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Mulheres em luta por direitos: as incendiárias

Quando o apito
Da fábrica de tecidos
Vem ferir os meus ouvidos
Eu me lembro de você
Mas você anda
Sem dúvida bem zangada
E está interessada
Em fingir que não me vê

Você que atende ao apito
De uma chaminé de barro
Por que não atende ao grito tão aflito
Da buzina do meu carro?

Os belos versos que Noel, com ciúmes do gerente, escrevera à namorada Fina, em 1932, registram um tempo em que as mulheres brasileiras começavam a conquistar o status de sujeito de direitos. Operárias que, ao som do apito das chaminés de barro que marcava o início e o fim da jornada, desenvolviam seu trabalho subordinado e remunerado. No caso, Fina trabalhava em pequena fábrica que produzia botões de osso e de madrepérola, em Andaraí (1). A ainda que esses versos possam, quem sabe, apontar para o fetiche do automóvel como símbolo de ascensão social e de status, com o qual Noel estaria buscando atrair a atenção da amada, por outro ilustram realidade interessante do ponto de vista da luta das mulheres por direitos e pelo seu reconhecimento como cidadãs, tendo como símbolo a conquista do voto e o direito a uma jornada a ser respeitada (2). Isso não foi pouca coisa.

O nexo que aqui se estabelece interage com a visão que se tem da importância das normas pública de proteção ao trabalho para uma caminhada que se pretenda civilizatória, bem como com a relação que se estabelece entre o processo de construção dessas normas e o momento específico da história socioeconômica de um Brasil de resiliente herança escravocrata, patriarcal e monocultora em luta hercúlea para se modernizar (3). Por certo, esses mesmos versos de Noel poderão ilustrar leituras distintas.

Como revelam os processos trabalhistas que compõem o acervo do Memorial da Justiça do Trabalho do Rio Grande do Sul, anteriores à própria instalação da Justiça do Trabalho e à CLT, de inegável valor histórico, as mulheres têm papel destacado. Em 1932, no mesmo ano em que conquistaram o direito ao voto, as brasileiras poderiam apresentar suas reclamações perante as recém criadas Juntas de Conciliação e Julgamento independentemente da outorga do marido, a outorga uxória então exigida pelo Código Civil de 1916. Nessas reclamações, individualmente ou por meio de seus sindicatos, as mulheres aparecem em número expressivo como autoras, exigindo o cumprimento das regras de proteção ao trabalho que estavam sendo postas pelo Estado. Na sua quase totalidade, essas ações envolviam interpretações da Lei 62, de 5 de junho de 1935 (Lei da Despedida), validade de despedidas e decorrentes reintegrações ao emprego, justas causas, aviso prévio, relação de emprego, representação sindical dos associados aos sindicatos como exigência da lei, competência dos órgãos (Conselhos Regional e Nacional do Trabalho, Juntas de Conciliação e Julgamento) que estavam sendo criados, lócus fundamentais para a construção e a afirmação dos direitos sociais que se institucionalizavam.

Nesses processos, as mulheres também aparecem com destaque como servidoras. Em despachos desenhados à mão o traço feminino era presença reiterada. Nos pleitos, estampava-se o anseio e a esperança de estabilidade. É que se com a abolição da escravatura introduzira-se a tutela ao direito de ir embora, com a Lei 62/35 introduzia-se a proteção ao direito de ficar, de pertencer. Construções que se relacionam com a concretização dos princípios da continuidade da relação de emprego e da dignidade humana, pontos de partida e fundamentos do novo direito que se constituía: o Direito do Trabalho. Talvez nenhum outro ramo do Direito se apresente com uma tal fisionomia. Não à toa, tem sofrido duros golpes em tempos de regresso liberal.

Mas se o Brasil da década de 1930 foi o 4º país do hemisfério em que as mulheres conquistaram o direito de votar e de verem sistematizados seus direitos trabalhistas, muitas foram as fogueiras em que arderam como “bruxas” por clamarem por direitos iguais. De Antígona – personagem de Sófocles que, para enterrar seu irmão, Polínices, enfrentou a positividade simbolizada em Creonte e, ao invocar leis não escritas, o Justo por natureza, escancarou a tensão entre os costumes tradicionais religiosos e a lei da Cidade-Estado – até as mulheres de hoje, cujas ações têm sido fundamentais na luta pela construção de uma sociedade menos desigual, passando por outras como Olympe de Gouges que, por defender os direitos à igualdade entre homens e mulheres, morreu na guilhotina em 1793, pelas mulheres da Primavera dos Povos, em 1848, pelas incendiárias que, aliás, tiveram destacado papel na Comuna de Paris (4), pelas sufragistas que se rebelavam contra a exclusão de direitos político como o de votar, as mulheres foram, a ferro e fogo, produzindo um movimento de emancipação que antecedeu e perpassou a greve de 08 de março de 1857. Nessa greve, operárias têxteis de Nova Iorque, em luta pela redução da jornada de 16 para 10 horas, ocuparam a fábrica. Muitas morreram queimadas. O movimento espraiou-se pelo mundo. Rendeu frutos. As mulheres não mais deixariam o campo da luta pela igualdade substantiva e por uma sociedade fundada nos princípios do não retrocesso e da não discriminação, incorporados pela Constituição de 1988.

Mas ainda que no Brasil a igualdade substantiva seja assegurada pela Constituição de 1988 as desigualdades entre mulheres e homens são expressivas em várias dimensões, com ênfase neste artigo às relações de trabalho. Historicamente, são as mulheres e, sobretudo, as negras que, nas fábricas, ganham os menores salários para os mesmos postos de trabalho. E conquanto entre 2004 e 2013 os dados sejam positivos, tendo sido absorvidas 5,9 milhões mulheres e formalizadas 5,8 milhões, essa melhoria não logrou reverter a distribuição dos sexos entre os setores e ocupações e a segmentação no mercado de trabalho. Por outro lado, a profunda crise que atingiu o país em 2015 e que se aprofundou em 2016, a partir do injusto impeachment que retirou da presidência da primeira mulher legitimamente eleita, Dilma Rousseff, vem provocando deletéria reversão daquele contexto favorável do período anterior. Talvez porque, segundo renomado economista crítico, o direito que nasce das relações mercantis não reconhece nenhum outro fundamento, nenhuma legitimidade, senão a igualdade entre os produtores de mercadorias. Talvez porque a Lei Áurea tenha livrado o país de seus inconvenientes, mas, quanto aos negros, abandonou-os à sua própria sorte. Resquícios de uma herança que se manifesta nas formas de preconceito e discriminação e que, volta e meia, afloram, tornando vivo o refrão do Rappa: A carne mais barata no mercado É a carne negra.


(1) Cf. MÁXIMO, João; DIDIER, Carlos. Noel Rosa: uma biografia. Brasília: UnB: Linha Gráfica, 1990.
(2) Ver HAHNER, June. E. A mulheres brasileiras e suas lutas sociais e políticas: 1850–1937. São Paulo: Brasiliense, 1981.
(3) Reflexões a partir de BIAVASCHI, Magda Barros. O Direito do Trabalho no Brasil – 1930-1942: o processo de construção do sujeito de direitos trabalhistas. São Paulo: Ltr, 2007.
(4) Ver: COSTA, Silvio. A Comuna de Paris e as mulheres revolucionárias, Grabois, Especiais: A Comuna de Paris, 17.03.2011. Em: http://www.grabois.org.br/portal/especiais/150407-44365/2011-03-17/a-comuna-de-paris-e-as-mulheres-revolucionarias

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