“O vento experimenta
o que irá fazer
com sua liberdade.”
Guimarães Rosa, Haikai Turbulência.
Quando morava em Patos de Minas, não havia muito o que fazer na cidade, salvo ler, namorar e conversar com os amigos. Em uma época sem televisão e sem celular, o ócio ocupava grande espaço nas nossas vidas. Era necessário ser criativo. Eu tinha um tio que não gostava de dormir. Perambulava pelas noites e era apaixonado por velórios, que aconteciam nas residências, pois não havia espaços reservados para velar os que faleciam.
Certa vez, em uma noite fria, sem nenhum programa, ele soube que havia um velório em uma casa afastada do centro. A noite já estava adiantada e ele entrou na casa inopinadamente. Sala pequena. O caixão ocupava quase todo o ambiente. Pouca gente. A viúva olhou com aquele olhar triste. Depois de cumprimentar a todos, ele se sentou e pensou: “entrei numa fria”. Velório fraco. Sem bebida e sem nada para comer. O resto da noite seria longo. Meu tio, que era de uma família conhecida, achou que pegava mal ir embora.
Resolveu melhorar o ambiente. Falou com os presentes que, como estava frio, o ideal seria comprar uma bebida e, pelo menos, uns pães de queijo e uns biscoitos cascudos. Todo mundo gostou da ideia. Solidários, deram algum dinheiro para ele ir a um bar comprar o que fosse preciso. A viúva, emocionada, aderiu e tentou dar sua contribuição. Meu tio falou, respeitosamente: “Não precisa contribuir. A senhora já entrou com o defunto”.
Ou seja, não se deve entrar onde a gente não conhece. É sempre um risco.
Eu não conhecia a Lady Gaga. Ou melhor, pensava que não a conhecia. Poucos dias antes do show, estava correndo pela manhã no calçadão de Copacabana e passei em frente ao palco que estava sendo montado. Uma estrutura colossal. Milhares de pessoas trabalhando. Caminhões, carros e guindastes. Uma passarela que saía do hotel Copacabana Palace direto para o palco. Um espetáculo. Perguntei quem iria se apresentar e entendi como resposta: “Lady Gaga”. Não achei estranho. Também não conhecia. Mas a estrutura me chamou muita atenção.
Em seguida, recebi convites para uma área especial em que seria possível ver de perto o espetáculo. Como não conhecia, agradeci. Já tinha ido no show Tempo Rei, do Gil, em que o Caetano deu uma palhinha, e estava satisfeito com minha programação. Mas comecei a ler na mídia notícias sobre esta espetacular ideia do Eduardo Paes: um show gratuito para o grande público que movimentaria a economia, o turismo e a alegria no Rio de Janeiro. E resolvi sentar em frente à televisão para dar uma olhada na apresentação. Sensacional.
Copacabana estava linda, com mais público do que o Réveillon: 2 milhões e cem mil pessoas cantando e dançando espalhadas ao longo da praia. Extasiadas. Em ordem. Sem tumulto. A repercussão na imprensa internacional, super positiva, deixou um saldo que não se pode calcular para a imagem do Rio. No imaginário popular, o Rio povoou o sonho de quem ama música, show, alegria e respeita a diversidade.
O anúncio de 600 mil turistas naquele final de semana, com um implemento de 700 milhões na economia, formal e informal, demonstra a potência do evento. A expectativa inicial de 140 mil turistas, que já seria muito, foi largamente superada. Todos os setores foram beneficiados: hotelaria, gastronomia, comércio, inclusive informal, transporte. Enfim, um sucesso.
Só durante o show fiquei sabendo da história dela. É muito mais do que uma grande cantora. Compõe. Dança. Posiciona-se. Tem lado. Coragem. Personalidade. Soube também da doença terrível que ela enfrenta. Do “bolo” que teve que dar há 10 anos, quando teve que cancelar seu show no Brasil. Cancelou, à época, por causa das fortes dores causadas por fibromialgia. E me encantou seu engajamento com causas libertárias. Ela é amada pela comunidade LGBTQIA+ e se posicionou contra Trump nos EUA. Antes do show dela, a cantora e drag queen Pabllo Vittar atacou de DJ e movimentou o público com remixes de hits nacionais e internacionais.
A raiva que os fascistas sentem pela Lady Gaga é tal que a Polícia Civil do Rio de Janeiro, em conjunto com o Ministério da Justiça, impediu uma tentativa de ataque a bomba durante o evento. A operação foi batizada de Fake Monster. O grupo de extrema direita disseminava discurso de ódio contra crianças, adolescentes e o público LGBTQIA+.
Essa tentativa, felizmente frustrada, demonstra que a extrema direita, com seus métodos fascistas e violentos, não suporta a liberdade, a alegria e o direito de cada um assumir o que quer. O show foi tão intenso que, mesmo quem não acompanha o estilo de música da Lady Gaga, deixou-se impregnar pela felicidade e alegria que dominaram Copacabana. E quando ela cantou Shallow, do filme Nasce uma Estrela, em que ela canta com Bradley Cooper, eu vi que a conheço há tempos. Só não sabia.
Lembrando-nos de Olavo Bilac, no poema Via Láctea:
“Amai para entendê-las!
Pois só quem ama pode ter ouvido
capaz de ouvir e de entender estrelas.”
Artigo publicado originalmente no O Dia.
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