Deflagrada em março de 2014, a Operação Lava Jato congregou um grupo de procuradores da República lotados em Curitiba, reunidos em torno de uma força-tarefa que partiu de um inquérito relacionado a lavagem de dinheiro, cujo rastreamento passou a evidenciar o envolvimento de doleiros e empresas de fachada, alguns já anteriormente investigados pela Justiça Federal do Paraná. As investigações contavam com a atuação da Delegacia de Repressão a Crimes Financeiros da Polícia Federal em Curitiba. Os investigadores valeram-se do fato de uma das empresas inicialmente implicadas ter sede em Londrina, no estado do Paraná, para vincular a competência judiciária das instruções processuais e das sentenças a serem proferidas à Vara Especializada em Crimes Financeiros e de Lavagem de Dinheiro de Curitiba, em que era titular o Juiz Sérgio Moro.
A partir de então, o trabalho policial evoluiu para a dedução de laços entre o doleiro Alberto Youssef e um ex-diretor da Petrobrás, Paulo Roberto Costa, tornados mais adiante colaboradores premiados, nos termos da Lei nº 12.850/2013, então recentemente editada para regular de maneira rigorosa e alargada a definição de organização criminosa e estipular benefícios de perdão judicial significativo aos respectivos delatores. Progressivamente, as diversas fases da Operação Lava Jato foram consolidando, em paralelo, a identificação de crimes financeiros relacionados com atos de corrupção, sobretudo no âmbito da administração da Petrobrás, maior empresa estatal brasileira, de um lado, e a imputação desses crimes a agentes políticos responsáveis pela indicação de dirigentes da empresa pública e protagonistas de relacionamentos com outras empresas contratadas pela grandes obras e serviços pela Petrobrás, como as gigantescas empreiteiras da construção civil Odebrecht, OAS, e Camargo Corrêa.
Em suma, a Operação Lava Jato nutriu-se da apuração de uma teia de revelações que implicaram administradores públicos e políticos ligados a diversos partidos em atos de corrupção, consubstanciados em desvios de recursos da Petrobrás e de outras fontes estatais e obtenção de vantagens financeiras pessoais e/ou doações de recursos para campanhas eleitorais por meios ilícitos. Seguiram-se inúmeras diligências policiais, encadeadas com depoimentos, conduções coercitivas, prisões temporárias e preventivas e, mais tarde, confissões estimuladas por abusos nas detenções e pelas vantagens ofertadas para que houvesse colaborações com a persecução criminal. O impacto das novidades foram um prato cheio para a exploração sensacionalista de segmentos poderosos da mídia e açularam o descontentamento da população que sofria os efeitos da desaceleração econômica no país.
O cenário da evolução e consolidação da Operação Lava Jato apresentou as condições ideais para que as investigações de Curitiba, ultrapassando os limites convencionais da atuação das instituições envolvidas, se tornassem o epicentro de uma articulação política voltada ao desgaste do governo federal gerido pela Presidenta Dilma Rousseff, sucessora do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Isso foi possível devido à cristalização do foro de Curitiba como juízo praticamente universal para a instrução e julgamento de crimes de corrupção direta ou indiretamente ligados a obras e transações com a Petrobrás. Na medida em que as prisões e condenações passaram a ser trivializadas, sob a titularidade do Juiz Sérgio Moro, foi criado um ambiente fomentador da exacerbação punitiva e da perigosa ligação entre a marcha do trabalho policial e judicial e o processo político de estigmatização política do Partido dos Trabalhadores (PT) e de seus principais expoentes e dirigentes. Vieram à tona, sob a ascensão política da Lava Jato e de seus principais personagens, segmentos e espectros políticos alijados do poder desde a derrota dos candidatos do PSDB para Lula e Dilma nas eleições presidenciais de 2002, 2006, 2010 e 2014 e, até mesmo, desde o fim da ditadura militar em 1985. A Lava Jato tornara-se uma instância paralela de poder, destinada a impor a sua agenda investigativa e punitiva com o apoio de uma conexão midiática muito forte e azeitada, que conduziu seus protagonistas à condição de celebridades. Os delegados e agentes da polícia federal, assim como os procuradores da República que conduziam as investigações e atos de coerção passaram a ser glorificados, o que gerou o efeito deformador da identificação das críticas aos excessos da operação com a defesa dos atos de corrupção em si. As garantias constitucionais do devido processo legal, da presunção de inocência, da ampla defesa e do contraditório sofreram uma grave erosão, num clima de estímulo ao caráter inquisitivo não apenas do aparato repressor do Estado, mas também das instâncias judiciárias.
Nesse contexto, emergiu a figura incontrastável do Juiz Sérgio Moro, que não resistiu à tentação de se converter em símbolo da Operação Lava Jato e de uma canhestra “República de Curitiba”, celebrizada como microcosmo da redenção moral do país. O magistrado, à medida em que aparecia repetidamente na grande mídia como vértice principal da atuação punitiva no escândalo de corrupção, passou a abdicar da sobriedade necessária ao exercício da atividade judicial, dedicando-se a cultivar um suposto heroísmo em si mesmo. Internamente, os interrogatórios e despachos chegavam com destaque ao noticiário e às redes sociais, inclusive com transmissões de vídeo, causando na população uma deformada percepção de que o juiz desempenhava uma cruzada corajosa e obstinada em favor da restauração da honestidade no país.
Àquela altura, as homenagens e premiações a Sérgio Moro, inclusive como “Homem do Ano” e quejandas, não supriam mais a sede de glória do juiz-herói. Havia um clamor pela culminância da sua sanha punitivista, já então desabridamente destinada a destronar o poder político obtido democraticamente pelo PT ao longo de quatro eleições, inclusive em 2014 com a reeleição da presidenta Dilma Rousseff. Estimulado politicamente e com forte apoio midiático e de setores empresariais e do capital financeiro, o movimento de respaldo à Lava Jato ganhou as ruas e desembocou em grandes manifestações contra a corrupção. Na época (março de 2015), o então juiz Sérgio Moro acenou publicamente às multidões como virtual líder político, ao considerar-se “tocado” com o apoio recebido. Ato contínuo, as manifestações convocadas por movimentos de direita migraram para defender abertamente o impeachment da Presidenta Dilma, buscando responsabilizar em definitivo a cúpula governo do PT pelo escândalo de corrupção da Petrobrás, muito embora as próprias investigações da Lava Jato demonstrassem claramente que os esquemas de corrupção na Petrobrás e nas demais empresas públicas e privadas atingissem dezenas de partidos políticos e evocassem práticas políticas e empresariais arraigadas há décadas, não sendo atribuíveis exclusivamente ao PT e a seus dirigentes.
Foi então instaurado o processo parlamentar de discussão do impeachment presidencial no final de 2015, num ato extremo do então presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, para defender-se, ele próprio, de acusações acachapantes de corrupção e desvio de recursos públicos. E o ato decisivo para o afastamento da presidenta Dilma veio a ser praticado pelo Juiz Sérgio Moro. Em 16 de março de 2016, num gesto irregular autorizado por Moro, foram divulgados áudios de interceptação telefônica que deveriam estar resguardados por sigilo legal, envolvendo diálogo entre a presidenta Dilma e o ex-presidente Lula. Supondo que tal conversa representasse uma tentativa de obstrução da Justiça pela iminente nomeação de Lula como ministro de Estado, o vazamento ilegal permitido pelo juiz Moro constituiu o elemento central de uma combustão político-midiática que redundou no inevitável afastamento da presidenta democraticamente eleita, sem que houvesse sombra de ato de responsabilidade e justificar a sua deposição em termos constitucionais.
Sucede que, em matéria de transgressões institucionais, um erro leva a outro. E assim, com a previsível candidatura do ex-presidente Lula às eleições presidenciais de outubro de 2018 e levando-se em conta o seu favoritismo no pleito, mais uma vez o juiz Moro dispôs-se a exceder as suas competências e a subverter paradigmas jurídicos para alcançar objetivos políticos aos quais se vinculava. Assim, com a extravagante aceleração de procedimentos e o desprezo a ritos processuais imprescindíveis em causas penais, em julho de 2017, Sérgio Moro sentenciou Lula por suposta obtenção de vantagens na reforma de um apartamento que jamais integrou o patrimônio do ex-presidente. Para tanto, Moro recorreu a um controvertido depoimento do delator Léo Pinheiro, ex-presidente da empreiteira OAS, que antes de obter benefícios legais se recusara peremptoriamente a implicar Lula em irregularidades, mas uma vez condenado a pena pesadíssima, veio a ceder em sua versão original, passando a gozar de uma impressionante redução de cerca de quase 90% da pena inicialmente a ele imposta. A condenação de Moro foi sucedida por julgamento de recurso em tempo recorde pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4), a confirmar e até agravar os termos da pena aplicada ao ex-presidente. Mais adiante, o Supremo Tribunal Federal (STF) negou Habeas Corpus que deveria beneficiar Lula, negando permissão para que ele respondesse o processo em liberdade até o julgamento final de seus recursos aos tribunais superiores em Brasília. Tais julgamentos colegiados foram marcados por uma extraordinária pressão midiática, com transmissões ao vivo e intimidações diversas, incluindo uma mensagem ameaçadora do Comandante do Exército em rede social. A condenação de Lula num processo tão frágil do ponto de vista jurídico e a consumação de sua prisão, afinal, em abril de 2018, só foi possível devido a essa aliança anômala entre Justiça e poder midiático, que expôs a imagem do ex-presidente à execração pública quando de sua abusiva condução coercitiva para depoimento em março de 2016, determinada por Sérgio Moro, o que certamente contribuiu muito para desestabilizar o prestígio político do governo federal, impulsionando também o impeachment da presidenta Dilma.
Após a prisão do ex-presidente Lula, já se considerava a toda evidência que a Operação Lava Jato assumira um papel político indisfarçado e que o juiz Sérgio Moro extrapolara gravemente suas restrições funcionais como juiz. Mas um derradeiro capítulo da trajetória jurisdicional de Moro tornaria absolutamente escancarada a sua parcialidade, contaminando a credibilidade de sua atuação pretérita e minando a aura de isenção e virtuosa intencionalidade do seu trabalho judicante. Em 1º de outubro de 2018, às vésperas da eleição para a presidência da República que contrapunha o líder da extrema direta em ascensão, Jair Bolsonaro, ao candidato do PT, Fernando Haddad, que substituíra Lula na chapa eleitoral, devido a um impedimento mais uma vez imposto pela Justiça, em controvertida decisão do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), em pleno clima acirrado de campanha política, o ainda juiz Sérgio Moro divulgou o texto de uma colaboração premiada do ex-ministro da Fazenda e da Casa Civil de governos petistas Antonio Palocci, causando sérios prejuízos às pretensões da candidatura do partido, o que levou, dentre outros fatores, à vitória da candidatura de Jair Bolsonaro.
O epílogo dessa narrativa traduz-se numa demonstração grosseira de troca de favores com finalidade política, exatamente um mês após a prática de tal ato judicial que resultou em nítido proveito ao êxito eleitoral de Jair Bolsonaro, nos dois turnos da eleição presidencial, quando Sérgio Moro foi anunciado, em 1º de novembro de 2018, como ministro de Estado da Justiça do novo governo, o que o levou a desligar-se da magistratura no mês subsequente.
Tais circunstâncias já sinalizavam, portanto, que o ex-juiz condicionara a sua atuação jurisdicional a uma agenda claramente orientada a propósitos e resultados políticos que obscureceram a idoneidade de seus pronunciamentos judiciais, sobretudo nos processos relacionados ao ex-presidente Lula, liderança maior e simbólica do Partido dos Trabalhadores e dos governos petistas.
Todavia, não havia ainda um conjunto de evidências que demonstrassem, de uma vez por todas, que de fato o seu papel na Operação Lava Jato fora deturpado intencionalmente e em plana consciência. Tampouco se sabia da existência de um canal permanente de comunicação e entendimentos entre o juiz e a acusação, representada pelo Ministério Público Federal e seus procuradores da República componentes da força-tarefa da Lava Jato (FTLJ). Presenciara-se, é verdade, constrangedores atos de desrespeito e intimidação às prerrogativas da defesa do ex-presidente, inclusive em despachos e audiências. Mas não se tinha conhecimento do convívio institucionalmente promíscuo entre autoridade julgadora e parte acusadora.
Até que surgiram os vazamentos divulgados pelo Intercept Brasil, que detonaram o escândalo conhecido como Vaza Jato. A partir de 9 de junho de 2018, o site passou a divulgar reportagens, posteriormente compartilhadas com o jornal Folha de S. Paulo e com a revista Veja, cujo conteúdo transcreve diálogos que revelam a troca indevida de colaboração entre o então juiz Sérgio Moro e os procuradores da Lava Jato. Nas mensagens trazidas a público, ao menos em relação aos processos do ex-presidente Lula, Sérgio Moro antecipa decisões; compartilha arquivos de despachos e minutas; revisa peças acusatórias; indica testemunha para colaborar com a acusação; privilegia os representantes do Ministério Público com informações estratégicas e vitais ao andamento do processo, sem franqueá-las à defesa do réu; comenta o desempenho técnico dos procuradores, com o intuito de aprimorá-lo; celebra insucessos da defesa; comemora a frustração de iniciativas de interesse do ex-presidente; planeja a divulgação midiática de decisões e medidas favoráveis à acusação; compartilha informação sobre suposta cooptação de ministro do Supremo Tribunal Federal pelas teses da acusação; promove aconselhamentos ao Ministério Público; e tece comentários sobre a andamento da Operação Lava Jato, como se dela fosse o verdadeiro chefe e líder, desconsiderada a sua peculiar condição de magistrado.[1]
Diante desse quadro, a atitude do ex-juiz Sérgio Moro alternou entre a contestação formal da veracidade das mensagens e a impugnação de ter havido irregularidades em seu conteúdo. Essa ambivalência permite que se avalie, ao menos, a pertinência das conclusões sobre o conteúdo das matérias, haja vista que até mesmo o ex-juiz já o fez. Essa avaliação fica condicionada, evidentemente, à confirmação ou admissão definitivas da autenticidade dos diálogos revelados.
Nesses termos, é possível constatar que, aconteça o que acontecer doravante, a considerar pelas revelações já trazidas ao conhecimento público pelo site Intercept Brasil, a imagem de Sérgio Moro, sob o ângulo da ética judicial, já se encontra absolutamente derruída. O ex-juiz assumidamente desconsidera paradigmas essenciais à integridade do exercício da função judicante, ao demonstrar o intento de naturalizar desvios inaceitáveis à condição imparcial que constitui a matriz da atuação de qualquer magistrado.
Ao contrário do que se pode erroneamente supor, a Lava Jato não pode aspirar ao status de instância independente de poder, sobrepondo-se às instituições constitucionalmente estruturadas, assim como não tem o condão de indiferenciar as competências absolutamente definidas de juízes, procuradores e policiais. No entanto, sob a consagração populista e midiática, na prática a Lava Jato foi entronizada com tais degenerados atributos e gerou o embrião das disfunções agora reveladas em grande extensão.
Mesmo provocado como desdobramento de investigações no âmbito da Operação Lava Jato, o Poder Judiciário deveria agir nos seus limites típicos e com a reverência aos predicados constitucionais traduzidos em direitos fundamentais da defesa previstos na Constituição da República. A inobservância desses ditames fundamentais, como evidenciado pelo teor dos diálogos revelados pelo Intercept Brasil, implica a constatação de ter sido instaurado em Curitiba um juízo de exceção, ao menos no processo que resultou na condenação e prisão do ex-presidente Lula por pretensas corrupção e lavagem de dinheiro em relação a vantagens que teria recebido para reforma de apartamento tríplex no município do Guarujá, o que deve conduzir, inelutavelmente, sob critérios jurídicos, à nulidade da pena respectiva.
Especificamente quanto à conduta do ex-juiz Sérgio Moro, é forçoso verificar a incompatibilidade dos atos praticados — de acordo com as revelações recentes, mas também à luz dos indícios já sabidos anteriormente e descritos acima — com os requisitos básicos da ética judicial. Isso emerge do cotejo de diversos diplomas nacionais e internacionais, conforme adiante será demonstrado.
Não resta mais dúvida, ante os fatos detalhadamente aludidos, que o ex-juiz Sérgio Moro transgrediu a expectativa de agir com imparcialidade, no contexto da Operação Lava Jato, ao menos no citado processo que resultou na condenação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. E, ao fazê-lo, cometeu o ex-magistrado infração ética de suma gravidade.
A imparcialidade é o primeiro dos deveres e compromissos de todo juiz. Isso significa que o exercício da função judicial deve abominar a fixação de um resultado pré-determinado, muito menos perseguí-lo ou colaborar para o seu alcance. Um juiz se legítima pelo seu procedimento, não pelo resultado que alcança, pois este será necessariamente parcial e não aproveitável pela sua posição, que por definição é sempre imparcial.
Não se conclua daí haver presunção de neutralidade do juiz na apreciação de litígios e conflitos. Neutralidade e imparcialidade são categorias distintas. O juiz necessariamente carrega consigo concepções, experiências e ideias que influenciam sua visão e sua apreciação dos fatos e das circunstâncias. Por isso, a neutralidade judicial é um mito ilusório. Não obstante, o magistrado deve ser fiel ao rigor das regras processuais, das normas de direito material e da imprescindibilidade da existência de provas e elementos materiais para fundamentar seus julgamentos. E não pode o juiz ignorar ou menosprezar a observância e a construção de fundamentação técnica coerente e sólida em suas decisões, sob pena de sobrepor seu livre convencimento à obediência ao ordenamento jurídico vigente e aos limites formais que seu cargo impõe. Assim, considera-se que o juiz deva ser imparcial, indispensavelmente.
Ser imparcial, por conseguinte, significa respeitar regras e observar limites. Dessa forma, o juiz se legitima. Caso contrário se desmoraliza e perde a sua autoridade. Sérgio Moro não foi um juiz imparcial. Por essa razão, violou a ética judicial. No contexto da glorificação heróica de sua conduta e do clamor das ruas em favor de uma condenação penal do ex-presidente Lula e da deposição da presidenta Dilma, caberia ao magistrado, para legitimar e justificar o seu papel, que tem fonte estatal e não pessoal, justamente, manter um rigoroso distanciamento das partes — de ambas — e zelar pelo resguardo de uma condução sóbria, equilibrada e sobretudo imparcial. Mas ele não o fez: ao contrário, declarou sentir-se tocado com o apoio obtido em manifestações, e mais: manobrou ativamente pelo impeachment da presidenta Dilma e pela condenação rápida com consequente cerceamento de direitos políticos do ex-presidente Lula, para que ele não pudesse concorrer às eleições presidenciais de 2018. Além disso, Moro interferiu drasticamente no processo político-eleitoral da campanha daquele ano, ao divulgar intempestivamente uma delação premiada do ex-ministro Antonio Palocci, dias antes do pleito, aceitando, menos de 30 dias após um cargo político de ministro de Estado no governo chefiado por Jair Bolsonaro, candidato obviamente favorecido na disputa pela manobra executada pelo ex-juiz, quando ainda no cargo de magistrado. Torna-se impossível, ante tais circunstâncias, desprezar a afronta severa sofrida pelo pressuposto de imparcialidade exigível no escrutínio de conduta de qualquer magistrado.
No Brasil, os fundamentos constitucionais da imparcialidade judicial derivam da obrigatoriedade de observância do devido processo legal (art. 5º, inciso XIV) e realçam a proibição de juízos de exceção (art. 5º, inciso XXXVII). No Código de Processo Penal, a imparcialidade é um requisito sem o qual deve-se proclamar a suspeição, sob pena de perda da validade do processo. O aconselhamento de parte no processo é uma das hipóteses de suspeição especificamente enumerada no art. 254 do diploma. Já o Código de Ética da Magistratura Nacional em vigor, aprovado pelo Conselho Nacional de Justiça em 2008, proclama, logo em seu art. 1º, que: “O exercício da magistratura exige conduta compatível com os preceitos deste Código e do Estatuto da Magistratura, norteando-se pelos princípios da independência, da imparcialidade, do conhecimento e capacitação, da cortesia, da transparência, do segredo profissional, da prudência, da diligência, da integridade profissional e pessoal, da dignidade, da honra e do decoro.” E não bastassem tais peremptórias advertências no sentido que exigir o resguardo da não parcialidade, em diversas dimensões, o referido Código ainda acrescenta o seguinte: “Art. 8º O magistrado imparcial é aquele que busca nas provas a verdade dos fatos, com objetividade e fundamento, mantendo ao longo de todo o processo uma distância equivalente das partes, e evita todo o tipo de comportamento que possa refletir favoritismo, predisposição ou preconceito. Art. 9º Ao magistrado, no desempenho de sua atividade, cumpre dispensar às partes igualdade de tratamento, vedada qualquer espécie de injustificada discriminação”.
Tais determinações constantes no ordenamento jurídico brasileiro estendem ao Poder Judiciário, inclusive na esfera penal, mecanismos de regulação da conduta de autoridades estatais, numa perspectiva vinculada à ética pública, para fomentar o controle social da sua atuação e da tomada de decisões dos seus respectivos agentes públicos. Essas normas éticas destinam-se a assegurar honestidade, impessoalidade, independência, imparcialidade, lisura, moralidade e transparência como requisitos que também devem ser considerados na construção do modelo ético de postura e desempenho dos juízes. Isso decorre da noção de que os magistrados, em seu cotidiano profissional, precisam observar elementos éticos indispensáveis à manutenção da credibilidade não apenas de suas atividades individuais senão também da própria instituição judicial que integram.
Convém acentuar que o fundamento teleológico de um sistema de justiça independente e imparcial repousa na responsabilidade de defesa dos direitos dos cidadãos e da integridade democrática. De nada adianta a existência de leis justas se o Poder Judiciário não estiver dotado das condições imprescindíveis para aplicá-las segundo critérios técnicos e interpretativos autenticamente isentos.
Não há dúvida quanto à proeminência de tais princípios na obtenção da confiança pública em qualquer sistema judicial, conforme assinala de maneira clara o preâmbulo da proclamação dos Princípios de Bangalore sobre Ética Judicial, documento paradigmático sobre o tema no plano internacional. A autoridade legal e até mesmo a integridade constitucional dependem, em grande medida, da respeitabilidade moral infundida pelos magistrados perante a sociedade.
É certo que o exercício da função judicial somente adquire o reconhecimento de plena independência se o magistrado se conservar alheio e livre de influências externas, pressões, ameaças ou interferências, diretas ou indiretas. Assim preconizam o documento de Bangalore (itens 1.1 e 1.2) e também o Código Iberoamericano de Ética Judicial (art. 3º), atentos à necessidade vital de distanciamento do julgador em relação aos interesses em disputa na esfera judicial sob a sua responsabilidade decisória.
Por outro lado, fica patente o imperativo de afastar a performancejudicial de qualquer sombra de contaminação por favorecimento de uma das partes envolvidas no litígio; suspeição do magistrado; ou incidência de discriminação ou preconceito perante qualquer das partes. Assim indica o texto de Bangalore (itens 2.1, 2.4, 4.14 e 5.2), inclusive relacionando a imparcialidade com o requisito da igualdade de tratamento das partes. E, no mesmo sentido aconselha explicitamente o Código Iberoamericano (arts. 10 e 14), este ao estabelecer que o juiz imparcial rejeita qualquer tipo de comportamento que reflita predisposição ou favoritismo em suas decisões. É também pressuposto de um sistema judicial genuinamente comprometido com a ética uma constante e ativa postura de transparência quanto às condições pessoais incidentes sobre o juízo de independência e imparcialidade dos magistrados.
A posição que o magistrado ocupa no palco processual não pode ser outra senão a de vértice equidistante das partes. Jamais pode haver polarização indevida, com a conjugação de esforços entre juiz e Ministério Público acusador, em detrimento da defesa processual de um réu, seja ele quem for. Além disso, os atos processuais do juiz precisam ser calculados e aquilatados de forma a conservar a paridade de armas entre os contendores no processo.
Dessa análise técnica dos pressupostos imprescindíveis à ética judicial, à luz das normas constitucionais e legais brasileiras e da disciplina do Código de Ética da Magistratura Nacional e dos preceitos constantes do Documento de Bangalore sobre Ética Judicial e do Código Iberoamericano de Ética Judicial, podemos afirmar que as atitudes do ex-juiz Sérgio Moro à frente da 13ª Vara Federal de Curitiba, no particular em relação à instrução e julgamento do processo criminal em que é réu o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em que houve condenação do réu por supostos benefícios com a reforma de um apartamento tríplex no Guarujá, violaram regras essenciais de imparcialidade que maculam suas decisões, afetando a validade processual e implicando em perspectiva de nulidade processual.
Uma atividade judicial que se incline e penda para a parcialidade, seja qual for a justificação apresentada ou suposta, corrompe necessariamente os resultados alcançados, desnatura a identidade do Poder Judiciário e contamina a instituição judicial como um todo. Julgamento eivados de imparcialidade não devem prosperar, sob pena de fomentar o arbítrio, que é a própria negação do equilíbrio ínsito ao dever do juiz. Todo cidadão deve ter direito a um julgamento justo e sentença parcial jamais será sentença justa. Atitudes como as agora reveladas, que descortinam o procedimento de Sérgio Moro como juiz, levam à corrosão da Justiça brasileira como instituição e deitam por terra princípios constitucionais da República.
As revelações de relações impróprias entre o ex-juiz e acusadores da Operação Lava Jato constituem, ademais, conduta viciada pelo abuso de poder, alimentadas pela arrogância e desfaçatez tão nocivas à liturgia desejável na esfera do Poder Judiciário. De uma vez por todas, as revelações sobre a atuação deletéria de Sérgio Moro como magistrado devem ensinar os agentes do Estado brasileiro, definitivamente, que os fins não justificam os meios e que a potencialização de instâncias paralelas de poder nunca serão a solução para os problemas éticos tampouco para os desafios sociais.
Se dúvida ainda houvesse sobre a integridade de Sérgio Moro como juiz, sua migração para o Ministério da Justiça — ao cabo de uma eleição inegavelmente afetada pela sua atuação como magistrado — trouxe uma lastimável evidência desabonadora, que nos induz a uma profunda reflexão sobre a importância de preservação da imparcialidade como pedra de toque do sistema judicial e da perspectiva republicana de um pacto político-institucional minimamente fundado em princípios democráticos.
O caminho mais seguro para frustrar o combate à impunidade de criminosos consiste precisamente no cometimento de excessos que maculem as punições aplicadas, confundindo penas legítimas com meras perseguições oportunistas. Sérgio Moro, antes tido como juiz-modelo, tornou-se agora, no cotejo da ética judicial, um perseguidor arbitrário, sedento de glória e poder, afastado da essência de sua sagrada função de magistrado, por ter contaminado o principal julgamento de sua carreira com a pecha vergonhosa da parcialidade e da degradação.
[1] A íntegra de tais mensagens encontra-se no link: https://theintercept.com/series/mensagens-lava-jato/
Artigo publicado originalmente no Leme.
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