Entrevista publicada na Folha de S.Paulo.
Marcelo Semer, do TJ-SP, afirma que omissão do Congresso tem sido usada para expandir atribuições
Ex-presidente da AJD (Associação Juízes para a Democracia), que reúne magistrados vistos como progressistas, e neste ano nomeado desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo, Marcelo Semer avalia que não cabe ao Judiciário o papel de apaziguador da crise institucional.
Para ele, a saída deve partir da política, e o Congresso tem sido omisso em exercer esse papel.
“Há bastante tempo a gente tem evitado a política para tentar resolver crises pelo Judiciário. Isso está inflando o Judiciário, mas o Judiciário não tem os instrumentos para resolver crises”, afirma, em entrevista à Folha.
O desembargador lançou em agosto o livro “Os Paradoxos da Justiça – Judiciário e Política no Brasil” (Contracorrente), em que analisa a crise de confiança no Judiciário e o que considera a judicialização extremada da política e a derrocada do Estado democrático de Direito.
Ele recebeu a reportagem em seu gabinete, adornado com quadros de figuras ligadas à esquerda, como Karl Marx e Che Guevara, e diz que nunca exerceu política partidária, mas “querer um juiz que não tem ideologia ou não tem pensamento é uma ilusão”.
“O fascismo queria um juiz asséptico porque ele aceita tudo”, afirma.
Vivemos uma crise entre Poderes, sobretudo entre o Judiciário e o Executivo sob Bolsonaro, com arroubos golpistas e autoritários do presidente. Como o Judiciário deveria agir num momento como esse? A crise, em grande medida, ocorre porque temos um presidente que é autoritário e não tem apreço pela democracia, mas sobretudo por uma omissão muito grande de quem deve fazer a política, que é o Congresso.
Há um vácuo de poder que acaba sendo utilizado pelo Judiciário para expandir sua competência. Isso não é muito bom, porque o Judiciário não é um bom articulador de políticas ou um bom solucionador de crises.
A nossa crise institucional começa em 2016, quando tivemos uma ruptura institucional, da qual o Judiciário foi um dos protagonistas. Sem o Judiciário ela não teria acontecido. Acho um pouco de ingenuidade achar que o Judiciário vá resolver a crise. Acho que o Judiciário, por não ser uma instância política, trabalha com decisões e não tem a capacidade necessária de ser um mediador.
Mas o STF, especialmente, se põe dessa forma… Vamos pensar no que está acontecendo agora. A omissão do Congresso está sendo muito grande. Eles [o governo] conseguiram fazer com que o Congresso, com distribuição de verbas e o centrão, ficasse parado.
O que deveria estar sendo discutido é o impeachment, mas o Congresso se fez de omisso e não está discutindo isso. O que se tem discutido são as decisões do Alexandre de Moraes, mas elas não são solucionadoras de crise, ao contrário. Elas vão implementando a crise.
Vai chegar a hora que o presidente vai falar “não cumpro”. E aí você vai precisar ter a força para cumprir, e as decisões não têm força por si só. Algumas têm, mas outras você não consegue fazer por si só.
Não há uma saída, então? O Judiciário não tem uma saída institucional para a crise. A política vai trazer a saída para a crise. Há bastante tempo a gente tem evitado a política para tentar resolver crises pelo Judiciário. Isso está inflando o Judiciário, mas o Judiciário não tem os instrumentos para resolver crises.
O que falta hoje no Brasil? As pessoas fazerem movimentos de rua para dizerem estamos a favor ou contra, está faltando a mídia tomar as posições que toma em outras situações, os agentes financeiros, o que é extremamente importante.
Na época da Dilma [Rousseff], o mercado sinalizou inúmeras vezes que não queria o governo. No caso Bolsonaro, isso não acontece. Por que não acontece? Tem muita gente interessada nas decisões e nos projetos que estão sendo realizados mesmo durante essa crise. Apesar dessa crise, você já teve mais mudança na legislação trabalhista. Projetos de alterações legislativas estão aumentando, como privatização da Eletrobras, agora a questão dos Correios.
Acho uma temeridade a gente colocar essa responsabilidade de se opor [ao governo] ao Judiciário, que nunca foi um anteparo ao arbítrio. A gente teve uma ditadura no Brasil, e o Judiciário conviveu com ela com tranquilidade.
Como o sr. enxerga decisões de abertura de inquérito de ofício (sem provocação externa) pelo STF, como o das fake news e o dos atos antidemocráticos? É uma reação da classe do Judiciário aos ataques ou essa proatividade deveria acontecer? Não consigo ver legalidade no inquérito das fake news. Obviamente acho que não é nenhum motivo para impeachment [de ministro do STF].
Do ponto de vista jurídico: Roberto Jefferson cometeu vários crimes, mas ele não tem foro privilegiado. Por que ele vai ser julgado no Supremo? Se você xingar o Supremo, vai ser julgado no Supremo? Esse foro privilegiado para a vítima não existe na nossa legislação. Eles pegaram uma situação anômala, que é um pedaço do regimento que diz que, se acontece um crime no Supremo, pode-se instaurar um inquérito. Mas o crime não está acontecendo no Supremo, está acontecendo em vários lugares, em vários momentos. Virou uma espécie de uma chave-mestra.
A comunidade jurídica está aceitando isso com a clara convicção de que Bolsonaro leva o país contra a institucionalização. É uma espécie de legítima defesa. “Olha, ele está tentando ameaçar a democracia, vamos tentar defender a democracia”. Do ponto de vista jurídico, isso não se sustenta.
Quais as consequências que essas decisões podem provocar no futuro? Não sei. Por exemplo, para prender o Daniel Silveira (PSL-SP) eles fizeram interpretações extremamente elásticas do que é uma prisão em flagrante e da aplicação da Lei de Segurança Nacional. Existe uma expectativa em muitos setores progressistas de que, oras, isso é uma coisa de exceção, feita para esse momento, e não vai ser usada mais. Mas isso não faz parte da construção democrática. Não vejo como podemos louvar uma coisa dessas.
Temos que entender o seguinte: Bolsonaro é uma pessoa que não tem apreço pela democracia. Dentro do processo democrático, Bolsonaro é como se fosse um vírus. Entra, vai sugar tudo o que tem dentro do corpo e machucá-lo de todas as formas possíveis. Se vai conseguir ou não, não sabemos. O fato de ele ter chegado à Presidência é sinal de que a cultura democrática brasileira está muito deficitária. Ele é um sintoma.
Temos que nos perguntar se o fato de ele ter assumido, de ter conseguido chegar lá, já é um sinal de que o apreço pela democracia é esvaziado, e isso também fez parte do Judiciário. Muitos participaram disso, o Judiciário também…
O sr. fala da Lava Jato? Também. Não é o único exemplo, mas também. A Lava Jato dilacerou a racionalidade do Poder Judiciário, porque você acabou introjetando no miolo da decisão judicial aquela necessidade de buscar o apoio popular. Tanto é que, quando baixou o apoio popular, eles perderam.
No livro, o sr. diz que, apesar de o Judiciário ter ganhado protagonismo nos últimos anos, esse protagonismo é submisso à opinião pública. Isso é sempre negativo? Do ponto de vista da jurisdição criminal e da defesa dos direitos fundamentais, é sempre negativo. Há um autor português, o Jorge Novais, que fala que os direitos fundamentais são um trunfo contra a maioria. Ou seja, numa democracia não existe só a regra da maioria. A vontade da maioria prevalece sempre, salvo se estão em jogo direitos fundamentais.
É como aquela carta do joguinho [Trunfo], que ganha de todas as outras. Se você vai submeter os direitos fundamentais, que é o trabalho do juiz, ao apreço da maioria, ele vai acabar. Não vai existir, porque as maiorias, as emoções, o sensacionalismo, isso tudo acaba desprotegendo os direitos.
O sr. considera que, na Lava Jato, Ministério Público e juízes agiram de uma forma moralizadora e se considerando os heróis da sociedade. Atualmente temos um procurador-geral da República visto como omisso. É o oposto disso. Qual o ponto de equilíbrio? Temos um problema sério com o Ministério Público. De um lado, nós tivemos um protagonismo excessivo do ponto de vista de criminalizar a política e, do outro lado, de blindar o poderoso.
Acho que nenhuma das soluções são possíveis, então talvez nós tenhamos que fazer uma alteração —e está se discutindo isso hoje— de não deixar a legitimidade exclusiva na mão do procurador-geral da República, porque acaba sendo uma concentração de poder excessiva.
Em vários países essa questão foi levantada num ponto de vista político ou criminal, de que os promotores são considerados uma instituição sem controle. O Conselho Nacional de Justiça [CNJ], com seus prós e contras, seus acertos e erros, exerceu muito mais controle sobre os juízes do que o CNMP [Conselho Nacional do Ministério Público] sobre os promotores.
Dizia-se muito sobre corporativismo entre os juízes. De fato, o corporativismo é um contexto na magistratura, mas a gente percebeu que ele foi ainda mais forte no Ministério Público. Me parece que de repente a gente percebeu que, se o procurador-geral da República não quer fazer, ninguém pode fazer –nem mesmo o juiz.
Então, os juízes estão fazendo inquérito sem procurador. Está errado, porque tem que passar por ele, e ele pode pedir arquivamento. A gente aprende isso na faculdade: não há negativa a um pedido de arquivamento do procurador-geral da República. Mas, de repente, criou-se. Esse desvio está pelo menos nos mostrando que não há poder que seja absoluto, nem mesmo o poder de acusar do Ministério Público. Talvez seja o caso de rever isso.
Se discute no Congresso a possibilidade de quarentena para juízes se candidatarem em eleições após deixarem o cargo. O sr. vê com bons olhos? Sempre vi com bons olhos essa ideia da quarentena desde que ela seja recíproca. Da mesma forma que o juiz não devia poder se aposentar e logo participar da política, também não deveriam pegar uma pessoa que está dentro da política e botar no Judiciário, como ministro da Justiça ou AGU [advogado-geral da União] que vira ministro do Supremo. É uma quarentena dos dois lados.
Você pega o governo Fernando Henrique. Ele nomeou três ministros do Supremo: um deles era ministro da Justiça, Nelson Jobim, e um era AGU, Gilmar Mendes. Praticamente ele colocou o governo dentro do Supremo. Acho que para isso também devia ter uma quarentena. Quarentena para sair e disputar eu acho razoável, para você não utilizar o cargo como trampolim político.
O sr. tem uma posição ideológica e não tem vergonha de mostrar que tem essa posição. Todo o Judiciário deveria ter mais transparência nesse sentido para o público que está sendo julgado? O Eugenio Zaffaroni, que hoje é da Corte Interamericana [de Direitos Humanos], foi ministro do Supremo argentino e é um grande pensador do direito, diz que quem buscou o juiz asséptico foi o fascismo. O fascismo queria um juiz asséptico porque ele aceita tudo. Querer um juiz que não tem ideologia ou não tem pensamento é uma ilusão. O que existe são aqueles que estão enrustidos ou explorados.
O que o juiz não pode ter, e eu não tenho, é política partidária. Nunca participei de partido, mesmo antes de ser juiz, não faço campanha de nenhum partido. Fui juiz eleitoral e nunca fui criticado nas decisões eleitorais que tomei. Agora, ideologias todos têm, do ponto de vista amplo.
Toda a construção do pensamento de uma pessoa decorre daquilo que ela estuda, aprende e vive. Por isso eu defendo mudar o concurso para ter um recrutamento mais plural, para que trazendo pessoas de outros matizes a gente possa ter uma coisa mais ampla. Mas eu não tenho, por exemplo, nenhum problema do ponto de vista das minhas decisões.
Marcelo Semer, 55
Doutor em criminologia e mestre em direito penal pela USP, é desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo, ex-presidente e membro da AJD (Associação Juízes para a Democracia)
Entrevista publicada originalmente na Folha de S.Paulo.
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