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Da legítima defesa de agente policial ou de segurança pública: “Projeto Anticrime”

Da legítima defesa de agente policial ou de segurança pública: “Projeto Anticrime”

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No artigo da semana passada – “Do excesso na legítima defesa e o projeto “anticrime”: separando o joio do trigo[1]– após afirmar que o “Projeto Anticrime”, ainda que involuntariamente, acabou por reconhecer o que boa parte da doutrina já reivindicava[2], ou seja, a inclusão em lei do excesso escusável, como fazia o natimorto Código Penal de 1969[3] e fazem outras legislações.[4]

Disse, ainda, que o excesso exculpante proveniente de medo, pavor, susto, perturbação de estado de ânimo etc., se fundamenta na inexigibilidade de conduta diversa (causa legal e extralegal de exclusão da culpabilidade), uma vez que não era exigível do agente um comportamento conforme ao Direito.

Tudo em razão da inclusão do parágrafo 2º no art. 23, in verbis:

“Art.23………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………

§2º O juiz poderá reduzir a pena até a metade ou deixar de aplicá-la se o excesso decorrer de escusável medo, surpresa ou violenta emoção”. (NR)

Terminei o referido artigo dizendo que é necessário separar o joio do trigo, pois, diferentemente do que vem sendo dito, não é esse dispositivo (art. 23, § 2º) que, necessariamente, resultará no incremento da violência policial ou que, como vem sendo propagado, outorga ao policial uma abominável “licença para matar”. Na verdade, o “Projeto Anticrime” trata, em outro dispositivo legal, da legítima defesa do “agente policial ou de segurança pública” (art. 25, incisos I e II do “Projeto Anticrime”), que merece severas crítica, mas que será analisado posteriormente.

Assim, conforme prometido – promessa é dívida – venho agora tratar da legítima defesa do “agente policial ou de segurança pública” (art. 25, incisos I e II do “Projeto Anticrime”).

O “Projeto Anticrime” inova, substancialmente, ao propor a inclusão no Código Penal da figura da legítima defesa de “agente policial ou de segurança pública”. Conforme já adiantado, a referida inovação – desnecessária e perigosa – pode levar ao aumento de homicídios praticados pela polícia e encobertos por uma suposta, mas inexistente, legítima defesa. Não é demais martelar que a polícia brasileira é a que mais mata no planeta. Ressalta-se, ainda, que a maioria das vítimas são os mais vulneráveis: jovens, negros, pobres e semianalfabetos.

Não são raras as vezes que boa parte da sociedade ignora ou, até mesmo, aprova atitudes da polícia que procura através dos forjados “autos de resistência[5] ou da desqualificação completa das vítimas – “bandidos” – justificar suas ações. Outra forma bastante comum de tentar justificar suas ações é a alegação – que não resistiria a uma investigação séria – de que as mortes ocorreram em confrontos com criminosos armados e em tiroteios.

Necessário destacar, como faz com toda propriedade ORLANDO ZACCONE, que “a polícia mata, mas não mata sozinha[6].  Na verdade, quem mata é o sistema penal. O sistema mata os pobres, os negros, os favelados, analfabetos, enfim, os vulneráveis. Quando não mata, encarcera. Conforme salientou o desembargador SÉRGIO VERANI, na obra “o aparelho repressivo-policial e o aparelho ideológico-jurídico integram-se harmoniosamente. A ação violenta e criminosa do policial encontra legitimação por meio do discurso do Delegado, por meio do discurso do Promotor, por meio do discurso do Juiz[7].

Como é sabido, as Polícias Militares brasileiras têm sua origem nas Forças Policiais, que foram criadas quando o Brasil era Império. A corporação mais antiga é a do Rio de Janeiro, a “Guarda Real de Polícia” criada em 13 de maio de 1809 por Dom João 6º, Rei de Portugal, que na época tinha transferido sua corte de Lisboa para o Rio, por causa das guerras na Europa, lideradas por Napoleão. Foi este decreto que assinalou o nascimento da primeira Polícia Militar no Brasil, a do Estado da Guanabara.

A violência policial no Brasil tem raízes históricas. Quando a família real chegou ao Rio de Janeiro encontrou, segundo historiadores, uma “população hostil e perigosa” e muitos africanos. Com o temor que se repetisse no Brasil a mesma revolta de escravos ocorrida no Haiti em 1792, a realeza de Portugal logo formou uma força policial para controlar as chamadas “classes perigosas” que viviam no Rio. Constata-se assim que a função original e prioritária da polícia era defender a elite dirigente (realeza e seus aliados) contra as “pessoas perigosas e de cor” e, também, de recapturar escravos fugidos. Talvez aí resida a explicação para que até hoje, 200 anos após sua criação, a polícia continue agindo preconceituosamente e para defender prioritariamente os interesses das classes dominantes

Não se pode negar que a repressão violenta ao crime, ou melhor, ao criminalizado sempre foi uma “delegação tácita conferida à polícia por parte dos grupos dominantes[8]. É inegável, também, que o direito penal tem por alvo, preferencialmente, o crime comum (furto, roubo, “tráfico” e uso de drogas) – “crime de rua” – praticado por aqueles que são criminalizados, ou seja, os pobres, negros e excluídos da sociedade.

Em pesquisa realizada no ano de 2011 a Anistia Internacional constatou que nos vinte países que ainda mantêm a pena de morte, em todo o mundo, foram executadas 676 pessoas, sem contar as execuções ocorridas na China, que não fornece dados.  No mesmo período, informa ORLANDO ZACCONE[9], somente os estados do Rio de Janeiro e São Paulo produziram 961 mortes a partir de ações policiais, totalizando um número 42,16% maior do que de vítimas da pena de morte em todos os países pesquisados. Em 2014, de acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, foram 3.022 casos, média de um homicídio a cada três horas. Número de vítimas que supera dos atentados de 11 de setembro nos EUA, em que 2.977 pessoas morreram. O número de mortes provocadas pela polícia em 2014 é 37,2% maior que o registrado em 2013. Em 2017, o Brasil teve 5.012 mortes cometidas por policiais na ativa, um aumento de 19% em relação a 2014.

De acordo com o “Projeto Anticrime”, o Código Penal passará a ter a seguinte redação, in verbis:

“Art. 25………………………………………………………………………………………………………………..

Parágrafo único: observados os requisitos do caput, considera-se em legítima defesa:

I– o agente policial ou de segurança pública que, em conflito armado ou em risco iminente de conflito armado, previne injusta e iminente agressão a direito seu ou de outrem; e

II- o agente policial ou de segurança pública que previne agressão ou risco de agressão a vítima mantida refém durante a prática de crimes. (NR)

Os dispositivos em comento carecem de legitima justificativa e, certamente, levarão ao incremento da violência policial.

No que diz respeito ao inciso I do artigo 25 do projeto, adverte-se que a expressão “conflito armado” não está definida em lei, o que, certamente, resultará em interpretações subjetivas, amplas e equivocadas. Note-se, ainda, que a expressão “conflito armado” é quase sempre relacionada a ideia de “guerra” e, consequentemente, a de “inimigo” o que acabará levando, inevitavelmente, ao abominável conceito de “direito penal do inimigo”.

Como já dito alhures, ao inimigo é negada a condição de pessoa. A ele (inimigo) são negados os direitos e as garantias fundamentais. Assim, o conceito de inimigo jamais se compatibiliza com o Estado de direito. O conceito de inimigo é próprio de um Estado de exceção ou de uma guerra.

Referindo-se ao inimigo no direito penal, RAÚL ZAFFARONI assevera que:

O poder punitivo sempre discriminou os seres humanos e lhes conferiu um tratamento punitivo que não correspondia à condição de pessoas, dado que os considerava apenas como entes perigosos ou daninhos. Esses seres humanos são assinalados como inimigos da sociedade e, por conseguinte, a eles é negado o direito de terem suas infrações sancionadas dentro dos limites do direito penal liberal, isto é, das garantias que hoje o direito internacional dos direitos humanos estabelece universal e regionalmente.[10]

Entende-se, totalmente desnecessário a introdução dos dispositivos citados (art. 25, I e II), uma vez que no atual Código Penal estão previstas as excludentes de ilicitude, entre as quais, o estrito cumprimento do dever legal e a legítima defesa, que, se evidentemente comprovado, amparará o policial e o agente de segurança pública.

Não há razão alguma, jurídica e legal, para que seja dado um tratamento especial ao policial e ao chamado agente de segurança pública. Como já dito, a norma de caráter geral que trata das excludentes de ilicitude é mais que suficiente para amparar o policial e qualquer pessoa que aja sob o pálio de uma das causas de justificação.

Necessário dizer, também, que policiais são assassinados. Segundo levantamento feito pelo jornal Folha de São Paulo no ano de 2012 um policial foi vítima de homicídio a cada 32 horas, no total de 229 policiais. Em 2014, 114 policiais foram mortos no Rio de Janeiro.

Contudo, nada, absolutamente nada, justifica a alteração legislativa proposta no “Projeto Anticrime”, caso contrário, assistirá razão aqueles que afirmam que o referido projeto propõe outorgar ao policial uma espécie de “licença para matar”, nos termos que já declarou o então candidato e atual presidente da República.[11]

Notas e Referências

[1]Disponível em:< https://emporiododireito.com.br/leitura/do-excesso-na-legitima-defesa-e-o-projeto-anticrime-separando-o-joio-do-trigo

[2] VILCHEZ GUERRERO, Hermes. Do excesso em legítima defesa. Belo Horizonte: Del Rey, 1997.

[3] “Não é punível o excesso quando resulta de escusável medo, surpresa, ou perturbação de ânimo em face da situação” (art. 30, § 1º do CP de 1969).

[4] De igual modo o Código Penal Militar prevê o excesso escusável, “Não é punível o excesso quando resulta de escusável surprêsa ou perturbação de ânimo, em face da situação” (Parágrafo único do art. 44 do Dec-Lei nº 1.001, de 21/10/1969).

[5] De acordo com Orlando Zaccone “o auto de resistência é um inquérito policial instaurado para verificar a legitimidade ou não de uma ação policial que resultou em morte. Então o inquérito é instaurado e vai ao titular do direito de ação, que é o Ministério Público, que, na sua grande maioria arquivam os casos, com uma manifestação do promotor defendendo que o policial agiu em legítima defesa”. (ZACCONE, Orlando. Indignos de vida: a forma jurídica da política de extermínio de inimigos na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revan, 2015).

[6] Idem.

[7] VERANI, Sérgio. Assassinatos em nome da lei. Rio de Janeiro: Aldebarã, 1996. Apud  ZACCONE, ob. cit.

[8] MACHADO DA SILVA, Luiz Antônio. Violência e ordem social. Crime, polícia e justiça no Brasil. Organização Renato Sérgio de Lima, José Luiz Ratton e Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo. São Paulo: Contexto, 2014.

[9] ZACCONE, Orlando. Indignos de vida: a forma jurídica da política de extermínio de inimigos na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revan, 2015.

[10] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. Tradução de Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Revan, 2007, p. 11.

[11] “Nós vamos brigar pela excludente de ilicitude. O policial militar em ação responde, mas não tem punição. Se alguém disser que quero dar carta branca para policial militar matar, eu respondo: quero sim. O policial que não atira em ninguém e atiram nele não é policial”. (Disponível em:< https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2017/12/14/bolsonaro-diz-que-quer-dar-carta-branca-para-pm-matar-em-servico.htm Acesso em 25/2/2019).

Texto publicado originalmente no Empório do Direito.

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