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Estamos vivendo uma tragédia, mas precisamos resistir, diz Raduan Nassar sobre Bolsonaro

Estamos vivendo uma tragédia, mas precisamos resistir, diz Raduan Nassar sobre Bolsonaro

A obra breve e celebrada de “um livro e meio“, as entrevistas raras durante os anos e a troca da literatura pelas atividades em uma fazenda no interior de São Paulo, sem alarde, criaram uma aura de mistério e curiosidade em torno de Raduan Nassar, que ele parece pouco interessado em esclarecer, aos 85 anos.

Raduan aceitou o pedido de entrevista da Folha, desde que fosse por email. Em uma conversa rápida por vídeo para falar do prazo para as respostas pediu que fosse chamado apenas de “você” e questionou: “Por que eu sou chamado de senhor, hein?”.

Quem convive com ele conhece o jeito avesso a formalidades e carteiradas. Nas respostas, dedicou-se mais às questões de política. “Prefiro falar de política e não de literatura”, diz.

Próximo a Lula, ele surpreendeu em 2016 ao discursar em público para defender a presidente Dilma Rousseff do processo de impeachment, publicou artigos e fez críticas ao então vice e depois sucessor da petista, Michel Temer.

Uma dessas críticas, durante a entrega do Prêmio Camões, em 2017, irritou o então ministro da Cultura, Roberto Freire.

Sobre outras questões, para as quais muita gente espera respostas dele há anos, ele mantém o quase silêncio.

Em 1996, Otavio Frias Filho, então diretor de Redação da Folha, escreveu no jornal sobre “O silêncio de Raduan” e disse que sua decisão de parar de escrever seguia um enigma.

Cerca de 20 anos antes, em uma entrevista à Folha, Raduan anunciou que não tinha mais interesse na literatura. O assunto, hoje, parece seguir longe da sua atenção.

Com a pandemia do novo coronavírus, Raduan diz que visitas se tornaram raras em seu apartamento na Vila Madalena (zona oeste de São Paulo).

Apenas colaboradores, como Messias Barboza, seu assessor há quase 20 anos, são frequentes por lá para tratar de projetos como o destino da fazenda que ele doou à UFSCar (Universidade Federal de São Carlos), no interior de São Paulo, ou a ideia de criação de um centro cultural para abrigar acervos históricos da região da fazenda Lagoa do Sino.

Apesar de um problema cardíaco há alguns anos, Raduan está bem de saúde. No dia 12 de fevereiro, saiu de casa para receber a primeira dose da vacina contra o novo coronavírus.

“Talvez a maior lição [da pandemia] seja reafirmar que precisamos viver, e conviver, de modo comunitário e solidário, e que o papel do Estado fica fortalecido como fator de proteção, sobretudo para os marginalizados”, avalia.

Em 2016, você rompeu quase 20 anos de silêncio para se manifestar contra o processo de impeachment da presidente Dilma e afirmou que não havia dúvidas que vivíamos um golpe. Passados cinco anos, como vê as consequências desse período e como acha que ele está registrado? Senti, como todas as pessoas comprometidas com o Estado democrático de Direito, o dever de denunciar o golpe e a entrega de um projeto de nação que o Brasil esboçava construir.

Está aí a consequência: nossa soberania foi entregue, sob a batuta de um país do norte, que pilotou um juiz entreguista e um promotor por controle remoto. O registro, do que antes era chamado de ‘delírio da esquerda’, se deu ao longo dos últimos anos quando assistimos as confissões de vários golpistas, sem o menor pudor, e por último a do general Eduardo Villas Bôas que consolida a farsa. A história será implacável com esses transgressores.

Em 2018, você estava ao lado de Lula, na manifestação que reuniu uma multidão no centro de Porto Alegre, antes do julgamento que confirmou a condenação dele, depois o visitou algumas vezes em Curitiba e defendeu que ele era um preso político. Aposta nele como candidato em 2022? Há outros nomes? Se o STF não se acovardar, é bem provável que Lula [que hoje está vetado pela Lei da Ficha Limpa] venha a se candidatar nas próximas eleições. O primeiro nome é sempre o de Lula, alguém com estatura de estadista. Caso seu nome, por razões espúrias, seja barrado novamente pelos militares, [Fernando] Haddad e [Flávio] Dino são nomes íntegros.

No final de 2018, você publicou um artigo em que afirma que a força-tarefa da Lava Jato foi responsável por destruir a soberania nacional e que ‘os operadores da Lava Jato, (…) não serão jamais absolvidos pela história, serão antes execrados, quem viver verá’. Como vê sua previsão hoje? A previsão foi correta, para quem acompanha a geopolítica mundial nas últimas décadas não é difícil a leitura sobre o modo como os EUA agem para garantir o domínio sobre os seus ‘quintais’ pelo mundo.

Estava claro ainda que, sob a aura de ‘heróis’, que a Lava Jato operava a favor de interesses internacionais, com a conivência de parte do Judiciário, o que se comprova com a revelação das mensagens trocadas entre aquele grupo de Curitiba [reportagens da Vaza Jato].

Alguns fatos não podem ser esquecidos, todo o prejuízo para nossa indústria, para a educação, saúde, ciência e economia, precisa ser colocado na conta do chamado ‘Tucanistão’. O PSDB de Aécio, de Serra e de FHC —este último não podia ser melindrado, segundo o marreco de Maringá— não admitiu a derrota nas urnas, foi partícipe do golpe, da entrega do pré-sal, ajudou a eleger Bolsonaro com o voto do BolsoDoria, e vota fechadinho com a agenda do presidente genocida e de seu ministro ‘Posto Ipiranga’.

Alguém se esquece do então ministro da Justiça, enfiado num governo de cor laranja, cheio de rachaduras e ‘rachadinhas’, se referindo ao crime de caixa dois de Onyx Lorenzoni? Segundo Moro, ‘ele pediu desculpas’.

Você não é filiado a partido político, mas é de esquerda. O que significa isso? ​Considero-me de esquerda sim e fico com a bela definição de Pepe Mujica: ‘É uma posição filosófica perante a vida, onde a solidariedade prevalece sobre o egoísmo’.

Como viveu a notícia da eleição de Jair Bolsonaro em 2018? E como avalia estes dois anos de governo dele? Como uma tragédia. O Brasil não merece quem ocupa a cadeira do Planalto: economia devastada, miséria crescente, pior gestão mundial da pandemia, não temos vacinas, não temos estratégia para distribuir as vacinas, não temos seringas.

Como um chefe de Estado pode lamber as botas de um Trump, dando as costas para o resto do mundo e para as relações multilaterais? Novamente o ciclo da história, ironicamente, apresenta as lições: como fica a política de vira-latas de nossas relações exteriores diante de uma possível guinada sob o comando de Joe Biden? E aquelas ofensas deploráveis contra a China e seu povo, em rede social?

No governo de Jair Bolsonaro pululam generais, ainda não consegui entender para quê…Provavelmente para dar um novo golpe em favor do inominável. Enquanto isso, o presidente passeia de jet-ski, sabota as restrições contra a propagação do vírus, deixa faltar oxigênio em Manaus, não apresenta plano de recuperação para o país, mas é rápido para propagandear medicamentos sem eficácia comprovada.

Vamos esperar o quê? Este governo é um desastre. Estamos vivendo uma tragédia, mas precisamos resistir, depois da vacinação é povo nas ruas.

O que acha dos pedidos de impeachment contra Bolsonaro? Sou a favor, pelas maluquices que tem feito.​

Em 2011, você doou sua fazenda, em Buri (SP), avaliada em torno de R$ 20 milhões, para a UFSCar (Universidade Federal de São Carlos). Oito anos depois, o cenário do campus que a Folha visitou era de pesquisa parada e sem cumprir as exigências da sua doação. O senhor acompanha a situação? De fato nos deparamos com alguns problemas, sob a gestão que assumiu de 2017 a 2020: recusa de projetos regionais, abandono de projetos existentes, dúvidas sobre a aplicação dos recursos no campus (previsto na escritura de doação), tentativa de arrendamento, falta de cuidados com os recursos hídricos da Lagoa do Sino, e uma grande contradição entre discurso e prática.

Continuo acompanhando com o apoio de Messias Barboza, que faz a interlocução com a UFSCar. Acreditamos que durante a gestão que se inicia, com a equipe da reitora Ana Beatriz de Oliveira, teremos a atenção que a história da fazenda e do território merecem. Sem dúvida, umas das melhores coisas que fiz na vida foi doar a Lagoa do Sino, uma fazenda modelo, devolvendo para a comunidade o que dela recebi.

Em entrevista ao Folhetim da Folha, em 1984, você diz que já tinha pouco a ver com a literatura, que sua cabeça fervilhava, então, com outras coisas e que andava às voltas com agricultura. Anos depois, Otavio Frias Filho escreveu no jornal que a pergunta ‘por que Raduan Nassar parou de escrever?’ continuava um enigma. Tem resposta hoje para ele? Não tenho.

Na mesma entrevista, você fala sobre seu início na literatura, que fora empurrado para ela e que alguém chamou assim anotações e reflexões soltas que você fazia. Parou totalmente com ela ou há textos na gaveta? Na gaveta, somente boletos a pagar…

Pensa ou tem vontade de voltar a escrever e/ou publicar? Nenhuma vontade.

A Folha acompanhou um encontro seu com Ariano Suassuna, em 1999, onde vocês falaram de Dostoiévski e cabras. Suassuna dizia que começou a criação de cabras depois de uma provocação do irmão sobre a utilidade da literatura, e você já disse que não há criação artística que se compare a criação de galinhas. Por quê? ‘Não há criação artística ou literária que se compare a uma criação de galinhas’. Simples provocação, nada além disso.

Os entrevistadores da Folha também questionaram sua visão do jornalismo, ofício que você exerceu, pela forma como retrata a jornalista em ‘Um copo de cólera’. Na época, a resposta foi que a imprensa se questionava pouco e que precisaria fazê-lo mais para resgatar a credibilidade perdida. Como o senhor avalia o jornalismo brasileiro hoje? De fato, a imprensa corporativa perdeu muito de sua credibilidade.

O que deve ser feito para recuperá-la? Cabe ao jornalismo brasileiro a resposta.

Naquela entrevista e em outras mais recentes, você também diz que não lê mais livros ou manchetes. Segue assim? Por quê? Não sei, a descobrir um dia. Talvez.

‘Torto Arado’, de Itamar Vieira Junior, traz uma citação de ‘Lavoura Arcaica’, na epígrafe: ‘A terra, o trigo, o pão, a mesa, a família (a terra); existe neste ciclo, dizia o pai nos seus sermões, amor, trabalho, tempo’. O autor é um baiano, funcionário do Incra, que já sofreu ameaças e defende a reforma agrária. Como alguém que tem relação com a terra e o mundo rural, como avalia essas questões no Brasil atual? São ameaças inacreditáveis, e pior é que são crimes que ainda ocorrem no campo. Tive a oportunidade de ouvir uma entrevista de Itamar Vieira Junior pelo rádio e assistir ao Roda Viva, e recebi um exemplar de ‘Torto Arado’. Fiquei impressionado, ele fala de forma ponderada, diz coisa com coisa.

Raio-X

Raduan Nassar, 85

Nascido em Pindorama (SP), cursou letras e direito na USP, antes de se formar em filosofia. Autor de “Lavoura Arcaica”, “Um Copo de Cólera” e “Menina a Caminho”.

Publicado na Folha de S.Paulo.

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