* Artigo publicado originalmente na edição desta sexta-feira (30/3) do jornal Correio Braziliense, com o título Falsa Polêmica.
A decisão do STF de determinar a prisão do réu após a condenação em segunda instância atende a vários sentimentos da sociedade. O principal deles talvez seja apagar aquele gosto ruim de impunidade que o brasileiro identifica nos casos que se arrastam por anos nos tribunais. É cansativo mesmo ver tanta denúncia seguida de tanto julgamento que demora tanto até se transformar no cumprimento de pena. Isso quando se transforma em pena.
O processo civilizatório, no entanto, não passa apenas pela busca de medidas que acalmem a população, até porque nem sempre nos guiamos por um sentimento de justiça, mas, às vezes, por vingança pura e simples. Fosse diferente, nos revoltaríamos mais com os vários episódios de linchamento e chacinas registrados no país do que com a demora de um julgamento qualquer.
O avanço institucional ocorre quando construímos soluções que, mesmo contrariando a vontade popular, imponham alguma dose de racionalidade no modo de colocar limites ao Estado. E um dos limites mais racionais que precisamos estabelecer como sociedade é uma régua alta para garantir que o aprisionamento ocorra sempre que necessário, mas apenas quando necessário.
Está previsto que todos os casos graves terminem na cadeia desde que esgotadas as possibilidades de recurso. Fora isso, nem pensar. E por quê? Porque aprisionar é algo sério demais. Na escala de punições, só perde em gravidade para a pena de morte.
Na questão da prisão em segunda instância, criou-se uma falsa polêmica, como se houvesse o seguinte dilema: ou tem prisão em segunda instância, ou ninguém vai preso antes do julgamento definitivo. A polêmica é falsa porque, nos casos em que o acusado oferece perigo, pretende fugir ou colocou obstáculos ao processo, ninguém questiona que juízes e tribunais podem continuar prendendo antes do julgamento, na verdade antes até de iniciado o processo.
Sob esse aspecto, o Brasil não tem do que reclamar quando se compara com outros países. Ao contrário do que se diz por aí, é um recordista no uso da prisão provisória: 40% dos presos, algo em torno de 300 mil presos, não estão cumprindo pena, estão aguardando julgamento.
O que acontece com esses presos com a decisão do STF? Absolutamente nada. Essas pessoas vão continuar presas, altere-se ou não o entendimento do STF.
O que muda com a prisão em segunda instância é que, mesmo quem não se enquadra no perfil do preso preventivo, ou seja, pessoa que não oferece risco à ordem pública, não pretende fugir e não fez nada para obstruir o processo, alguém que, além de tudo, tem chance de ser inocentado, poderá ser preso antes do julgamento definitivo.
Por trás dessa vontade de prender antes da hora certa, está uma brutal distorção, um reendereçamento de responsabilidades. Decidiu-se punir o réu pela morosidade da Justiça. Não há, por trás do debate, nenhum problema filosófico, mas prático. Réus costumam recorrer de suas condenações. Recursos no Brasil costumam demorar para ser julgados. A sociedade tem pressa para ver a sentença cumprida. Conclusão: o réu tem que ser preso antes do julgamento do recurso.
O cerne do problema, portanto, não é a presunção de inocência, mas a demora que os tribunais levam para examinar os recursos do réu solto. Por que então não resolver o problema da demora? Mas não, em vez de o Judiciário procurar resolver os gargalos administrativos e burocráticos, talvez até criando mais vagas de juízes para dar conta do excesso de trabalho e assim conseguir julgar com mais rapidez o recurso do jurisdicionado, a solução encontrada é mitigar, flexibilizar, fazer um ajuste numa cláusula pétrea da Constituição Federal.
É preciso mais sobriedade e informação nesse debate. É preciso enxergar que mais do que prender este ou aquele réu, o Judiciário está eliminando um direito do cidadão, para não ter que corrigir as próprias mazelas. Para os que invocam a experiência de outros países, é forçoso indagar: algum outro país civilizado resolveria dessa forma seus problemas estruturais, eliminando cláusula pétrea da Constituição como forma de aliviar a própria ineficiência?
Texto publicado originalmente no Correio Braziliense e no Consultor Jurídico.
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