Quem nunca? A advogada Fernanda Cseh, 37, se apaixonou rápido. Conheceu Tiago no dia 6 de dezembro, e ele já passou o Natal com a família dela, e ela, o Ano-Novo com a família dele. Naquele Réveillon, contudo, ninguém brindou.
Não deu tempo. Vizinhos irritaram seu novo namorado com motos barulhentas, ele foi tirar satisfação, um primo dele tentou apartar o pega-pra-capar e ganhou um corte no supercílio. Fernanda, que tinha curso de primeiros socorros por ter trabalhado num cruzeiro, se dispôs a ajudar.
Tiago surtou. “Falou coisas tipo ‘você tá cuidando dele porque quer alguma coisa com ele'”, lembra Fernanda. “Foi surreal ter ido arrumar briga e depois brigar comigo porque eu estava socorrendo o primo. Esse foi o primeiro sinal.” De muitos.
Hoje ela sabe muito bem o que se passou ali. Mas, como a maioria das mulheres vítimas dessa modalidade de agressão, nada fez na época. Não conseguiu enxergar algo de errado naquela relação.
Ameaças, constrangimento, humilhação, isolamento (proibir de estudar e viajar ou de falar com amigos e parentes), vigilância constante, chantagem, exploração, ridicularização, distorcer fatos para deixar a mulher em dúvida sobre sua memória e sanidade (o “gaslighting”).
O homem não precisa tocar um dedo numa mulher para ser enquadrado na Lei Maria da Penha, que inclui todas essas hipóteses no escopo da violência psicológica. Só no primeiro semestre de 2020, a ouvidoria do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos recebeu 106,6 mil denúncias que caem nessa categoria, a maioria vinda de mulheres.
Há outros canais aos quais recorrer, mas a soma de todas essas notificações não faz sombra ao tanto de mulheres que sofrem calada, muitas vezes por sequer compreender que foram alvo de crime. “Os números nos dizem pouco, porque [o delito] acaba sendo naturalizado e não chega na estatística pública”, diz Samira Bueno, diretora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
O instituto, em parceria com o Datafolha, perguntou a 1.092 entrevistadas, em 2019, se no último ano haviam sido xingadas, insultadas ou humilhadas, e 22% responderam que sim. Se projetarmos para a população feminina do país, são milhões de mulheres.
Fernanda não denunciou Tiago, que por pouco não completou o bingo da violência psicológica. O rapaz tinha gosto por “fanfics”, ficções que ele deixava girar em looping na cabeça dele, diz a advogada. Ela identifica dois episódios mais graves.
Teve o dia em que voltavam do aniversário da sobrinha dele, o casal espremido no porta-malas de um carro cheio de parentes. “A gente chegou na festa, ele cismou que eu estava de olho num cara. O cara com uma criança no colo”, conta. “Na volta, ele sussurrava no meu ouvido: ‘Sua puta, olhando pra homem casado’. Fechava a mão e pressionava em mim, tremendo, querendo socar e não podendo.”
A intimidação foi tamanha que Fernanda duvidou de si mesma e ficou pensando se não fez algo que desse a entender que estava a fim do tal sujeito.
Ciúmes motivaram mais ataques verbais. Uma vez, embarcaram num ônibus para ir à casa dela. Fernanda pediu para um passageiro: “Deixa eu segurar neste pau com a mão esquerda que eu tenho mais firmeza”. Referia-se à barra de apoio, mas Tiago não entendeu assim. “Foi o caminho inteiro falando que eu era baixa, rampeira.”
Por que Fernanda se submeteu àquilo? Uma boa explicação, segundo Alessandra Almeida, representante do Conselho Federal de Psicologia no Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, é o que na psicologia chamamos de relação duplovincular. São as “pequenas contradições” de uma relação íntima permeada pela violência, afirma.
O mesmo homem que agride uma mulher lhe oferece um gesto de amor em seguida. Exemplo: ele a xinga de “rampeira” e fala que a ama tanto que enlouquece de ciúmes. “Ditas pelo mesmo emissor, mensagens assim te deixam completamente incapaz de dar uma resposta lógica. Se eu te digo eu te amo e te odeio no mesmo momento, numa relação de suposta lealdade, oxe, ou você me ama ou me odeia? Fica confuso.”
As denúncias que chegam à pasta de Damares Alves mostram que a violência psicológica atinge mulheres de todas as classes e cores, mas é mais cruel com mulheres pretas e pardas. Elas representam 33,5 mil das queixas, contra 28,7 mil brancas. A maioria (43,6 mil) não aponta a raça, mas especialistas concordam que as negras são a maior parte desse bolo também.
Das que se dispuseram a informar a renda, são as vítimas mais pobres que sofrem mais: 14,9 mil casos contra mulheres que ganham até um salário mínimo, enquanto na outra aponta, as que faturam acima de 15 salários, há 98 queixas. Nada que destoe muito da pirâmide populacional do Brasil.
Os suspeitos identificados são quase sempre parceiros que supostamente prometeram amar a vítima: maridos, companheiros ou namorados (23,1 mil) ou ex (13,3 mil). Mas a fauna de denunciados é vasta: bisavôs (61), professores (109), líderes religiosos (85). Pai e mãe são outra citação reincidente (15,2 mil).
A maioria das denúncias, 56%, é encaminhada de forma anônima. Em 35% das vezes, elas partem das próprias vítimas de maus-tratos psicológicos, e em 7,8%, de terceiros. Os próprios agressores se autoacusam em 0,2% dos casos.
É difícil quantificar quantos homens foram condenados “só” por esse tipo de violência. Se há entraves para que vítimas de violência física e sexual, que deixam marcas visíveis, sejam acolhidas pelo sistema penal, no caso de uma agressão psicológica a situação é mais delicada. Muitas vezes os casos se baseiam na palavra da vítima contra a do agressor.
Há outra questão: a Lei Maria da Penha, que lida com as violências contra a metade feminina da população, não define tipos penais. Na prática, promotores precisam encaixar em outras infrações reconhecidas no Código Penal para esses relacionamentos abusivos sejam punidos.
Superintendente-geral do Instituto Maria da Penha, Conceição de Maria diz que o mais difícil é fazer a mulher entender que é alvo. “O grande problema é que às vezes ela nem sabe que está passando por uma violência que também cabe na lei. Muitas acham que só podem denunciar se o abuso for físico ou sexual.”
É uma tortura psicológica que pode escalar até a brutalidade física, afirma. “Pra chegar no tapa, a mulher já sofreu quase todas as violências antes. O ciclo sempre vai começar com a violência psicológica. Infelizmente, a instância última pode ser o feminicídio. É a morte anunciada.”
“Quando você cresce dentro de um ambiente abusivo, você normaliza. Passa a identificar abuso como amor”, reconhece hoje Fernanda, a advogada que passou um ano numa relação tóxica.
A primeira agressão física veio com dez meses de namoro, depois de Tiago concluir que ela havia paquerado um passageiro no ônibus.
Estava frio naquela noite. No caminho para casa, conta, “ele pegou pelo cachecol e começou a me enforcar e bater minha cabeça contra o portão”.
Persistiu no relacionamento: “Falei que só continuaria com ele se ele se tratasse. É um ciclo, né? Depois [de agredir] eles choram, se fazem de arrependido, ‘me perdoa, eu te amo’. Burra pra caralho. Continuei com ele”.
Quando enfim deu um basta, uma semana antes do Natal de 2011, ele não aceitou. Depois do término, foi buscar o celular na casa dela. Segundo Fernanda, Tiago havia hackeado seu Facebook e visto uma mensagem de um amigo a chamando para sair com uma galera.
Passou as festas de fim de ano “todinha roxa”. Isso porque o ex começou a chutá-la. “Sem medir forças. Única coisa que consegui pensar: coloquei os dois braços na frente, pra não acertar o rosto. Pensei: não posso gritar, porque o cômodo mais próximo era o da minha vó. Se ela visse a cena, enfartaria. ‘Vou matar minha vó’.”
Em 2013, a revista para adolescentes Capricho publicou a reportagem “De que eles têm ciúmes?”. O texto trazia entrevistas com três rapazes de 19 a 22 anos e o seguinte enunciado: “[eles] não demonstram ciúme, mas, se pudessem, levariam a namorada na coleira!”
Para Fernanda, sua geração foi influenciada por conteúdos desse tipo e vivia numa sociedade em que “todo ciúme era prova de amor”. Não era amor, era cilada.
Publicado originalmente na Folha de S.Paulo.
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