Neste final de ano, os acontecimentos trágicos que dominaram o palco brasileiro e mundial com a pandemia e suas consequências mortíferas, associados à incompreensão e tirania de governantes e, também, das pessoas, em geral, desprovidas de sentimentos de afeição e solidariedade me induziram a ficar em silêncio. Já estava conformado com esse silêncio, quando fui despertado por uma afirmação interrogante de minha amiga Natalia Cunha Lima: “procurei por seu novo texto, mas não o achei”. Mediante essa indução, propus-me a escrever um texto curto. Em minhas andanças acadêmicas, sempre tive uma preocupação de saber distinguir o falso do verdadeiro.
A propósito, parece que todos nós estamos na busca de uma verdade. Essa busca acomete tanto os que assentam seus pensamentos nas narrativas enunciadas pela ciência quanto os negacionistas. Ambos pretendem demonstrar, com suas atitudes, que estão certos, que detêm o poder de afirmar ou negar a verdade. A busca pela verdade não é, então, apenas produto de uma simples especulação sobre fatos ou sobre a interpretação desses fatos, senão a sedimentação política de ideias e de poder.
ARISTÓTELES dizia que a verdade é a conformidade entre o pensamento e o objeto. Contudo, em uma sociedade composta por proprietários e não proprietários há que se perguntar: a quem pertence o objeto? Parece, então, que a verdade não é uma mera expressão metodológica. Sua estrutura está comprometida com o poder. Para nós, juristas, acostumados que estamos com as controvérsias, a busca da verdade se estende desde as formulações dogmáticas sobre o conteúdo das normas até sua manifestação procedimental, que passa a constituir uma certa concretização do poder de ditar o direito, que, aliás, fundamenta o conceito de soberania. Quando nos deparamos com esse cenário, podemos imaginar como se originam as construções jurídicas e como se irradiam para todos os cantos, como fórmulas abstratas para a solução de conflitos.
Já dizia HASSEMER que o direito fascina porque, no fundo, não pode se desvincular de um contexto de imaginações. Claro, se a verdade é aquilo que o poder enuncia, cria-se de fato um campo fértil para imaginações e até para magias. Todo governante sempre sonhou ter um mago como seu conselheiro, ainda que os magos não existam. Sob o influxo desse pensamento, podemos, no entanto, ver que o direito, à medida que o mundo se destrói e se desagrega (embora sempre tenha sido desagregado), não constitui uma entidade fascinante. A ideia de um direito sólido, estável e duradouro, capaz de cativar por seus argumentos e pela eloquência de seus intérpretes, é fruto de um delírio e contrasta, pelo menos, com dois ingredientes da realidade: a brutalidade das relações humanas e o comprometimento dos tribunais com o poder de turno. As relações humanas não são relações cordiais, como se pode imaginar. Atravessadas por inúmeros sentimos pouco altruístas, essas relações jamais deixaram de expressar a contenda, a disputa, a eliminação do concorrente ou inimigo, a perpetuação da exploração, das discriminações, do racismo e dos preconceitos.
Ao contrário do que sempre ouvimos em nossa formação infantil, os seres humanos, em sua história, jamais excluíram o ódio em benefício do amor; no fundo, extravasaram sentimentos perversos e se contentaram com suas vitórias parciais. Esse ingrediente do real não é elemento capaz de produzir fascínio, nem de cativar. Se as relações humanas compõem o contexto de todas as normas, o que esperar, afinal, dos tribunais que as incorporam? Vamos repetir: as relações humanas não são relações cordiais. Os sentimentos perversos que as integram são todos aqueles que se manifestam nas relações de poder. Ao ter em vista essa característica das relações humanas, como relações de poder, podemos compreender que os juízes não são heróis iluministas, capazes de refundar a sociedade; são a expressão dessas mesmas relações, com todas as particularidades de seu conteúdo.
O leitor poderá dizer que meu texto é muito pessimista. Não, meu texto é realista. Justamente por essa realidade, é que temos que empreender uma outra busca da verdade. Uma outra busca da verdade implicará, porém, um processo de sua desconstrução. Se a verdade está vinculada ao poder, só poderemos purificá-la mediante um ato de desconstrução. O processo de desconstrução poderá mostrar a grande distância existente entre o que está escrito em uma norma, ou em uma sentença, e os fatos efetivos da realidade e poderá desarticular as chamadas racionalizações, que apenas servem para justificar o que propõe o poder. Só desconstruindo a verdade, que, em vez de camuflar, deve desnudar o conteúdo das relações humanas, poderemos tentar reconstruir uma nova sociedade, em que a pessoa humana não seja nem explorada e nem instrumento de exploração, que possa internalizar o sentimento de que sua existência e felicidade dependem da existência e da felicidade dos demais.
FELIZ ANO NOVO!!
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