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Nita Costa, Dinha e a identidade cultural do Rio Vermelho

Nita Costa, Dinha e a identidade cultural do Rio Vermelho

Por João Carlos Souto

Estive em Salvador em novembro de 2023, para proferir palestra no Tribunal de Justiça da Bahia, a convite do Desembargador Mário Albiani Júnior, um gentleman a quem fui apresentado pessoalmente minutos antes de a palestra ter início.

Falei, para variar, sobre a Suprema Corte dos Estados Unidos, os que são próximos sabem que eu conheço somente esse tema, e muito me orgulho disso, até porque desde a 1ª edição de “Suprema Corte dos Estados Unidos  – Principais Decisões”, em 2008) que o tema parece ter conquistado ainda mais musculatura no Brasil, frequentando artigos e tuítes de um grupo de estudiosos e “quase” estudiosos sobre o tema, que ora me citam e ora se esquecem de me citar, “C’est La Vie”, diriam os gauleses.

Voltando ao convite do Tribunal de Justiça da Bahia  –   por sinal a mais antiga Corte de Justiça das Américas, fundada em 1609, como “Tribunal de Relação da Bahia”  –  estando em terras soteropolitanas, aproveitei para ir ao Rio Vermelho, bairro que abrigou Jorge Amado por largos anos e me abrigou também, ainda criança, cruzando avenidas para uns mergulhos na “praia” da maternidade “Nita Costa”, centro de saúde inaugurado em 1936, no alto de um morro, com uma praia pedregosa e de águas límpidas nos idos de 1970. A maternidade praticamente já não funcionava nos anos 70, mas o prédio estava lá, imponente, abandonado, numa época em que Salvador se consolidava como celeiro da Música Popular Brasileira, com Caetano, Gal, Bethânia, Gilberto Gil, Tom Zé e o Movimento de contestação a tudo e todos, mas especialmente contra o Regime de exceção que se instalara na década de 1960 e se radicalizara a partir de fins dessa década e início da seguinte. O prédio da Nita Costa testemunhou Getúlio e o período posterior a 1964.

Nita Costa sucumbiu à fome pantagruélica das construtoras e incorporadoras, e com ela se foi parte da identidade cultural do Rio Vermelho.

Da Maternidade Nita Costa só restam memórias e os escombros das escadarias. Felizmente o Largo de Santana está lá, onde o Rio Vermelho começa a se aproximar de Ondina. Estive no Largo e pude apreciar o casario e as duas igrejas, em verdade duas igrejinhas que crescem de importância no Dois de Fevereiro, dia de “festa no Mar”, nos versos de Dorival Caymmi, ele que provavelmente “queria ser o primeiro a saudar Iemanjá.” Mas o que eu queria mesmo, o que eu perseguia desde que aceitei o convite da Justiça baiana, era comer um acarajé da Dinha, lá no Largo. Soube que antes de Dinha aquele pedaço de chão sagrado, que acolhe o que há de melhor da culinária baiana, antes fora ocupado pela avó dela, D. Ubaldina de Assis, que ali fincara raízes em 1944, quando os pracinhas lutavam na Europa por um mundo livre e provavelmente “no tempo que Lessa era goleiro do Bahia, um goleiro, uma garantia”, como afirma Gilberto Gil em “Tradição”.

Claro que degustei o acarajé da Dinha, em verdade, dos descendentes da grande quituteira, falecida em 2008. Mas o que me preocupou foi um artigo de Flávia Azevedo publicado no Jornal Correio, de 23 de março de 2024, com o título “O que aconteceu com o acarajé de Dinha?” A autora, num texto agradável, diz que experimentou um acarajé há alguns dias e foi surpreendida com a baixa qualidade da iguaria: textura, gosto, ingredientes, etc. E mais, alguns garçons dos bares que circundam o famoso tabuleiro disseram que têm sido comuns as reclamações.

Grande parte do conjunto arquitetônico do Rio Vermelho despareceu, engolido por projetos imobiliários, alguns de gosto duvidoso. É preciso, pelo menos, salvar o “conjunto culinário” para preservar a identidade cultural dessa importante parte da cidade. Que a sociedade se mobilize e que Irmã Dulce dos Pobres abençoe.

Artigo publicado originalmente na Tribuna da Bahia.

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