Por Ana Amélia Mascarenhas Camargos, Luciano Rollo Duarte e Evandro Andaku
Vivemos no Brasil momentos difíceis na esfera da economia, da política, e também e principalmente, do Direito. É sempre bom lembrar que a Democracia não é uma construção definitiva. Precisa sempre de aperfeiçoamentos, o que demanda cuidados constantes. As conquistas de décadas podem ser perdidas em algumas semanas. Se é assim no mundo, na América Latina, em especial, dada a sua história de fragilidade institucional, essa característica ganha contornos mais graves e alarmantes.
Neste contexto de natural instabilidade, uma especial e relevante atribuição recai sobre os advogados. Se ao Juiz cabe se pronunciar apenas quando chamado – embora suas associações tenham representatividade para manifestos gerais -, e ao Ministério Público cabe a defesa da sociedade, em geral e de modo abstrato, na tutela de interesses difusos e coletivos, ao Advogado cabe a defesa real e diuturna do cidadão no caso concreto.
A abstração do conceito de interesses da sociedade deixa, às vezes, dúvidas sobre o acerto de uma posição ministerial. Ser contra, a priori, a destinação da avenida mais famosa de São Paulo às pessoas aos domingos, por exemplo, atenderia aos efetivos interesses da sociedade paulistana? De outro lado, a redução da velocidade máxima permitida na via interna das marginais é medida administrativa conforme o interesse público, consistindo ato de governo válido ou eventual antipatia geral autoriza a intervenção do Judiciário?
O caso concreto delimita o interesse e circunscreve a aplicação da Justiça. O advogado é a voz do filho abandonado, do comerciante espoliado, do trabalhador ultrajado pela corporação, do consumidor ludibriado e do cidadão vilipendiado e oprimido por órgãos do Estado, muitas vezes de índole repressiva. Com isso, o advogado, em sua experiência empírica, embasada que deve ser em robusta formação teórica e prática (embora nem sempre verificáveis), é um observador privilegiado da realidade.
Mas a advocacia pouco tem opinado, pouco tem se manifestado, pouca influência tem exercido nos debates públicos da atualidade. Essa constatação reflete, infelizmente, uma sentida perda de importância de seu papel na sociedade e de sua órbita de atuação, que não têm um único culpado. A sociedade evoluiu nos últimos anos.
Outras entidades de representação de classe e novos atores sociais ganharam destaque, organizações não governamentais surgiram, o debate se tornou mais complexo e o discurso se fragmentou. Pulverizada a palavra, a nossa OAB, em todas as suas esferas, parece ter se introjetado. Mas há, ainda, destacadas funções, inerentes ao sacerdócio da Advocacia, a ser mais bem observadas e encaminhadas.
É preciso que façamos também uma autocrítica. O advogado, seguindo uma tendência quase universal, seguiu o caminho da especialização, afastou-se das outras disciplinas caras a nossa formação, como as ciências políticas e sociais, a filosofia e a economia. Com o grande advogado francês do século XVIII, Armand-Gaston, é preciso que voltemos a “¹adquirir omnium rerum magnarum atqueartium scientiam: a ciência de todas as grandes coisas e de todas as artes”.
Nossas entidades, premidas pela necessidade de uma atuação intramuros de socorro aos membros de uma classe que empobrece, porque tragados pela concorrência de milhares de novos colegas vindos de incontáveis cursos Brasil afora – sem contar a própria banalização e depauperamento da Justiça -, não perceberam a nova realidade que foi tomando conta de nosso País, com o estabelecimento da ideologia neoliberal e de uma globalização perversa.
Perdeu força a Advocacia, mas assim mesmo os Advogados seguem, fragilizados, no obstinado cumprimento da missão que a Constituição Federal tão solene e claramente nos outorga. Nessa encruzilhada que se vê o País, encontra-se também a Advocacia e os Advogados.
Amanhã teremos novas eleições para os cargos diretivos da Seccional Estadual da Ordem dos Advogados do Brasil, seção São Paulo. O que vemos por todos os lados é um pouco mais do mesmo. Eleições caras, repetindo vícios da esfera partidária. Ataques injuriosos aos colegas e entre colegas. Pouquíssima proposta nova.
Quase nenhum comprometimento sério, a partir da inexistência de mecanismos de transparência e cobrança por uma massa de advogados que já ultrapassa, só no estado de São Paulo, mais de 350 mil inscritos. Como pretender mudanças em ambiente em que quase todos estão mergulhados em projetos pessoais, de grupos, de setores da advocacia? Perdem os advogados, perde o cidadão.
Não haverá mudanças significativas se todo o conjunto de advogados continuar a mirar seus próprios interesses imediatistas. Sim, apenas a médio prazo podemos restituir a nossa classe um novo patamar, em que o advogado volte a ter uma voz ativa e respeitada por todos. E não porque seja melhor que os demais profissionais e demais atores da sociedade.
Mas porque atuante direto na esfera dos direitos e da cidadania, porque conhecedor dos instrumentos de transformação para uma sociedade mais justa e mais democrática, ciente de que em nosso país a terceira bandeira da revolução francesa, a da fraternidade, ainda está longe de ser concretizada.
O início da mudança poderá estar exatamente no processo eleitoral e na futura gestão, vença o vencedor. Que a este não restem as batatas. Não! Que aproveitemos a oportunidade para promover um debate com transparência sobre regras de democratização de nossa própria entidade.
A instituição de segundo turno para colégios eleitorais superiores a determinado número de eleitores, atrelado ao voto digital ou ao voto não obrigatório. Uma nova maneira de composição dos conselhos seccionais, que deveriam passar a funcionar como um legislativo da diretoria eleita e ser proporcional na sua formação, conforme a quantidade de votos recebida por cada chapa concorrente.
No caso de São Paulo, a reestruturação das comissões não permanentes, que são centenas, mas de pouca, acrítica e discreta atuação. Enfim, devemos começar a tarefa de revalorização do Advogado e da Advocacia pela reordenação de nossa própria casa.
Desmistificar a ideia, de senso comum e deturpada, de que o advogado, antes de ser um profissional da Lei e do Direito, seria mais um parvo bufão ou, quando muito, um espertalhão pronto ao aplique! Instituir novos meios de diálogos com as faculdades para o aprimoramento da formação profissional – tanto técnica quanto ética -, fomentar diálogos com outras entidades de classe para cooperação no âmbito acadêmico e profissional. Não vamos nos iludir.
Não voltaremos a ter o protagonismo de outras eras para inflar o nosso ego. Mas isso não é ruim, pois a criação de um novo protagonismo deve visar ser uma ferramenta capacitada a contribuir para a construção de uma nação verdadeiramente emancipada, além de uma voz autorizada a construir cidadania e a desconstruir os rompantes de autoritarismos que a todo momento insistem em vir à tona em nosso País, funções inatas à Advocacia e aos Advogados. Que a Advocacia não se perca, portanto, de seu mister.
¹Robert Henri, O Advogado, Martins Fontes
Texto publicado originalmente no Consultor Jurídico.
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