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Antígona, a luta das mulheres por direitos e os desencantos da nova ordem

Antígona, a luta das mulheres por direitos e os desencantos da nova ordem

Quando o apito
Da fábrica de tecidos
Vem ferir os meus ouvidos
Eu me lembro de você
Mas você anda
Sem dúvida bem zangada
E está interessada
Em fingir que não me vê
Você que atende ao apito
De uma chaminé de barro
Por que não atende ao grito tão aflito
Da buzina do meu carro?

[…]

(Noel Rosa, Três Apitos, 1932).

1. Introdução

Este artigo, inserido nas comemorações do 08 de março, reproduz outro, escrito em homenagem ao mestre Agostinho Ramalho, responsável por instigante encontro com Antígona, personagem de Sófocles, por ele apresentada como símbolo da resistência à barbárie. Sabe-se que a compreensão do Direito e das instituições aptas a concretizá-lo foi sendo alterada no processo da história. Não é objeto deste texto analisar essa caminhada. Mas, sim, inspirado em Ântigona, registrar a relevância da luta das mulheres pelo direito à igualdade, ao voto, às normas de proteção ao trabalho, em tempos em que o capitalismo “financeirizado”, movido por seu desejo insaciável de acumulação de riqueza abstrata (BELLUZZO, 2013), com força disruptiva e sem siques para contê-lo, vai dissolvendo todas as relações sociais e, no campo do trabalho, as relações salariais. Daí a referência à Antígona que, para enterrar Polínices, enfrentou a positividade simbolizada em Creonte, invocando leis não escritas, o Justo por natureza. E hoje, diante de duro ataque aos direitos sociais e de impensável regresso à barbárie, resignifica-se a tragédia para que Antígona, como símbolo de resistência à barbárie neoliberal, evoque a lei dos homens, a Constituição Federal de 1988, em brado pela superação das abissais desigualdades que costuram a tessitura social brasileira e por uma regulação pública que a todos busque integrar e em defesa da vida.

Os belos versos que Noel, nos Três Apitos, com ciúmes do gerente, escreveu à namorada Fina, em 1932, registram um tempo em que as mulheres brasileiras começavam a conquistar o status de sujeito de direitos (Biavaschi, 2007). Operárias que, ao som do apito das fábricas de tecidos, dirigiam-se ao trabalho “livre”, subordinado e remunerado. No caso de Fina, uma pequena fábrica de botões de madrepérola, em Andaraí (Máximo; Didier, 1990). Ainda que esses versos tenham recebido outras interpretações, ilustram aspectos interessantes da luta das mulheres por direitos e pelo reconhecimento da condição de cidadãs, tendo como símbolo, nos versos, a recente conquista da jornada de trabalho. Por outro lado, apontam, quem sabe, para o fetiche do automóvel como expressão da ascensão social, com o qual Noel estaria a buscar a atenção da amada.

Há outras leituras ancoradas no mito da doação, em síntese, uma fala roubada as trabalhadores por uma legislação que buscava neutralizar as lutas operárias, no sentido da disciplinarização e da conciliação de classes. Segundo essa interpretação, reducionista, o objetivo dominante da regulação trabalhista seria o de conquistar o controle político da classe trabalhadora, “concedendo”, em benefício do capital, direitos visando à integração subordinada dos trabalhadores ao poder estatal. Superada por moderna historiografia, essa leitura desconsidera tanto a tensão que subjaz ao processo de positivação dos direitos, olhando-o apenas a partir do arranjo das elites, quanto ao fato de que se está diante de um ramo do Direito profundamente social, cujas normas institucionalizadas pelo Estado contemplam direitos reivindicados no curso da história e que, compreendendo as profundas desigualdades acirradas pelo modo de produção capitalista, buscaram compensá-las, minimamente, via regulação pública alicerçada em princípios que são sua razão de ser.

A lente utilizada para a contrução da tese reducionista contempla apenas uma moldura: a que vê o processo de modernização e positivação das regras trabalhistas sob um único ângulo, o do submetimento. Se essa fosse efetivamente a compreensão mais adequada ao sistema de proteção social ao trabalho constituído de forma sistemática a partir de 1930 e, com idas e vindas, constitucionalizado pela Constituição de 1988, como se explicaria a necessidade de, em tempos de hegemonia do ideário ultraliberal, suprimir esse sistema público para, a partir dos interesses do capital, transtrocar a fonte dos direitos do que vendem a força de trabalho para colocá-la, de forma prevalente, na liberdade de contratar, no suposto do “encontro livre de vontades iguais”? Não seriam essas normas obstáculos ao livre trânsito de um capitalismo sem peias e que, por isso, precisam ser desconstituídas? As mulheres da luta tinham e têm compreensão adequada desse processo.

2. O esfacelamento da ordem liberal

A década de 1920 abriu com recessão em importantes economias. Em 1921, enquanto fábricas agonizavam e milhares estavam sem trabalho, Londres perdia a posição de praça financiadora do mundo. Ausente um núcleo hegemônico que regesse a orquestra, como acontecia a partir da City, em que o Banco da Inglaterra fazia esse papel, desnudava-se um sistema assimétrico e desigual, sem mecanismos capazes de impedir que as tentativas de defesa das economias nacionais para escapar dos efeitos das crises repercutissem de forma desastrosa para o conjunto dos países. Intensificavam-se as rivalidades entre as grandes potências industriais, em meio a um processo de esfacelamento dos pressupostos da Ordem Liberal. O capital buscava refúgio em centros mais seguros (Belluzzo, 2004).

No início de 1928, uma onda de especulação financeira desviava o dinheiro de seu uso produtivo. As nações endividadas, centradas na importação de capitais, sentiam os efeitos e, com a capacidade de pagamento enfraquecida, adotavam políticas monetárias e fiscais restritivas para defender suas paridades em ouro e manter os serviços da dívida. A especulação financeira atingiria seu ápice e, enquanto isso, o Federal Reserve continuava aumentando as taxas de juros. Em 1929, há o crash e, com ele, a Grande Depressão (Fano, 1981; Biavaschi, 2005). Esse colapso atingiu a economia mundial provocando abalo econômico, moral e político sem precedentes no capitalismo. Importantes experiências pioneiras buscavam superar a grave crise de então. Nessa démarche, receituário de gestão do capitalismo e um Estado de Bem-Estar universalista foi sendo consolidado, com sistema de proteção social e de direitos garantidos institucionalmente. O liberalismo econômico era colocado em xeque (Belluzzo, 2013).

A resposta engendrada à crise da ordem liberal do século XIX era antiliberal, quer de forma democrática, quer de forma autoritária (Oliveira, 1998:3-19). Às experiências de intervenção do Estado nas relações econômicas e sociais, com suas semelhanças e profundas diferenças, o Brasil não ficaria imune2, dialogando com os modelos planificadores internacionais de então e, neles, buscando referência para suas políticas de regulação extramercado (Biavaschi, 2007). O governo que assumiu em outubro de 1930 tinha como preocupação prioritária adotar medidas que impedissem o aprofundamento da crise interna e que buscassem superar as heranças coloniais. Mas além dessas questões internas (Fonseca, 1989; Biavaschi, 2007), os temas internacionais eram atenção permanente. Quanto às mulheres, graças à intensa luta que, na Europa, agitara o campo da política, sobretudo a das sufragistas, às brasileiras passou a ser reconhecido o status de cidadãs. Se, pelo Código Civil de 1916, lhes era atribuída a condição de seres relativamente incapazes para a prática de atos da vida civil, a dependenrem da outorga uxória, em 24 de fevereiro de 1932 poderiam votar. O Brasil foi o quarto país do hemisfério ocidental a assegurar-lhes esse direito pelo decreto nº 21706/1932, conquista que se deu não sem muita reivindicação e lutas, iniciadas antes mesmo da proclamação da República.

3. O direito ao voto e a luta das sufragistas

É difícil, contínua e incessante a luta das mulheres pela igualdade de direitos. Realidade no Brasil brutal e estruralmente agravada em relação às negras. Resquícios da herança patricarcal e escravocrata que costura nosso tecido social. Nessa luta por direitos, as sufragistas tiveram papel relevante. Segundo Maria Zina Gonçalves de Abreu (2002: 458) o movimento organizado feminista britânico remonta às décadas de 1830 e 1840, com a luta pelo sufrágio iniciada, especificamente, quando nova lei eleitoral inglesa assegurou o voto aos homens da classe média, excluindo as mulheres. Foram necessários cerca de sessenta anos para que o voto feminino passasse à condição de ideal principal das sufragistas britânicas, fundado na ideia de que a correção das desigualdades sociais e econômicas tinha como pressuposto o direito de votar (ibidem: 460). Mas, indendentemente de lento e difícil processo, a exclusão das mulheres pela lei eleitoral foi fundamental para a tomada de consciência sobre a relevância desse direito.

No Brasil (Hahner, 1981) da década de 1920, talvez sob efeito da conquista do voto feminino em alguns países da Europa e do contato de feministas brasileiras com sufragistas internacionais, teve inicio crescente movimento em favor dos direitos da mulher. Em 1920, Bherta Lutz, bióloga que retornara de alguns anos de estudos na Sorbonne, em Paris, uma das líderes do movimento sufragista brasileiro, fundou a Liga para a Emancipação Intellectual da Mulher. Nas décadas de 1920 e 1930, as militantes de seu grupo eram advogadas, médicas, engenheiras, servidoras públicas, professoras. Em 1922, a Liga transformou-se na Federação Brasileira das Ligas pelo Progresso Feminino e, logo depois, na Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, FBPF, filiada à Aliança Internacional pelo Voto Feminino. Em 1922, a FBPF contava com 170 mulheres. O movimento ampliou-se para outros estratos sociais. Em 1928, a FBPF encaminhou manifesto à nação como “Declaração dos Direitos da Mulher”, encabeçado por Lutz, colocando o voto feminino como fundamental aos direitos humanos (Hahner, 1981: 110 -119). O voto não era universal, nem secreto. As fraudes eleitorais sucediam-se, tanto que a plataforma da Aliança Liberal que buscou, sem êxito, eleger Vargas e João Pessoa para Presidente e Vice do pais, incluiu a reforma eleitoral como promessa de campanha, com ênfase ao voto feminino.

Uma das primeiras medidas do Governo Provisório iniciado em outubro de 1930 foi a elaboração do novo código eleitoral. Constituída comissão redatora da proposta, dela participou Lutz. Abria-se a possibilidade do voto feminino (Hahner, 1981:119). No final de agosto de 1931, foi publicado o trabalho da comissão: um projeto provisório publicado em jornais para receber emendas. As mulheres indignaram-se. O voto feminino, ao contrário do construído na comissão, aparecia com limites: poderiam votar as solteiras ou viúvas, com renda própria, ou as casadas desde que autorizadas pelos maridos. O protesto veio forte. Várias mulheres, lideradas por Lutz, reuniram-se com Getúlio para reclamar contra a restrição. O decreto foi republicado sem ela e, em 24 de fevereiro de 1932, finalmente, contemplou o voto universal e secreto, em igualdade de condições para mulheres e homens, vedado aos analfabetos. O Brasil foi o quarto país do hemisfério ocidental a assegurar esse direito às mulheres, seguindo o Canadá, os EUA e o Equador. No ano seguinte, as brasileiras participariam da escolha dos candidatos à Assembléia Nacional Constituinte. O voto era facultativo. Foi a Constituição de 1934 que elevou o direito às mulheres de se alistarem como eleitoras à condição de direito/dever. Com essa vitória, a luta das mulheres por direitos iniciava seu processo de concretização, difícil, tenso (Biavaschi, 2007).

É verdadeiro que antes do Código Eleitoral de 1932 mulheres buscaram, individualmente, o reconhecimento do direito ao voto. Foi o caso de Celina Guimarães Viena, por exemplo. Formada pela Escola Normal de Natal, fez uso da lei 660, de outubro de 1927, que definia regras para solicitações de alistamento e, junto ao cartório eleitoral de Mossoró, no Rio Gande do Norte, requereu integrar a lista de eleitores. É que ao regulamentar o sistema eleitoral, Rio Grande do Norte acrescentou artigo que definia o direito ao sufrágio “sem distinção de sexo”. Celina pode votar nas eleições de 05 de abril de 1928. No entanto, seu voto não foi validade pela Comissão de Poderes do Senado. Fato que, segundo a historiadora Mônica Karawejczyk, não afasta a relevância dessa iniciativa como marco da luta pela inserção das mulheres na política eleitoral (Karawejczyk, 2013).  

Outra experiência interessante foi a de Alzira Soriano de Souza que, em 1928, se elegeu na cidade de Lajes sem, contudo, poder exercer seu mandato em face da decisão da Comissão de Poderes do Senado que anulou os votos das mulheres. Com o novo Código Eleitoral de 1932, a médica Carlota Pereira de Queirós foi a primeira mulher deputada federal no Brasil, integrando a Assembélia Nacional Constituinte de 1934. São registros que mostram a difícil luta das mulheres pela igualdade de direitos.

Mas além do direito ao voto, decreto de 17 de maio de 1932 assegurou às mulheres direitos como: salário igual para trabalho de igual valor sem distinção de sexo e normas às gestantes. Já o decreto de 25 de novembro de 1932, que instituiu as Juntas de Conciliação e Julgamento, de natureza administrativa e embriões da Justiça do Trabalho, foi marco na luta emancipatória das mulheres ao assegurar-lhes a possibilidade de proporem suas reclamações perante essas Juntas, individualmente ou por meio de seus sindicatos, independentemente da outorga do marido. Conquista muito significativa, na medida em que o Código Civil de 1919 atribuia às mulheres a condição de relativamente capazes. Ao ser instituída a carteira de trabalho, também lhes foi assegurado o direito de obtê-la, mesmo sem essa outorga.

Nesse processo, as mulheres foram conquistando direitos decorrentes da prestação do trabalho por conta alheia como, em 1935, com a Lei 62/35, a vedação da despedida das grávidas, aliás, direito não incorporado pela Consolidação das Leis do Trabalho, CLT, de 1943, que assegurou a licença maternidade, mas não a estabilidade da gestante. Estabilidade essa incluída no sistema de proteção às mulheres bem depois, pelo artigo 10º do Ato das Disposições Transitórias da Constituição de 1988, tendo como fonte material a luta das mulheres, sobretudo em suas organizações sindicais. Outros direitos foram incorporados pela CLT que, conquanto alterada em muitos aspectos desde sua vigência, continuou sendo o estatuto de proteção ao trabalho que, com normas e princípios ampliados pela Constituição de 1988, acabou violentamente atingido pela “reforma” trabalhista vigente desde novembro de 2017.

4. A luta das mulheres e os direitos de proteção ao trabalho

Os processos antigos, anteriores à CLT e à instalação da Justiça do Trabalho, propostos perante as antigas Juntas de Conciliação e Julgamento, JCJs, criadas em 1932, revelam como as trabalhadoras brasileiras que, em 1932, conquistaram, entre outros, o direito ao voto, apresentavam suas reclamações perante as recém instaladas JCJs, independentemente da concordância do marido (exigência do Código Civil de 1916, como se viu), postulando, individualmente ou por meio de seus sindicatos, o cumprimento das novas regras de proteção ao trabalho. Na quase totalidade, essas ações envolviam interpretações da Lei 62, de 1935 (a Lei da Despedida), com discussões sobre a validade da despedida e decorrente reintegração ao emprego, justa causa, aviso prévio, relação de emprego, representação sindical dos associados aos sindicatos, competência dos órgãos (Conselhos Regional e Nacional do Trabalho e JCJ´s) que estavam sendo criados, fundamentais para a construção e afirmação de direitos que se institucionalizavam (Biavaschi, 2005; Biavaschi, 2007).

Esses processos escancaram as dificuldades, as precariedades e, a partir delas, os germens de um arcabouço jurídico em formação, disciplinando procedimentos e dotando as instituições de condições para poder dizer o direito e fiscalizar seu cumprimento, em um processo dinâmico em que uma burocracia de Estado também ia sendo constituída. Tudo em uma sociedade em luta para superar suas heranças escravocratas e afirmar-se como nação moderna. Nessas reclamações, as mulheres aparecem com papel destacado. Nos despachos desenhados à mão nesses processos, o traço feminino dos servidores era presença reiterada. Nos pleitos, estampava-se o anseio e a esperança de estabilidade. (Biavaschi, 2005; Biavaschi, 2007). É que se com a abolição, em 1888, introduzira-se a tutela ao direito de ir embora, com a Lei 62/35 a tutela era do direito de ficar, de pertencer. Construções que se relacionam com a concretização dos princípios da continuidade da relação de emprego e da dignidade humana, fundamentos do novo direito que, então, se constituía. Talvez nenhum outro ramo do direito se apresente com tal fisionomia. Há quem afirme que esse ramo é um dos elementos de vitória da civilização contra a barbárie. Não à toa, vem sofrendo duros golpes em tempos de regresso liberal.

5. A conquista e o regresso.

Em recente artigo Belluzzo discute os processos de regresso social e econômico do mundo contemporâneo os quais, ao mesmo tempo em que exortam o indivíduo e seus sucessos pessoais, contraditória e cruelmente controlam os “cidadãos no propósito de aniquilar os resíduos de sua capacidade crítica” (2021: 22-23). Foquemos as contradições. O Brasil da década de 1930 foi o 4º país do hemisfério em que as mulheres conquistaram o direito ao voto e que, também nesse período, viram sistematizados seus direitos trabalhistas, sendo liberadas para retirar a carteira de trabalho e apresentar suas reclamações perante as rescém criadas JCJ´s, independentemente da outorga marital. Isso não foi pouca coisa. É verdadeiro que muitas foram as fogueiras em que antes arderam como “bruxas” ao clamarem por direitos iguais. Mesmo assim, a ferro e fogo, foram produzindo um movimento de emancipação que antecedeu e perpassou a greve de 08 de março de 1857, em que operárias têxteis de Nova Iorque, na luta pela redução da jornada, ocuparam a fábrica. Cerca de 130 morreram, queimadas. O movimento ganhou mundo.

No Brasil, as normas públicas de proteção ao trabalho incorporadas pela CLT, de 1943, foram estendidas aos trabalhadores rurais e domésticos pela Constituição de 1988 que as elevou à condição de direitos sociais fundamentais. Foi justo na vigência desse sistema, entre 2004 e 2014, que o Brasil apresentou os melhores índices de ampliação do emprego e incorporou os mais vulneráveis via politicas públicas que, além de elevarem a base salarial, permitiram a muitos o acesso antes negado ao conhecimento e às universidades. Ainda que a dialética senhor/escravo não tenha sido superada, estudos mostram, no período, crescimento do assalariamento, elevação dos ganhos do trabalho em termos reais e formalização dos contratos (Krein; Biavaschi, 2015). A política de valorização do salário mínimo contribuiu para dinamizar a economia e impactou positivamente as negociações salariais. Programas sociais como, entre outros, o Bolsa Família, Minha Casa Minha Vida, Mais Médicos, política de quotas, contribuíram para a inclusão de segmentos expressivos da população.

Dilma assumiu o segundo mandato em janeiro de 2015 em cenário de acirramento da grave crise econômica. Desde o primeiro momento, as forças derrotadas em 2014 contestaram seu poder de governar e, ao embalo da grande imprensa e com apoio de elites econômicas e financeiras internas e internas ao país, prepararam as condições para o impeachment, finalmente proposto e aprovado pela Câmara e pelo Senado Federal (Biavaschi, 2016), sem qualquer crime que o autorizasse. Ainda em 2015, em meio à pressão dos setores econômicos e financeiros nacionais e internacionais, o então Vice Presidente Michel Temer, por meio de seu partido, PMDB, apresentou o programa “Uma Ponte para o Futuro”, com diretrizes que, na visão de seus apoiadores, impulsionaria o crescimento econômico. A não aceitação por Dilma dessa proposta, centrada em rígido programa de ajuste fiscal e reformas liberalizantes, foi uma das razões, entre outras, para a instauração do processo de impeachment da primeira mulher eleita Presidenta do Brasil.

A partir do impeachment, verdadeiro golpe institucional, as diretrizes estruturantes do programa do PMDB ganharam força, objetivando retirar do Estado a condição de indutor do crescimento econômico e coordenador de políticas públicas (Rossi: Mello, 2017). Nesse bojo, foi aprovada a Emenda Constitucional nº 95 que congelou o teto do gasto público por vinte anos, com impactos na educação e na saúde que se fazem sentir de forma dramática. A reforma da previdência, encaminhada por Temer e aprovada no atual governo, a trabalhista, vigente desde novembro de 2017, as Medidas Provisórias, em especial as encaminhadas durante a pandenia da Covid 19 e os Projetos de Emenda Constitucional, PECS 186, 188 e 32, bem como as iniciativas de privatização, são expressões desse movimento regressivo e fragilizador dos espaços públicos de proteção social. Ao aprovar a “reforma” trabalhista, o Senado acolheu o falacioso argumento da “modernização” para retirar da legislação do trabalho a alegada “rigidez” que, na visão de seus defensores, contribuia para ampliar o desemprego e aprofundar a insegurança jurídica.

Trata-se da mesma e surrada “promessa” que embalou a reforma da previdência e que, ainda hoje é utilizada na defesa das reformas liberalizantes em andamento, como a administrativa. São “cantos da sereia” incorporados como verdades, mesmo que não haja qualquer evidência empírica de que, retirando ou flexibilizando direitos, dinamiza-se a economia, ampliam-se os postos de trabalho e aumenta-se a produtividade. Aliás, as experiências nesse sentido evidenciam seu desacerto onde implementadas, provocando mais precariedade (CESIT, 2017). As mulheres da luta sabem disso, até porque são elas, sobretudo as negras, as mais atingidades pelas reformas liberalizantes e pelas medidas insuficientes adotadas na pandemia que, na contramão dos demais países, não asseguram renda, emprego e, muito menos, os fluxos de renda essenciais à economia que os adeptos das reformas dizem defender.

O acompanhamento dos dados do mercado de trabalho a partir da “reforma” trabalhista mostram, por um lado, brutal impacto no número de processos ajuizados perante a Justiça do Trabalho. Nesse sentido, pode-se dizer cumprida a promessa de reduzir a judicialização. Isso sem qualquer redução, ao contrário, das lesões sofridas pelos trabalhadores, cada vez mais vulneráveis no desespero pela sobrevidência. Por outro lado, o que os dados demonstram (PNAD –C, móvel), além de cerca de 80 milhões de brasileiros e brasileiras eliminados da força de trabalho e de um desemprego cada vez mais alarmente, é o aumento dos supostamente “por conta própria”, desprotegidos socialmente, cenário em as mulheres, sobretudo as negras, apresentam maior precariedade, aprofundando-se as históricas assimetrias do mercado de trabalho. Talvez porque, invocando Belluzzo, o direito que nasce das relações mercantis não reconhece nenhum outro fundamento senão a igualdade entre os produtores de mercadorias. Talvez porque a Lei Áurea tenha livrado o país de seus inconvenientes mas, quanto aos negros às negras, abandonou-os à própria sorte, resquícios de uma herança que se manifesta nas formas de preconceito e discriminação e, aflorando dramaticamente, tornam vivo o refrão do Rappa: A carne mais barata no mercado É a carne negra. E mesmo que a igualdade substantiva seja assegurada pela Constituição de 1988, as mulheres, em especial as negras, são as que ganham menores salários para os mesmos postos de trabalho, situação que a pandemia escancara e aprofunda.

6. Considerações finais

Tem sido longa e difícil a luta das mulheres pela igualdade positiva. Antígona, da tragédia de Sófocles, colabora com os objetivos deste artigo, projetando luz à caminhada. Trata-se de evocação do passado (a tragédia grega) que, iluminando o presente, melhor permite que se obtenham elementos aptos à tal caminhada, rumo a um futuro menos desigual e mais justo. Antígona, além de colaborar para que se obtenham esses elementos, é símbolo de resistência e de possibilidades. Sua releitura hoje, quando o país atinge e maior média de mortos por dia no desgoverno da pandemia da COVID 19, e em que: diálogos vazados entre Deltan Dallagnol, seus aliados de corporação e o ex-juiz da causa evidenciam flagrante conluio entre julgador e acusador, expondo, mundo afora, um escândalo de impensáveis dimensões a revelar “estágio avançado de deterioração do Sistema Judiciário brasileiro” (Belluzzo, 2021: 22); o individualismo pernicioso invade todas as esferas da sociabilidade humana à ação de um capitalismo que, na sua expressão pura e sem diques para contê-lo, vai erodindo as relações sociais em suas múltiplas dimensões; os programas de desconstrução da proteção social do trabalho e das instituições públicas nos devolvem aos tempos do putting out, registrar a luta das mulheres e suas conquistas é uma das tarefas do possível que pode contribuir para com o processo de superação dos raízes escravocratas e patriarcais que estruturam a sociedade brasileira. Tudo isso, parafraseando-se Belluzzo, na tentativa de que a banalidade do mal não se transmute no mal da banalidade (ibidem: 23).

7. Referências bibliográficas

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1 Desembargadora aposentada do TRT4, doutora e pós doutora em Economia Social do Trabalho, IE/UNICAMP, pesquisadora no CESIT/UNICAMP e professora convidada na pós-graduação do IE e IFCH/UNICAMP. O artigo também se fundamenta na tese de doutorado em Economia Social do Trabalho, encaminhada ao IE/Unicamp em 2005.
2 Desde a Rússia de 1917, passando pelo pioneirismo dos nórdicos, pelo nazi-fascismo, pelo New Deal, dos EUA.
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