A juíza Kenarik Boujikian foi absolvida pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) da chamada “punição de censura” aplicada a ela pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ-SP).
Conhecida por seu engajamento em defesa da democracia e dos direitos humanos, Boujikian foi processada e condenada pelo TJ-SP por conceder liberdade a 11 presos provisórios que já tinham cumprido a pena fixada em suas sentenças. A juíza foi acusada de desrespeitar o princípio da colegialidade por ter decidido de forma monocrática. Nenhum dos detentos possuía advogado particular para solicitar o alvará de soltura.
Em sessão realizada na terça-feira 29, o CNJ reformou a decisão do TJ-SP por dez votos contra um. Para os conselheiros, o que houve foi censura, e não “punição de censura”, pena na qual o juiz fica impedido de progredir na carreira.
“Há uma diferença óbvia entre censura como pena e ser censurado, que é algo que a Constituição proíbe para qualquer expressão”, afirmou a ministra Cármen Lúcia, presidente do CNJ e do Supremo Tribunal Federal (STF). “Neste caso, com todo o respeito ao grande TJ-SP, parece que a magistrada tenha sido censurada pela sua conduta e pela sua compreensão de mundo incidindo sobre os fatos por ela examinados, e isso é grave”, continuou a ministra.
Em entrevista concedida por e-mail a CartaCapital, Boujikian afirma que a Justiça foi “restaurada” e que considera “histórico” o julgamento do CNJ. “Em sua mensagem, o CNJ reafirmou que é seu papel impedir que o princípio da independência judicial seja vulnerado, o que significa que não admitirá que juízes sofram pressões externas e internas. Isso é absolutamente necessário para consolidação da democracia.”
CartaCapital: Como a senhora recebeu a decisão do CNJ? Já esperava ou foi uma surpresa?
Kenarik Boujikian: A decisão do Conselho Nacional de Justiça foi recebida por mim e por muitos com muita alegria, pois, em tempos de rompimento democrático como este pelo qual o Brasil passa, reafirmou o princípio da garantia da independência judicial como inerente ao Estado Democrático de Direito.
A minha expectativa era a de que fosse restaurada a Justiça, e foi o que o aconteceu, como o próprio Conselho afirmou durante a sessão de julgamento. Nunca aceitei a instauração do procedimento contra mim em razão do conteúdo das minhas decisões. Aliás, a Lei Orgânica da Magistratura, que é a última lei do período da ditadura civil-militar, não permite punição pelo conteúdo das decisões, salvo se por improbidade.
Acho possível a instauração de processo administrativo que tenha como foco a decisão judicial desde que o juiz tenha atuado com vício aos princípios republicanos. Por exemplo, quando o juiz atua por interesses escusos, por corrupção ou para atender a interesses partidários. Mas, nesses casos, a sentença é apenas o instrumento da prática da falta disciplinar.
CC: O que a decisão significa, para a senhora e para o Judiciário brasileiro?
KB: Penso que a decisão é de alta significação para a sociedade brasileira. Em sua mensagem, o CNJ reafirmou que é seu papel impedir que o princípio da independência judicial seja vulnerado, o que significa que não admitirá que juízes sofram pressões externas e internas. Isso é absolutamente necessário para a consolidação da democracia.
No âmbito pessoal, a decisão do CNJ salvaguarda a minha dignidade no exercício da minha jurisdição. O peso de ser processada é gigantesco, ainda que com ciência da injustiça do processo. Como ressaltou o conselheiro [Gustavo] Alkmin, “punir o magistrado por sua compreensão jurídica é a maior violência à sua liberdade e à sua independência”.
Asseguro que é extremamente doloroso e vem acompanhado de um sentimento de opressão. Fico reconfortada por mim e principalmente em relação aos meus jurisdicionados, para quem exerço o poder de Estado, pois, em alguma medida, é uma forma de dar uma satisfação a eles.
Mas não posso deixar de registrar que, durante todo o processo, experimentei um dos sentimentos mais extraordinários que um ser humano pode ter, que é a solidariedade. Recebi afetos de todo os cantos do Brasil, de pessoas e inúmeras instituições, inconformadas, sentindo-se igualmente injustiçadas. Esta vitória não é pessoal, é de todos.
Deixo pra trás a dor, inerente ao processo, mas levo comigo algo bem maior: a solidariedade e, especialmente, a clareza que o processo teve uma utilidade, pois serviu para a sempre necessária reflexão sobre o problema carcerário e sobre o papel dos juízes.
CC: Quais declarações, comportamentos e posturas mais lhe chamaram a atenção durante o julgamento?
KB: Acompanhei a sessão, e o julgamento do Conselho Nacional de Justiça é uma ode à independência judicial, como o conselheiro Carlos Eduardo Dias se referiu à manifestação do corregedor do CNJ. Creio que o julgamento deveria ser visto por todos que ingressam em uma faculdade de Direito, e o acesso é possível por meio do site do CNJ.
Foi um julgamento histórico pelo conjunto dos saberes que foram expostos e pela posição tomada por todos os conselheiros, que se complementaram com harmonia. O relator não discutiu o mérito, que começou com o minucioso voto do conselheiro Alkmin, verdadeira aula sobre o papel do juiz em uma democracia, que deveria ser objeto de estudo por todos.
Na sucessão, ficou clara a preocupação de todos os conselheiros, um em seguida ao outro, com o vulnerar dos princípios que devem garantir a magistratura. O julgamento encerrou-se com as palavras da ministra Cármen Lúcia, que de plano afirmou que “há uma diferença entre censura como pena e o fato de ser censurado, que é algo que a Constituição proíbe”.
A ministra ressaltou ainda que o tribunal alegou que haveria diferença nas decisões da juíza em relação à jurisprudência prevalecente. “Se jurisprudência prevalecente fosse determinada vinculante, o direito morreria. Porque ele se torna vivo e atualizado exatamente porque o voto vencido de hoje pode ser o vencedor de amanhã”. Não tenho como indicar todas as declarações pois, como disse, o julgamento é verdadeiro marco.
Foi comovente ouvir o conselheiro Carlos Eduardo Dias dizer que “a juíza Kenarik fez aquilo que se espera do magistrado, sobretudo no que diz respeito à liberdade”. “Essa magistrada foi punida por trabalhar. As onze pessoas que foram soltas pela juíza são pobres, já que, se não o fossem, teriam advogados muito bem pagos que iriam manejar a ordem de habeas corpus”.
Considero relevante que muitos conselheiros ressaltaram as minhas referências como as melhores possíveis, destacando o que constou do próprio acórdão do TJ-SP: “Conforme o processo, é de conhecimento comum que a magistrada se destaca pelo seu engajamento na defesa dos direitos humanos, da democracia, das garantias individuais e processuais, com especial preocupação para a situação carcerária e para a condição da mulher presa”.
Sei que foram esses compromissos que levaram o CNJ a me nomear em comissão sobre o encarceramento de mulheres e o TSE a me nomear em comissão sobre o voto do preso provisório.
CC: O conselheiro João Otávio Noronha disse que o TJ-SP “agiu mal” e arrumou uma “desculpa estapafúrdia” para censurá-la. Como avalia a declaração?
KB: Para mim, o corregedor do CNJ deixou clara a sua posição de que é inadmissível um tribunal usar um processo administrativo para punir magistrado pela sua forma de pensar e entender o direito.
CC: A senhora acredita que as críticas feitas ao TJ-SP durante a sessão têm potencial de mudar o funcionamento do tribunal?
KB: O julgamento do CNJ reformou a decisão do TJ-SP, que não tinha sido unânime. É bom lembrar que nem todos os desembargadores eram favoráveis à minha punição, embora minoritários. O julgamento não é uma mensagem apenas para o meu caso e nem só para o TJ-SP, mas um paradigma que deve servir para todos os tribunais. Neste sentido, é um alerta para toda a Justiça brasileira sobre a forma como devem proceder. Espera-se que todos os tribunais sigam a orientação contida no meu processo.
Texto publicado originalmente na Carta Capital.
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