Por Reinaldo Azevedo
Alguém tem alguma dúvida de que os bravos procuradores da Lava Jato são como personagens da música “Meu disfarce”, de Carlos Colla, celebrizada nas vozes de Chitãozinho e Xororó? Lá está: “Digo coisas que não faço/ faço coisas que não digo”. A canção é de amor. Sem um tantinho de hipocrisia, nem há romance. Já o hipócrita profissional, na vida pública, é um problema e pode provocar muitos desastres. E os valentões da Lava Jato são precisamente isto: hipócritas. É o que evidencia mais uma reportagem do site The Intercept Brasil. Vamos ver?
O lavajatismo entrou em guerra com Augusto Aras, procurador-geral da República, quando este decidiu lembrar que há uma Constituição no país e que o ente cuja existência é garantida pela Carta é o Ministério Público, não a Lava Jato — ou as forças-tarefa. E isso implica que estas não podem ser donas de arsenais de informações que não estão submetidos a controle nenhum, a não ser a vontade de seus respectivos coordenadores.
Temos falado — nós, da imprensa — em “compartilhamento” de dados. A palavra nem é a melhor porque se compartilham coisas com terceiros. No caso do MPF, a palavra nem é essa porque, reitere-se, a força-tarefa é um arranjo operacional, com um nome publicitário: não se trata de um ente estranho ao MP com o qual este devesse compartilhar coisas — ou o contrário. Trata-se apenas de não permitir que um grupo de procuradores privatize informações, sonegando-as ao ente cuja existência é assegurada pela Constituição. Transcrevo um trecho do que informa o TIB. Volto depois.
Ah, sim: os procuradores se referem a Lula como “o 9” ou “nono elemento”, numa referência ao fato de que o ex-presidente perdeu o mindinho da mão esquerda, decepado num acidente de trabalho. Quem é capaz de fazer tal uso de um acidente de trabalho, num país de trabalhadores na maioria pobres, é capaz de mais o quê?
Respondo: de fazer pouco caso da morte da mulher, do irmão e até no neto de sua presa — uma criança de 7 anos. Limites? Não! Eles não têm. Nem os morais nem os institucionais. Se depender de Edson Fachin, fica tudo como está. O país continuará entregue a esses varões e varoas de Plutarco.
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A força-tarefa da operação Lava Jato em Curitiba recebeu uma investigação sigilosa sobre o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva antes de fazer um pedido formal para o compartilhamento dela. O caso ocorreu durante os preparativos para a operação que obrigou o petista a prestar depoimento, em 2016. Semanas antes da condução coercitiva de Lula, os procuradores de Curitiba obtiveram a cópia de uma apuração que, oficialmente, só seria compartilhada um mês depois por colegas do Ministério Público Federal no Distrito Federal.
A apuração sigilosa era um Procedimento Investigatório Criminal, ou PIC, instrumento usado pelo Ministério Público Federal para iniciar investigações preliminares sem precisar de autorização da justiça. Os PICs estão no centro da disputa entre o atual procurador-geral da República, Augusto Aras, e a força-tarefa de Curitiba.
(…)
Um PIC pode ser prorrogado se o MPF achar necessário e não passa pelo controle do Judiciário. Por meio deles, procuradores podem fazer inspeções, vistorias e pedidos de documentos, inclusive sigilosos, e terceirizar tomadas de depoimento de testemunhas para polícias e até guardas municipais.
(…)
RETOMO
O que a reportagem do TIB evidencia? Vamos lá:
– Um PIC aberto pela Procuradoria da República do DF investigava suposto tráfico de influência de Lula na relação entre Odebrecht e BNDES. A peça de resistência era um relatório do Itamaraty que traria informações a respeito. Nota à margem de autoria deste jornalista, não do TIB: a tal “devassa” que Bolsonaro determinou que se realizasse no banco de fomento deu com os burros n’água.
– a Lava Jato queria a qualquer custo a condução coercitiva de Lula. Afinal, seria um momento de triunfo da operação;
– o caso do tríplex de Guarujá era fraco; era preciso, digamos, engrossar o caldo. Mais: urgia criar circunstâncias para reforçar a suposta competência de Curitiba para investigar o ex-presidente;
Segue mais um trecho da reportagem sobre conversa do dia 7 de fevereiro de 2016:
[O procurador Roberson] Pozzobon fez duas confissões: sobre a intenção de dar “uma olhadinha” informal na investigação sigilosa de Brasília e a ânsia de manter no Paraná as investigações contra o ex-presidente.
Logo em seguida a essa conversa, [Deltan] Dallagnol já combinava com [Paulo] Galvão, num chat privado, como botar as mãos naqueles autos. Quatro dias depois, em 11 de fevereiro, Dallagnol passou aos colegas um relato das investigações em andamento em Brasília “sobre o nono elemento” (outra referência ao dedo amputado de Lula) e avisou que o MPF de Brasília iria “mandar tudo digitalizado amanhã”.
Em 12 de fevereiro, dia seguinte ao anúncio de Dallagnol, o procurador Diogo Castor de Mattos usou o mesmo chat para narrar descobertas que vinha fazendo no relatório do MPF de Brasília sobre as correspondências do Itamaraty, o mesmo documento que os procuradores já vinham cobiçando.
(…)
Com o passar dos dias, ficou evidente que a Lava Jato queria manter em segredo que havia consultado aqueles autos. A primeira menção a isso foi em 20 de fevereiro, um dia após a investigação ter vazado para a revista Época. O procurador Paulo Galvão enviou o link da reportagem aos colegas de equipe e, logo em seguida, fez um pedido:
“20 de fevereiro de 2016 – Chat FT MPF Curitiba 3
Paulo Roberto Galvão – 01:08:04 – Não vamos deixar transparecer q tivemos acesso, pq já teve briga na prdf [Procuradoria da República do DF] por conta de acesso à esses autos. Combinei com Julio que, se for útil usar, vamos refazer as provas.
O diálogo revela que a Lava Jato pretendia estudar o caso furtivamente para poder, eventualmente, “esquentar” o material numa nova investigação ou denúncia. Nesse caso, segundo Galvão, a força-tarefa produziria novamente as provas, sem deixar à mostra de onde surgiram as informações.
Mais tarde, no mesmo dia, a equipe comenta uma manifestação da defesa de Lula, que protestava porque tentava conseguir uma cópia daquele caso, sem sucesso, desde dezembro de 2015. Desta vez é Noronha quem alerta os parceiros para manterem a manobra em segredo: “Pessoal, por favor, lembrem de não dizer que tivemos.acesso a esses autos! Só confusão que vem de lá”.
RETOMO
Leiam a reportagem. A coisa é bem mais grave do que se pode perceber à primeira vista. Trata-se de um flagrante que explica por que a Lava Jato pretende manter o monopólio do arsenal que junta espantosos 38 mil investigados, entre pessoas físicas e jurídicas.
Enquanto os donos indevidos da Lava Jato forem os donos igualmente indevidos dos segredos, poderão fazer o que lhes dá na telha. O que se tem lá, na verdade, é um arsenal para a guerra política contra quem eles decidirem que tem de ser destruído.
Se depender do ministro Edson Fachin — e vamos ver quantos outros da Corte vão segui-lo quando a questão for votada —, a Lava Jato, convertida em milícia à margem do Estado, continuará a utilizar, segundo a sua conveniência, aquilo que conseguiu recolher em razão dos poderes coercitivos que lhe garante o Estado. Tais poderes deveriam ser empregados em benefício da apuração da verdade. Como se nota, ao arrepio de qualquer controle, o que se tem é a criação de uma espécie de polícia ou de Estado paralelos — ou, então, de um estado policial.
O FATOR FACHIN
Edson Fachin, que chegou ao Supremo incensado pelas esquerdas, depois de ter vertido muitas lágrimas — até literais — em defesa do estado democrático e de direito para cavar a indicação, não é burro e sabe disso tudo. A QUESTÃO É SABER — E DEVE HAVER ALGUMA RAZÃOI, CERTO, MINISTRO? — POR QUE ELE NÃO APENAS CONDESCENDE COM A AGRESSÃO A DIREITOS FUNDAMENTAIS COMO AINDA SE TORNOU A PRINCIPAL VOZ DO PUNITIVISMO NO SUPREMO. ESTÁ ATENDENDO A QUE DITAME? SÓ O DA PRÓPRIA CONSCIÊNCIA? FOI DORMIR GARANTISTA E ACORDOU COM GANAS DE UM MISTO DE SAVONAROLA COM TORQUEMADA?
Conte para nós, ministro: o que se passa? A gente até fica tentado a achar que aquele estoque que ninguém conhece teria o condão de revelar este arcano, né?
Eis aí: o que poderia ser apenas um raiozinho na tempestade que colheu Lula revela, em verdade, a falta de limites da turma. E assim os valentes continuarão até que alguém lhes coloque um freio.
Precisam de um freio político? Não! Precisam do freio da lei e das instituições. Como todo mundo.
O Supremo vai dizer se vamos reencontrar o caminho do devido processo legal ou vamos continuar na lama que tem Jair Bolsonaro como legado.
É bom que o Supremo se lembre que está fazendo história.
Artigo publicado originalmente no UOL.
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