De tédio, neste país, ninguém morre. Depois de uma árdua batalha em favor de um dos pilares daquela que se constituiu como a grande tradição do direito brasileiro — uma luta para que o Supremo Tribunal Federal fizesse aquilo que cabe às instituições em tempos de ameaças à democracia (i.e., que fizesse o papel de dizer o óbvio) —, enganou-se aquele que se deixou seduzir pela vitória. Nestes tempos, uma conquista traz, junto aos louros, o anúncio das outras longas batalhas que virão.
Agora, há juristas do alto e do baixo clero, jornalistas e jornaleiros, antissociais em redes sociais clamando por uma espécie de overruling legislativo; urrando — e o verbo é mesmo esse mesmo — gritos de ordem para que agora então o Parlamento altere as regras do jogo. A estratégia agora é contrariar o que dizem a lei, a Constituição e o Supremo Tribunal Federal por meio de propostas de emendas constitucionais e até mesmo de alterações do mesmo artigo de lei que o Supremo Tribunal já disse ser constitucional. Durma-se com esse barulho desinstitucional.
O Constituinte disse: Ninguém será considerado culpado antes do trânsito em julgado. Fez mais: colocou esse artigo como cláusula pétrea, que, para usar uma linguagem bem simples, é o “quarto do pânico do castelo da democracia”.
O legislador processual penal, alinhando-se ao que dispõe a Constituição em toda sua força normativa, disse: Ninguém poderá ser preso antes do trânsito em julgado, a não ser por prisão em flagrante ou preventiva.
O Supremo Tribunal Federal, à luz do que dispõe a Constituição Federal, disse: É constitucional o dispositivo segundo o qual ninguém poderá ser preso antes do trânsito em julgado.
Essa é uma das grandes as regras do jogo. As regras que construídas, enraizadas, naturalizadas e reafirmadas, construíram nossa grande tradição.
Busca-se agora alterar essa grande regra. Por uma série de falsas razões, uma série de inadequados modos. É o que pretendo mostrar por meio de cinco argumentos em favor da presunção de inocência. A você, leitor, meus cinco argumentos são um convite; um convite à grande tradição. Ei-los, pois:
I. O ARGUMENTO DAS CONQUISTAS CIVILIZATÓRIAS
A presunção de inocência é uma conquista civilizatória. Esse é o primeiro ponto e ele é fundamental. Retomo aqui as acertadíssimas palavras da Ministra do Supremo Tribunal Federal, Rosa Weber, em seu magistral voto quando do julgamento das ADC 43, 44 e 54: “Mesmo durante o período sombrio do processo inquisitivo na Europa continental, o princípio da presunção da inocência manteve alguma influência”.
O raciocínio pode ter sido tornado complexo em meio a tantos mitos — sobre os quais voltarei a falar depois —, mas a questão é, de fato, muito simples: tudo o que a Constituição Federal e a legislação processual penal determinam, hoje, é o seguinte: ausentes os pressupostos de prisão cautelar, ninguém poderá ser preso. Porque, afinal, ausentes esses pressupostos, o réu é constitucionalmente inocente. E, desnecessário lembrar (mas, repito-me, reafirmar o óbvio é — como dizia Orwell — nossa tarefa em tempos de abismo), mas a própria Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, dispõe que “todo homem deve ser presumido inocente até que tenha sido declarado culpado”.
“[T]odo homem deve ser presumido inocente até que tenha sido declarado culpado”. Negar isso é negar a sacralização de um dos princípios da democracia liberal pós-1800.
Retomo, então, uma vez mais, as acertadas palavras de Rosa Weber: “Gostemos ou não, esta a escolha político-civilizatória manifestada pelo Poder Constituinte, e não reconhecê-la importa reescrever a Constituição para que ela espelhe o que gostaríamos que dissesse, em vez de a observarmos.”
Alguém dirá que, bem, uma PEC (emenda constitucional) pode “reescrever a Constituição para que ela espelhe o que gostaríamos que dissesse”. Pode até ser, em alguma medida. Mas há limites.
Um desses limites é o de que (A) a presunção de inocência é cláusula pétrea. E que não se pense que alterar o sistema recursal seja uma alternativa por meio da qual se pode escapar disso. O recurso judicial é garantia individual fundamental. E, na democracia, direitos são trunfos. Trunfos contra maiorias eventuais, contra cálculos consequencialistas, contra pragmatismos. Outro desses limites é (B) o ônus de contrariar aquele que é um dos princípios do liberalismo democrático desde antes dos 1800. Será que deputados estão dispostos de encarar tal ônus aos olhos do mundo?
II. O ARGUMENTO DAS (I)LEGÍTIMAS RAZÕES LEGISLATIVAS
Não se alteram leis com raiva ou dedo em riste. Que me perdoem os deputados que discordam desta minha tese, mas penso que não há espaço para pontos de exclamação em exposição de motivos.
Não se alteram leis com base em mitos e mentiras. Que me perdoem os deputados que discordam desta minha tese, mas penso que não há espaço para “narrativas” em exposição de motivos.
É “curioso” que toda essa movimentação contra a presunção de inocência tenha surgido após a soltura do ex-Presidente Lula. As PEC, penso, poderiam ser chamadas de PL. Não, não “projeto de lei”. “Prendam o Lula”. Seria mais honesto. Não se pense que esse argumento é uma ode ao ex-Presidente. Com todo respeito a ele, é até o contrário. Os antagonistas (não resisto a ironia), os membros do PAPT (coligação dos Partidos Anti-PT) é quem estão dando grandeza de presente ao ex-Presidente. Veja só, querem até alterar a Constituição por causa dele! O terraplanismo científico (!) é o lulocentirsmo legislativo.
Agora, sobre os mitos e lendas urbanas, houve quem dissesse que não sei quantos milhares de presos seriam soltos. Seria o caos. 190 mil pessoas seriam soltas. Grossa mentira.
Para se ter uma ideia, tão “caótico” [sic] ficou o sistema depois da decisão das ADC que, no Rio Grande do Sul, depois da “caótica decisão do STF”, que fez até o dólar subir [sic], que “consagrou a impunidade” [sic], apenas 03 (três) condenados — sim, apenas 03 (três) — saíram com base na nova posição do STF. E, no país, foram 08 (oito) da Lava Jato. Realmente… um caos. Um caos é saber que esse tipo de terrorismo é irresponsavelmente propagado. Como é um caos, aí sim, saber que houve quem dissesse que o Supremo proibiu a prisão. Vejam bem:
Nunca se proibiu a prisão após segundo grau. Nem mesmo a decisão em primeiro grau. Presos perigosos não foram/estiveram/estão presos em razão do posicionamento anterior do STF, mas por motivos de prisão cautelar. Isso sempre existiu e segue existindo.
Vamos jogar a água suja com a criança dentro? Com a palavra, o Parlamento. E a comunidade jurídica, que de há muito já parece ter abandonado o bom direito.
III. O ARGUMENTO DA INSTITUCIONALIDADE
Checks and balances. Outro princípio da democracia liberal: os freios e contrapesos. Agora, que não se diga que, em uma democracia, os poderes estão em conflito. Mais do que nunca, é preciso haver diálogo institucional. Daí então por que pergunto: que mensagem passa(rá) o Parlamento se, tão logo o Supremo (re)afirma que a Constituição Federal, ao consagrar a presunção de inocência, consagrou a ideia de que não se prende um réu cujo status jurídico é o de inocente, buscar alterar uma das grandes regras do jogo? logo após a instituição que detém o papel da Guardiã da Carta Magna reafirmá-la?
Em qualquer democracia digna do nome, cabe à Suprema Corte dizer sobre a constitucionalidade das leis.
Vou então no ponto, na veia: acreditar no Estado de Direito, dizia Lord Bingham, não exige que amemos o direito de nosso país. Você pode conservar seus preconceitos, seus desejos, suas raivas e continuar achando que advogados são vigaristas e que juízes não prestam. Mas, complementa o nosso famoso Lord, o que você não deve esquecer é das características de um regime que não tem instituições que garantam o Estado de Direito: censura, discriminação, desaparecimentos repentinos, aquela batida na porta no meio da noite, julgamentos de fachada e a portas fechadas, tratamento degradante a prisioneiros, confissões sob tortura, etc.
Parlamentares podem discordar do Supremo. Podem discordar das próprias cláusulas pétreas que estabeleceu o Constituinte. Mas contrariar a reafirmação de uma dessas cláusulas alterando a cláusula é contrariar a institucionalidade do país. Não é respeitar a separação de poderes; é contrariar sua própria razão de ser, que é a de cada um respeitando o papel que lhe cabe.
O Congresso — parte do Congresso — parece não se dar conta (dominado em parte pelos gritos das alas punitivistas, que reafirmam os mitos que demonstrei enquanto mitos em meu segundo argumento) de que, se aprovar uma proposta que anula a decisão do STF, dirá que o STF já não tem a última palavra sobre a constitucionalidade das leis.
Mas, afinal, que importância tem isso para um enorme grupo de parlamentares que pregam até mesmo o fim da Constituição?
IV. O ARGUMENTO DE UM DIREITO HUMPTY DUMPTY
Se o artigo 5º da Constituição aponta que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado, e o artigo 283 do CPP diz que ninguém será preso senão depois de trânsito em julgado, salvo cautelarmente; Se o artigo 5º da Constituição garante a coisa julgada, quando não caiba mais recurso; Se também a Lei de Execução Penal exige decisão condenatória; Nem nós, nem o Supremo, nem o Congresso podem (re)inventar a roda.
Humpty Dumpty, personagem tradicional na Grã-Bretanha e consagrado por Lewis Carroll (Alice Através do Espelho), é aquele que diz dar às palavras o sentido que quer. O movimento contra a presunção de inocência, como Humpty Dumpty, quer exatamente isso. Quem quer alterar as regras do jogo quer dar às palavras o sentido que quer.
Tenhamos bem claro: desde sempre, em direito, “coisa julgada” é a qualidade conferida à sentença judicial contra a qual não cabem mais recursos. É o que consagrou a própria Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, a LINDB. Há quem diga então que bastaria uma emenda modificar o sentido normativo de o que seja coisa julgada e, pronto, tudo estaria resolvido: ainda que na pendência de recursos para o Superior Tribunal de Justiça ou Supremo Tribunal Federal, por força dessa nova conceituação, a ser inventada por meio de uma emenda, tudo estaria resolvido.
Ora, coisa julgada não é simplesmente mais um mero valor, porque é a própria Constituição que lhe exige respeito. Coisa julgada é um conceito processual, pertencente ao direito público, com caráter constitucional, porque não opera (como diz Liebman, um dos grandes nomes da tradição do processo) apenas em face de determinadas pessoas, “mas em face de todos os que no âmbito do ordenamento jurídico tem institucionalmente o mister de estabelecer, de interpretar ou de aplicar a vontade do Estado”.
No senso comum, diz-se que “tudo na vida, tudo no mundo, tem limites”. E tem mesmo: é o limite da linguagem. O que essas propostas querem é violar esse limite, o limite da linguagem do direito e dos direitos. Cláusula pétrea é cláusula pétrea. Nem mais, nem menos. Se está difícil de entender, pensem em Ulisses voltando à Itaca. Ele só se salva porque seus marinheiros obedeceram a uma cláusula pétrea. Ele mandou que lhe amarrassem ao mastro do navio. Por que ele sabia que não resistiria ao canto traiçoeiro das sereias. Pois o Estado de Direito também só se salva se respeitarmos àquilo que não se pode alterar. Mesmo que desejemos, ardentemente, alterar a Constituição. Pensem em Ulisses, e em Ulysses: “A Constituição deve ser, e será, o instrumento jurídico para o exercício da liberdade e da plena realização do homem brasileiro”.
V. O ARGUMENTO DA TRADIÇÃO AUTÊNTICA
O direito não é mero apanhado de normas. O direito é um todo coerente, uma tradição autêntica que constrói e é construída, informa e é informada, por regras e princípios que lhe dão sentido. Uma nova lei é adicionada a todo um mundo que já vem antes e informa o universo a que ela virá a pertencer. Não há grau zero para interpretar as leis; tampouco o há para cria-las. É uma questão de standard. Uma questão de princípio.
Falei antes sobre como a presunção de inocência é uma conquista civilizatória. Pois é. O processo civilizatório é uma estrada. Uma longa estrada, uma longa caminhada. Que vem sendo traçada.
Esse é o direito. Cada nova lei, cada novo precedente, cada nova emenda, nada disso é isolado ou um em-si-mesmo. É um passinho a mais na estrada da grande tradição. Daí por que uma PEC pode até preencher todos os requisitos formais que ainda assim não será legítima. Porque um pequeno passo atrás não é suficiente para retroceder todo o avanço de uma longa caminhada.
Democracia não se faz com checklist. Eleições, imprensa, tudo isso é condição mínima para um sistema democrático. Mas não é condição suficiente.
Direito não se faz com checklist. Quórum, votação, tudo isso é condição mínima para um ato legislativo. Mas não é condição suficiente.
Não é, não pode ser, não será legítima qualquer proposta de emenda à Constituição que contrarie tudo aquilo que diz a autêntica tradição constitucional desde 1988. Dizer o contrário é ter a pretensão de crer-se apto a dar um passo maior que toda a caminhada que faz o direito brasileiro ser o que é.
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