lynn Margulis. Nascemos e somos refeitos continuamente do que nos é estranho.

Nossos atos mais prosaicos de consumo tomam parte de circuitos globais de produção e predação. E todo bilionario e milionário depende integralmente do trabalho coletivo extenso da sociedade e de recursos naturais para produzir sua riqueza, admitindo ou não.

A diferença da pandemia para a emergência climática é de velocidade. Como Latour e tantos estão apontando, a pandemia está demonstrando que tanto do que se dizia que era impossível não era, de fato. Mas o fato, e é estranho ter que sequer dizer isso, é que já estávamos numa emergência. Só era uma emergência mais arrastada.

Boa parte das medidas que estão sendo sugeridas e adotadas diante da pandemia são coisas que deveriam e poderiam ser implementadas de maneira definitiva. Renda mínima universal, suspensão parcial de hipoteca e aluguel, redução de locomoção global desnecessária, soltura de presos ou interrupção parcial de prisões, uso de leitos da rede privada para o público em geral, limitação da acumulação de recursos essenciais por indivíduo. Em poucas semanas, de repente, o inimaginável se descortina como viável. Logo ali. Cadê os congressistas que não aprovaram ainda? Numa emergência, bem-entendido, a ideia de todos envolvidos é retornar à normalidade o mais rápido possível. Mas todo especialista responsável parece concordar que ninguém sabe quando essa normalidade (a delirante, delirante normalidade de ontem) vai retornar. Se é que retorna em feições reconhecíveis.

A noção ridícula de que mérito individual possa justificar a detenção de mais poder e recursos do que milhões de outros humanos deveria derreter de uma vez por todas com essa pandemia. A propriedade privada levada ao seu paroxismo grotesco de hoje é no mínimo tão ofensiva para qualquer senso de justiça quanto um rei absolutista. Se não for ainda mais bizonha (um rei absolutista era muito mais contrito pela sua corte e seus súditos do que os irmão Koch jamais foram por qualquer entidade). E o caso Jeffrey Epstein demonstrou com eloquência que as fantasias mais exageradas sobre a vida acima da lei que levam os muito endinheirados deveriam ser levadas a sério.

Se não é possível construir sociedades viáveis com tanta desigualdade, certamente não será possível enfrentar os desafios das próxima décadas com uma parcela tão grande da população global em estado progressivo de precarização e vulnerabilidade.

Diante de uma emergência, todos olham com raiva e indignação para aquele que está sentado numa pilha de recursos essenciais sem dividir. E com razão. Mas este já era o mundo em 2019, em ritmo um pouco mais ralentado. Bilionários sentados nos seus poderes literalmente estratosféricos enquanto a maioria das pessoas no mundo se mata para sobreviver em ambientes inóspitos. A terra sendo destruida na voracidade alucinante de um ciclo técnico global de servidão para refrigerar e providenciar a energia e a carne para esse banquete demente de um punhado de milhares de pessoas. E aqui não importa em absolutamente nada a ideologia de cada um deles, para quem eles doam migalhas ou que institutos bacanas eles criam. Todo bilionário consome mais energia do que pequenas cidades inteiras, e é, por isso mesmo, uma patologia social ambulante. (E multimilionários não estão, é claro, tão longe disso).

A emergência já estava aí, no retrovisor, a única diferença é que agora ela está fungando nosso proverbial cangote. O desaceleramento radical do mundo e a redistribuição massiva e global de recursos precisa acontecer imediatamente.

Stamatia Portanova propõe que um vírus seja pensado como provindo de uma temporalidade não-linear que defasa o nosso corpo em relação a ele próprio. Um agregado rítmico infra-vivo que se incorporou às nossas redes de fluxo, e botou o arrogante Homo Sapiens de joelhos em poucos meses. Aprender a ouvir polifonia multi-específica, como sugere Juliana Fausto, significa também aceder aos termos de uma trama polirítmica.

Vivemos entremetidos em durações diversas, ao mesmo tempo que arrastados por uma mesma cadência brutal e estereotípica, uma linha do tempo corporativa de quatro ou cinco empresas que parece acelerar o mundo em direção ao abismo. Retidos na cadência traumática do passado e protensos pelo irrompimento contingente do futuro, que parece, embora não esteja, já fatalmente contido e implicado nas decisões feitas por machos brancos há muito tempo atrás.

O novo pode muito bem vir agora do que se afigura como antiquíssimo, mesmo pré-histórico. O progresso é uma rampa instalada diante de um abismo. A modernidade capitalista é uma aceleração e uma sincronização global progressiva que vem incorporando desde a invasão da América cada vez mais e mais elementos na sua sinergia de fluxos. O curioso é que essa sincronização progressiva também criou, a partir desse milênio, a possibilidade técnica de uma revolução simultânea global.

Não estou dizendo que algo do tipo vá acontecer tão cedo. Claro que não vai. Mas não deixa de ser curioso que a revolta contra concentração de renda esteja subindo no mundo todo ao mesmo tempo em que se encontra implementada, pela primeira vez na história, a possibilidade técnica de um contágio de revolta sincrônica se alastrar com rapidez pelo mundo. Quando a pandemia acabar, é hora de destruir o dinheiro fictício dos bilionários de uma vez por todas e trazer a redistribuição imediata por qualquer meio que seja necessário. O poder deles é exatamente tão sólido quanto era o de um rei, como diz Ursula le Guin. Camadas adicionais de abtração não vão salvá-los. Não mais.

Yuk Hui diz que uma solidariedade concreta precisa emergir de uma futura co-imunologia, abandonando as solidariedades abstratas de estado-nação.Eu sei que soa muito distante, é muito distante. Mas precisa ser imaginado. Precisa ser imaginado de maneira implementável. E precisa ser imaginado agora.

Claro que não é nada provável, o provável é um recrudescimento dos nacionalismos, aceleração alucinante da miséria e da desigualdade. Pisar no acelerador para terminar com essa bagaceira logo. Trump e Bozo reeleitos sobre uma multidão de corpos. Beber agrotóxico no gute-gute, afundar navio de refugiado e mandar os escravos pra morrer de peste nos moinhos, antes que o mar venha nos engolir.

Cabe a nós, no meio do incêndio, mostrar que os rostos de quem pede a volta da normalidade estão derretendo. Tentar onde e como for possível transformar a figura puída e gasta do apocalipse no seu significado literal de revelação.

A alternativa à redistribuição e desaceleramento é, na melhor das hipóteses, uma tentativa ilusória de retorno lento, difícil e doloroso a uma normalidade que já era, no fundo, insustentável. Não existe retorno, existe mudança radical ou aceleração final rumo ao precipício. Ou seja. É a nossa hora de dizer, com a fatalidade de um oncologista, e só um pouco de ironia: não há alternativa.

Artigo publicado originalmente no Medium.

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