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Carta a Sigmaringa, decano da lucidez e da diplomacia

Carta a Sigmaringa, decano da lucidez e da diplomacia

“Sentiremos sua falta. A existência de figuras públicas conciliadoras que não abrem mão de princípios e valores, papel imprescindível na sociedade democrática, será cada vez mais necessária na vida brasileira, hoje sob a hegemonia de pequenos personagens e com polarizações estúpidas e insanas”.

Caro amigo Sig,

Enquanto o país ruidosamente se preparava para a posse do seu 38º presidente, você arrumou as malas e partiu discretamente. Não quero crer que tenha sido um ato de protesto.

Embora legítimo reencontrar Ulysses Guimarães, Mário Covas, Marcelo Déda, Freitas Nobre, Miguel Arraes, Severo Gomes e outros velhos amigos – para discutir o Brasil sob a perspectiva do eterno – não seria de sua índole, forjada em anos de combate, partir em um momento em que sua marcante e suave presença seria ainda mais necessária e determinante. Sentiremos sua ausência nestes novos tempos de desvario.

Como poucos, você abraçou valores essenciais da vida republicana. Na carreira política, adotou a riqueza do diálogo como fundamento para a tolerância, para a resolução de conflitos e para a convivência pacífica entre adversários.

Sua atuação como advogado, foi iluminada pela lucidez e pelo senso de conveniência e oportunidade. Lutou, com coragem e ousadia, pelos valores essenciais ao ser humano, sacrificando-se, pessoal e profissionalmente, sem qualquer tipo de lamento ou pesar.

Nunca se omitiu, nem tampouco se escondeu na conveniência do silêncio. Como você ensinava, os valores absolutos do Direito não podem ser flexibilizados ao calor das circunstâncias, visto produzir tão somente efeitos aparentes e, ao fim e ao cabo, frustrarem legítimas causas públicas que exigem maturação para germinar na vida institucional de forma vigorosa e efetiva.

Impecavelmente discreto, você sempre pressentiu os perigos da subordinação do Direito aos aplausos da multidão. Você demonstrou que os avanços institucionais na vida republicana são graduais, conquistados politicamente, dia após dia. E que as soluções fáceis, geralmente, são opções que podem até seduzir uma sociedade exausta e sofrida, mas tem sempre o efeito deletério de minar os pilares da Democracia e do Estado de Direito.

Nas batalhas contra o regime autoritário, em defesa das liberdades democráticas e, em especial, na luta pela anistia, você soube materializar com maestria sua vocação para o exercício da advocacia.

Com muita coragem, ao lado de Dom Paulo Evaristo Arns, do Reverendo Jaime Wright, e dos combativos advogados Eni Moreira, Mário Simas, Luís Eduardo Greenhalgh e Paulo Vanucchi, você foi decisivo na construção do mais detalhado diagnóstico do aparelho de repressão política-policial que funcionou durante o regime militar. Registro histórico elaborado com absoluto rigor científico e que, por isso mesmo, goza de muito respeito e credibilidade.

Nessa incansável atividade, foi possível ressignificar a energia dos ideais de justiça, de liberdade e as rebeldias de uma geração de jovens estudantes dos anos 60 cujos sonhos foram esmagados com prisões, exílios, torturas e mortes.

Talvez sua alma e coração, tão generosos, tenham sido feridos nestes tempos tão estranhos. Ouvir lideranças entoarem, em alto e bom som, louvores a torturadores, deve ter sido devastador. Para quem esteve na primeira fila do pelotão da resistência democrática, nos anos duros da repressão, imagino o quão difícil terá sido ouvir infâmias e vilipêndios contra homens e mulheres que lutaram pela democracia sacrificando seus próprios corpos e suas próprias vidas.

Tanto ou ainda mais difícil foi, para você, meu amigo, testemunhar o aprofundamento da judicialização da política e da nefasta politização do judiciário, cujo ápice, com a prisão injusta e criminosa de um dos maiores líderes da esquerda mundial, lhe foi especialmente surpreendente e perturbador.

Na noite anterior a essa arbitrária prisão, e nos dias que se seguiram com tentativas reiteradamente frustradas de revertê-la, você já não fazia mais questão de esconder a tristeza e o desencanto que tanto lhe fizeram mal.

O ativismo judicial denunciado por Pedro Serrano, Celso Antonio Bandeira de Mello, Weida Zancaner, Gisele Cittadino, Lenio Streck, Toron, Rubens Casara, Geraldo Prado, Juarez Tavares, Leonardo Isaac, Kakay, Fábio Tofic e por outros juristas igualmente reconhecidos e admirados foi objeto de acalorados debates em que, recorrentemente, nos socorríamos de sua notável sabedoria.

Difícil esquecer, também, o quanto lhe foi constrangedor, para dizer o menos, assistir ao desmonte de um Tribunal com inequívoca vocação contra majoritária, com graves e preocupantes riscos para a efetivação dos direitos fundamentais que lhe foram sempre tão caros. O papel de avô, ou de “tio”, com que você, com humor, costumava se identificar, foi-lhe um verdadeiro bálsamo frente a mares tão revoltos…

O que o Brasil precisa fazer para dar certo? — a pergunta que consumia horas e horas de boa conversa com amigos queridos como Luiz Inácio Lula da Silva, Sepúlveda Pertence, Luiz Eduardo Greenhalgh, Airton Soares, José Genoíno, Jaques Wagner, Milton Seligman, Fernando Jorge, Mauro Dutra, José Eduardo Cardozo, Izzo, Guiga, Cláudio Marçal, Rui Falcão, Ernesto Tzirulnik, Gilmar Mendes e com uma longa e prestigiada lista de amigos sinceros que, por questão de espaço, não cabe aqui — permanece dramaticamente atual.

Sentiremos sua falta. A existência de figuras públicas conciliadoras que não abrem mão de princípios e valores, papel imprescindível na sociedade democrática, será cada vez mais necessária na vida brasileira, hoje sob a hegemonia de pequenos personagens e com polarizações estúpidas e insanas. Aliás, suas façanhas e habilidades eram exibidas até mesmo no futebol, prática que desfrutou com amigos até quando pôde resistir à grave enfermidade que o levou de nós.

Reverenciamos sua grande paixão, Sig, e o Brasil de fato perdeu um brilhante zagueiro, mas tenha certeza de que ganhamos mais com nosso craque da Advocacia. Ao nos deixar neste momento, em que a Pátria permanece como narrativa crucial, lembramos de você, querido e amado amigo, e de Vinícius, outro fluminense iluminado, hoje também do lado de lá. O poeta falava da pátria com carinho, como se estivesse diante de uma mulher amada. “Pátria minha… A minha pátria não é florão, nem ostenta Lábaro não”, minha pátria é “um querer bem”, escreveu o imortal.

Você, Luiz Carlos Sigmaringa Seixas, foi esse brasileiro que tratou a Pátria com ternura, sem pompa, bravatas ou rompantes. Só podemos ser gratos a sua inspiradora trajetória. Ao sopesar a dimensão do seu conhecimento político e jurídico, encontro na simplicidade e humildade os alicerces de seu singular equilíbrio pessoal.

Nos últimos quase 20 anos, tive o prazer e a alegria de conviver contigo, recebendo, sempre, valiosas lições. Em nossas caminhadas pelas areias brancas e agora tristes da Praia dos Coqueiros, e nos inúmeros jantares e almoços que fazíamos sem motivo algum, permaneci, sempre, absorto nos  ensinamentos que emanavam de seus gestos e ações.

Convívio edificante e engrandecedor. Um privilégio… Fui, como muitos, testemunha de sua generosidade e compaixão, sobretudo com os que menos esperavam e mais precisavam… Característica marcante de sua linda família, e em especial de seus filhos Guilherme e Luiza e de sua querida esposa Marina.

Somos, hoje, órfãos, mergulhados em memórias que, de alguma forma, ajudam a amenizar a dor dessa profunda e irreparável perda.

Orgulhosos, assistimos, todos, às inúmeras manifestações de afeto e de carinho que você merecidamente recebeu por ocasião de sua precoce e tão doída “passagem”. E não podia ser diferente…

Você sempre deu o melhor de si. E venceu! Fecho os olhos e sinto  sua gentil e inesquecível presença, na certeza de que você realmente viverá no melhor de mim.

Para honrar o afeto que nos une, e a todos aqueles que trilharam o bom caminho ao seu lado, sempre cantaremos a sua luminosa existência. Sigmaringa… presente!

Artigo publicado originalmente em O Estado de São Paulo.

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