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A distopia de uma fila paralela para a vacina

A distopia de uma fila paralela para a vacina

Por Maria Cristina Fernandes

Não há saída fora do sistema de saúde pública

O pacote inclui passagem de primeira classe ou em jato particular, a vacina e a acomodação em hotel exclusivo por até um mês até a aplicação da segunda dose. Se a opção for pela vacina da Pfizer, o destino é Dubai, nos Emirados Árabes. Se a escolha for a da AstraZeneca, é Mumbai, na Índia. O mimo, segundo reportagem do “The Telegraph” publicada neste domingo, pode chegar a US$ 55 mil, além de outros US$ 55 mil da anuidade do Knightsbridge Circle, que oferece o pacote. O clube promove o exclusivo “turismo da vacina” fica no Reino Unido, onde o imunizante primeiro foi aplicado. 

Assim como em quase todos os países que já começaram a imunização, lá a vacina só é acessível pelo sistema público de saúde, o NHS. No Brasil, a vacinação em massa é feita pelo SUS desde que ele foi criado pela Constituição de 1988, mas a inoperância do governo e a incerteza em relação ao ritmo da vacinação têm, desde o ano passado, levaram empresas a cogitar uma vacinação exclusiva para funcionários e familiares. Não se trata ir vacinar em Dubai, a US$ 55 mil per capita, mas de trazer o imunizante ao Brasil e montar uma vacinação paralela. 

Ontem, a Dasa, grupo que reúne laboratórios de medicina diagnóstica e hospitais, divulgou nota para negar que esteja negociando um lote de 33 milhões de doses, sendo metade dos quais, para o SUS, conforme noticiado pela “Folha de S.Paulo”. 

A inquietação, no meio empresarial, por uma fila paralela de vacinas, porém, prossegue. Sócio da Gávea Investimentos e fundador do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (Ipes), Arminio Fraga tem acompanhado a discussão em grupos de WhatsApp de investidores e empresários. Entende o desespero de muitos deles frente à incompetência do governo na gestão das vacinas, mas não consegue se convencer de que imunização paralela, por iniciativa privada, seja producente. 

Discorda até mesmo dos grupos que se propõem a comprar para doar integralmente ao SUS. Seu temor é o de que um grupo privado, com caixa para pagar valor mais alto pelas doses da vacina, inflacione o mercado e dificulte a política governamental de compras. A pressão, diz, tem que ser lá dentro do governo, no convencimento de que a vacinação invadirá 2022 e que é preciso diversificar fornecedores, incorporando, por exemplo, o imunizante da Johnson & Johnson, que, ao contrário daquele da Pfizer, não precisa de refrigeração a 70 graus negativos. 

A resistência de investidores e empresários em aceitar que não há saída fora da saúde pública é a mesma que resiste à ideia de que o SUS é subfinanciado. Em grande parte, diz Armínio, pela repartição de recursos orçamentários com o setor privado. 

Sua conta é simples. O Brasil gasta os mesmos 9% do PIB com saúde que o Reino Unido, sendo que 42% vão para o SUS (que atende 75% da população), enquanto os britânicos destinam 90% para o NHS. Depois de ter sido crucial para o primeiro ano da pandemia com a doação de respiradores e equipamentos de proteção individual, a iniciativa privada, ao mobilizar recursos para aquisição de vacinas que contorne o SUS afronta não apenas a lei, como a eficácia da vigilância epidemiológica quanto a própria perspectiva de retomada econômica. 

Professor de medicina preventiva da USP, Mario Scheffer não consegue imaginar nada pior para acontecer no Brasil hoje. Ele lembra que não falta dinheiro desde que o STF estendeu os critérios da calamidade pública para oferecer cobertura fiscal à vacinação nem logística no SUS. O que falta é planejamento, mas isso não é uma fila paralela que vai resolver. E pode atrapalhar muito. 

O governo dividiu a população em grupos prioritários e estabeleceu uma ordem para o início da imunização em função da disponibilidade da vacina. Uma fila paralela, além de reforçar desigualdades e privilégios, desmonta toda a lógica epidemiológica traçada pela política pública. 

Scheffer diz que não dá para comparar a oferta de vacinas, como a da gripe, por laboratórios privados e por empresas, ao esforço nacional que hoje guia a busca de uma cobertura universal contra a covid-19. As empresas oferecem, para a comodidade de seus funcionários, uma vacina que está disponível no mercado. Não é o caso do imunizante contra a covid. Nem mesmo a sobrevivência econômica das empresas está garantida pela fila paralela. Se os funcionários forem salvaguardados da pandemia, o mercado consumidor não estará. A empresa pode estar apta a voltar a produzir. Mas para quem? Sem vacina não tem emprego nem renda. 

Para a imagem das empresas, tanto aquelas que compram as vacinas, quanto para aquelas que as vendem, tampouco poderia haver estratégia pior. Seus produtos passariam a gerar antipatia, e os fabricantes, que têm sido acossados por governos do mundo inteiro, tampouco teriam como justificar exceções privadas. 

O tema exaspera porque não adianta ter passaporte europeu ou imóvel em outro país. Onde quer que se vá, a fila obedece mais ou menos os mesmos critérios de idade, comorbidade e a prioridade para trabalhadores de serviços essenciais. A não ser, claro, que se queira ingressar no mercado paralelo de vacinas, como o do Knightsbridge Circle.

Artigo publicado originalmente no Valor Econômico.

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