Já tinha me cansado de escrever sobre essas coisas. Já tanto critiquei a cultura prêt-à-porter e estandardizada (e simplificada) que acho que perdi a batalha.
Mas tive uma recaída. Confesso.
Portanto, ao trabalho.
O Brasil é o locus privilegiado para pesquisas de comportamento e espertezas. Hugo Mercier escreveu Not Born Yesterday, para explicar o modo pelo qual acreditamos em algumas coisas. Temos as crenças reflexivas e intuitivas, diz ele. As segundas não testamos, como por exemplo, acreditar que Newton era um farsante… você não vai se atirar do décimo andar para ver se você está certo e Newton, errado. Mercier é otimista. Diz que, com o tempo, melhoramos. Criamos heurísticas mínimas para nos livrar das tentações dos “espertos” (com s). Por isso o título do livro.
Já escrevi sobre o livro de Mercier e penso que sou mais pessimista. Ele diz que já não nasce um trouxa a cada 30 segundos. Bom, penso que sim. Mas também nascem os espertos de forma proporcional.
No direito há uma proliferação de livros e “métodos” para encurtar caminho. Tipo autoajuda. Jus autoajuda. Depois dos resumos, vieram os resumos dos resumos. Os resumões. E os livros desenhados, mastigados, tuitados… A imaginação é fértil. E a cada dia surgem novos justiktokers (os nomes gamers do direito) — nova raça de jus mágicos que vendem facilidades. Além disso tem os “performancers” do direito. Alta performance.
Mas para essa gente toda sobreviver, há que ter os consumidores. E esses, como dizia o filósofo Tonto para seu amigo Zorro, “são muitos”.
Antigamente, antes dessa pós-modernidade denunciada por Kundera e Umberto Eco, existiam os manuais e compêndios. Eles eram mais modestos. Diziam apenas platitudes e usavam Caio e Ticio e Mévio, tábuas e barcos, veneno para xifópagos e exemplos de caçadores que atiravam em gaiatos disfarçados de servos para explicar erro de tipo. Até era divertido. Dizia-se que agressão atual é a que estava acontecendo… Como eu criticava tudo isso já há mais de 30 anos, certa vez um grupo de alunos me homenageou com uma camiseta estilizada, com os dizeres “agressão atual é a que está acontecendo” e, atrás, “e iminente é a que está para acontecer”. Adorei. Tenho-a guardada. Como um troféu.
Havia, portanto, mais pudor. Ainda havia um resquício do velho formalismo herdado do civilismo francês (e alemão) e até líamos que “interpretar a lei é descobrir o unívoco sentido da norma”. Poucos tinham coragem de dizer “qualquer coisa sobre qualquer coisa” como hoje se faz. Ativismos e voluntarismos eram coisas feitas de forma, digamos assim, comedida. O realismo jurídico era velado. Disfarçado. Havia um certo recato na doutrina e nas salas de aula.
Com a “pós-modernidade” (sic), Deus morreu. E tudo passou a ser possível, para usar uma frase famosa e ambígua. Rasgaram a fita, por assim dizer. E abriu-se a caixa de Pandora. Até cursos de Lei Seca existem. Como decorar. Truques de memória. Tudo virou espetáculo. Luzes, câmera e ação.
Nem vou falar das tentativas — que crescem dia a dia — de simplificar e des(d)enhar o direito, até mesmo em “contar” sentenças com sinais tipo hieroglifos, que chamam de visual law ou algo assim. Jonathan Swift já sacara isso nas Viagens de Gulliver quando da visita aos cientistas da Academia de Ciências da Lagado. Se Platão foi o primeiro a denunciar as fake news, Swift denunciou os emojis e quejandos.
Nessa tempestade perfeita que se formou, surgem dia a dia novos ventos. O mais recente é um manual ilustrado de direito, algo como almanaque Biotônico Fontoura, ou “seja você também um patrulheiro Toddy” — tudo coisa da minha época, para registro. E tinha Seleções Reader’s Digest, com Flagrantes da Vida Real e Meu Tipo Inesquecível. O mundo simplificado. Brejeiro. Paroquial. Fora com complicações e sofisticações.
Diz a propaganda nas redes sobre o novo manual ilustrado: o personagem aparece folheando o manual e um livro “com letrinhas”. E pergunta: o que é melhor? Estudar assim (livro) ou assim (manual ilustrado)? E continua: O que é melhor: se lembrar exatamente o que viu quando estudava ou fechar os olhos e tudo parece igual? No manual ilustrado, além de aprender, você se lembra do que estudou por conta das ilustrações criadas com base na neurociência. Além disso, você vai encontrar uma linguagem tão simples até quem nunca estudou direito consegue entender logo na primeira leitura como se fosse um bate-papo. Tudo isso sem esquecer da doutrina, lei seca e jurisprudência, sempre atualizado. Com o manual ilustrado você tem o melhor conteúdo dos livros, mas explicado como se estivesse sentado à mesa conversando com os amigos. Nada daquele material que você parece que precisa fazer um curso só para entender o que o professor tá explicando.
E fecha: “Em 2023 não faz sentido estudar como se estivéssemos em 1990. O manual pode mudar sua vida… para sempre”. Fim da peça publicitária.
Dramático, não?
Eis a mágica. Descobriram um manual com linguagem tão simples que até quem não é do direito entende logo na primeira leitura. Mas que coisa, não? Como falei, antigamente havia muito mais pudor. Os manuais eram mais comedidos.
Com essa “descoberta”, o Brasil não ganha o prêmio Nobel? Eis aí um nome — do autor ou autora — para ser indicado para o Ministério da Educação. Imaginemos esse método para “curar” o analfabetismo. E já pensaram na revolução nas salas de aula dos cursos de direito? Com esse “método”, nem precisa ser estudante ou profissional da área jurídica para entender. A neurociência ajuda a memorizar. E compreender. Esse Brasil…
E se transportarmos para a medicina? Tão simples que até quem nunca estudou medicina aprende. Seja um médico em três lições. Ou coisas assim.
Vamos falar sério. Como é possível isso? Não nos incomodamos quando somos insultados? Porque, desculpem-me, mas isso tudo que fazem “por aí” — principalmente na área jurídica — é tratar-nos a todos como imbecis. “Não, não faremos nada sofisticado, vamos oferecer algo que até um macaco seria capaz de compreender.” O que está implícito nessas coisas todas? Que o limite do aluno é esse mesmo. Quod natura non dat, Salmantica non praestat. Eu, como professor, sempre procurei insistir no contrário. Mas não: esses “compensados” jurídicos são isso mesmo. Daí o paradoxo Tostines: os “compensados” são assim por causa dos alunos e causídicos ou os alunos e causídicos são assim por causa dos livros “compensados”?
Depois nos surpreendemos quando causídicos confundem O Pequeno Príncipe com O Príncipe de Maquiavel ou Pôncio Pilatos com Afonso Pilates. Ou com advogado odiando a Constituição. Ou com advogado (ou até professor de direito) dizendo que a Constituição deveria ser uma carta de deveres.
Alunos: revoltem-se. Por favor. Por uma questão de dignidade. Depois de formados, serão presa fácil dos tiktokers e manuais ilustrados.
Como diz o autor ou autora do Manual Ilustrado, eis o “ensino de um jeito que você entende; o Direito é sério, mas não precisa ser chato“. Sério? O direito é sério? Fala sério. Isso é ofensivo. Aliás, pergunto para o pessoal do Manual Ilustrado: “Mas o que é que é ‘chato’ no direito”? Digam aí, por favor.
Mas atenção: tudo já fora profetizado pelo nosso Flaubert, Machado de Assis. No conto Teoria do Medalhão, o pai dá a dica para seu filho que completa 21 anos: meu filho, em vez de se cansar escrevendo um tratado sobre carneiros, facilite — compre um, asse e convide os amigos e professores.
Bingo. Eis a fórmula do sucesso. Asse o carneiro. Ali foi inventado o direito facilitado e, sem trocadilho, mastigado! Carneiro mastigado.
Machado era o cara. Por isso ele escreveu também Memórias Póstumas de Brás Cubas. Que não se pode “aprender” em cinco minutos. Tem de ler.
Aliás, “direito facilitado”, “mastigado”, “ilustrado” e quejandos fazem parte da brasileiríssima “epistemologia do churrasco”, inventada/denunciada por Machado.
Já há falta de carneiros na praça. Só se fala nisso.
Alô, Flávio Dino — quer saber por que a PRF age assim?
Por fim, aqui vai mais uma coisa muito séria, inclusive para os responsáveis para a segurança pública refletirem (Dino anda preocupado com essas coisas, certo?). Lembram do cursinho que ensinava tortura, lá do Espírito Santo? Dino, leia este texto. E vai entender as razões de tanta coisa envolvendo polícias e PRF. Tem um vídeo de um professor policial PRF ensinando tortura. Parece que fizeram a aula prática na Paraíba… quando mataram Genivaldo. O vídeo explica.
Mas a coisa não para por aí. Para que entendamos o tamanho do buraco em que estamos metidos, vai aqui uma ilustração do manual ilustrado que trata do direito penal para concurso de polícias. O livro que trata do direito penal possui uma caveira. Sim, uma caveira. Imaginem o conteúdo a partir da capa. Direito Penal, senhoras e senhores. Esse Brasil… Depois nos queixamos da Polícia Rodoviária Federal e as ações das polícias. Vejam a capa:
E querem o quê? Mais ilustrações?
Artigo publicado originalmente no Consultor Jurídico.
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