A criminalidade no Brasil atingiu índices elevados e a corrupção aqui é um fenômeno endêmico. Isso não é novidade e ninguém aprecia dessa situação. No entanto, ainda vivemos num Estado que tenta ser democrático e, por isso, os valores constitucionais precisam ser respeitados.
O combate à criminalidade deve estar sustentado em planejamento técnico, buscando as causas dos problemas e suas resoluções com eficiência, sem deixar-se levar pelo populismo. Não bastam boas intenções se os meios escolhidos não convergem com os princípios da democracia.
Dentre as medidas propostas no ‘pacote anticrime’ do ministro Sérgio Moro, várias estão eivadas de inconstitucionalidade ou são desprovidas da melhor técnica legislativa.
Não há espaço aqui para analisá-las devidamente, portanto, foram selecionados alguns tópicos: a prisão após condenação em segunda instância, as excludentes de ilicitude, o cumprimento de pena após condenação pelo Tribunal do Júri e o crime de resistência.
Aliás, antes de prosseguir, ressalta-se que é obrigação das instituições jurídicas discutir exaustivamente o pacote de medidas antes de serem levadas à apreciação do Congresso Nacional; afinal, numa democracia é essencial a participação de todos os envolvidos.
A prisão após a condenação em segunda instância, na pendência de recursos nos tribunais superiores, não é assunto a ser tratado por lei ordinária. O tema tem natureza constitucional e, portanto, só pode ser objeto de emenda constitucional ou decisão em sede de controle de constitucionalidade do STF.
No caso específico, por se tratar de cláusula pétrea, somente uma nova Constituição poderia afastar a presunção de inocência antes do trânsito em julgado da condenação.
Qualquer lei em sentido contrário é inconstitucional. Ademais, com a pendência de julgamento de duas ações declaratórias de constitucionalidade (ADCs 43 e 44) pelo STF, o lugar devido para a discussão, elaborar projeto de lei nesse sentido é precipitado demais.
A modificação no tratamento dado às excludentes de ilicitude também é inócuo.
O Código Penal já inclui todas as situações de legítima defesa como causas que afastam o caráter criminoso do fato.
Se um policial, em atividade, precisa matar alguém para salvar sua própria vida ou a vida de outro, não há crime.
Não é preciso afirmar isso separadamente, pois a impressão que se passa é de que o policial teria autorização para matar sempre que estiver trabalhando. Aliás, a redação do dispositivo é bem confusa e não precisa ser modificada. Se a redação atual não satisfaz, o problema é de quem aplica a lei, e não da lei.
A proposta de execução imediata da pena após condenação pelo Tribunal do Júri também é, no mínimo, criticável.
O Brasil é signatário do Pacto de São José da Costa Rica, que impõe o direito fundamental ao duplo grau de jurisdição. Isto é, todo mundo tem direito a recorrer de decisão que não lhe satisfaz, independentemente do crime praticado.
O novo julgamento é direito que não pode ser retirado do cidadão, pois há determinação de tratado internacional e qualquer lei em sentido contrário não pode prosperar.
Por fim, o crime de resistência (quando alguém impede o servidor público de praticar ato de ofício) ganha uma qualificadora. Se da resistência houver resultado morte ou risco de morte, a pena passa a ser de seis a trinta anos de reclusão. Há clara violação à regra da proporcionalidade, pois a pena mínima está muito distante da pena máxima.
Além disso, equipara-se a pena máxima do crime de resistência à pena do latrocínio, que é o roubo qualificado pela morte. Crimes de gravidades diferentes precisam ter penas distintas para preservar a proporcionalidade.
Atualmente, é arriscado fazer críticas a qualquer medida do novo governo, especialmente quando proveniente do ministro Moro, aclamado pelo público como herói. Entretanto, o objetivo aqui é apontar questões técnicas que não foram observadas.
A Constituição Federal deve ser respeitada, gostemos ou não de seu conteúdo. A efetividade do sistema jurídico não virá com a supressão de direitos, e sim com a boa gestão do Poder Judiciário e do Ministério Público.
Propostas boas não faltam: impedir o Estado de recorrer de todos os processos para desafogar a pauta dos tribunais (o Estado é o maior litigante de todos), reduzir férias de juízes e membros do Ministério Público de 60 para 30 dias, investir na inteligência artificial nos tribunais e valorizar as polícias.
Texto publicado originalmente em O Estado de São Paulo.
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