“A gente tem que entender o problema na complexidade que ele tem. Quando dizem que a Cracolândia existe por causa de mim, eu sempre penso: ‘se eu morrer hoje ou amanhã, a Cracolândia vai desaparecer?’. Se eu sou a causa, é tão fácil de resolver. É só eu morrer que acabou a Cracolândia. Não tem mais…”1
–Padre Júlio Lancelotti
A Câmara dos Vereadores da cidade de São Paulo, ao findar o ano de 2023, em decorrência de requerimento capitaneado pelo vereador Rubinho Nunes (União Brasil), o “Mamãe Falei”, cassado pela Alesp em 2022 por quebra de decoro parlamentar, e também firmado por, ao menos, 24 vereadores, do total de 55 (especula-se, hoje, 4/1, que quatro edis, em face da revolta social advinda em decorrência do teratológico pedido de abertura de CPI que visa, às escâncaras, atingir o trabalho pastoral desenvolvido pelo padre Júlio Lancelotti, bem como à sua honorabilidade, retiraram os seus nomes do requerimento; ver-se-á, em pouco tempo, se o número mínimo de assinantes de requerimento de tal jaez foi atingido porque, do contrário, para o lixo ele irá, por falta de requisito objetivo a justificar o seu processamento), poderá instalar uma CPI com a “finalidade de investigar as Organizações Não Governamentais (ONGs) que fornecem alimentos, utensílios para uso de substâncias ilícitas e tratamento aos grupos de usuários que frequentam a região da Cracolândia”2, objetivando, por conseguinte, “investigar toda essa máfia da miséria que se perpetua no poder através de ONGs esquerdistas”3, deixando, às claras, ser o religioso o alvo dos firmatários do pedido de instalação da CPI porque suas excelências, subestimando a inteligência das pessoas, em um infantil jogo de palavras, já na primeira cartada permitem ver o lobo encoberto pela pele do cordeiro.
Padre Lancelotti, personalidade “conhecida nacionalmente pelo trabalho que realiza com a população em situação de rua na capital paulista. Há mais de 40 anos militando pelos pobres, o sacerdote, de 75 anos, é coordenador da Pastoral do Povo da Rua, da Arquidiocese de São Paulo4, a qual emitiu nota de solidariedade, tal qual “n” entidades da sociedade civil, por todas, o Instituto Vladimir Herzog e a Comissão Arns5, exclamando estar acompanhando, com perplexidade, “a possível abertura de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que coloca em dúvida a conduta do Padre Júlio Lancelotti no serviço pastoral à população em situação de rua”, redizendo “a importância de que, em nome da Igreja, continuem a ser realizadas as obras de misericórdia junto aos mais pobres e sofredores da sociedade”6.
Tamanho o reconhecimento de sua missão religiosa, bem com a de sua reputação pessoal, em certa ocasião recebeu uma ligação telefônica sem identificação e, fugindo ao seu hábito, a atendeu e, para a sua surpresa, do outro lado da linha era o papa Francisco. Diante do inesperado, padre Lancelotti, que estava sentado, se levantou e, a pedido do sumo pontífice, explicou-lhe como desenvolvia às suas atividades com os irmãos de rua, há muito largados as parcas pelo Estado, sem deixar de acentuar, com a simplicidade que faz parte do seu Eu, que tudo era “um instrumento, que o principal é conviver. E [o papa Francisco, em resposta, lhe] disse: [é] isso mesmo, conviver sempre com os pobres como Jesus. Não desanime. Continue convivendo com os pobres e transmita a eles o meu carinho e meu afeto. Eu lhe dou a minha benção”7.
Em meio de mais um furacão no qual se vê envolto, tão só, por bem cumprir com a sua missão pastoral que lhe foi delegada pela Arquidiocese paulista, com a serenidade e a paz de espírito daqueles que sempre estão do lado certo da história, indagado pela imprensa sobre o assunto “disse que as CPIs são legítimas [nem todas!], mas informou que não pertence ‘a nenhuma organização da sociedade civil ou organização não governamental que utilize convênio com o poder público municipal”, salientando que “[a] atividade da Pastoral Povo da Rua é uma ação pastoral da Arquidiocese de São Paulo que, por sua vez, não se encontra vinculada, de nenhuma forma, às atividades que constituem o requerimento aprovado para a criação da CPI em questão”8. A ver o destino que o esdruxulo requerimento terá após o recesso legislativo. Águas fétidas rolarão, antevê-se, principalmente em um ano eleitoral, onde as ferrenhas disputas já se iniciaram desde meados do ano passado.
As CPIs, braço forte do Legislativo, foram fortalecidas pela Constituição de 1988 e popularizadas, a fórceps9, a partir do início da década de 1990, porque há muito em desuso. A sua precípua função é apurar fato determinado de relevante interesse para à vida pública, à ordem constitucional, legal, econômica e social do país, tudo com o objetivo de aperfeiçoar o processo legiferante.
Diferentemente do pensamento de grande parcela da população, não excluindo os profissionais da área do Direito, por todos, cita-se André Jorgetto10, as CPIs não são delegacias de polícia destinadas a apurar crimes. Claro está que, no curso da inquisa, tal qual como no de qualquer procedimento de natureza pública, se indícios de crimes forem descobertos, os agentes públicos (os particulares tem a faculdade, não o dever) têm o dever de remetê-los às autoridades públicas detentoras de atribuições, por força de comando expresso da Constituição Federal (artigo 129), sendo certo, ademais, que, ainda de encontro com Jorgetto, no caso de CPI, a qual é constituída por um colegiado que a representa, conforme termos do regimento da Casa que a instituiu, existe uma especificidade, correlacionada a circunstância de não poder um isolado membro, até mesmo mais de um, por sua própria e exclusiva iniciativa agir desta ou daqueloutra forma porque, por imperativo constitucional, legal e regimental, tudo há de ser submetido à votação do Plenário, o qual, por maioria, é o único com competência para deliberar sobre todos os requerimentos, exceto aqueles que são de competência do presidente, do vice-presidente e do relator, que também não são inquebrantáveis, já que há previsão de interposição de recurso para o Pleno da Casa, portanto, até mesmo os relacionados às ditas peças de indícios de crime, hão de seguir à votação e, aprovado o pedido, o presidente enviará, em termos, às autoridades públicas com atribuição para apurar crimes.
O tempo da investigação há de ser certo, podendo ser prorrogado, sempre nos termos do regimento da Casa, porém, desta feita, pelo Plenário da Casa que a instituiu. Quer-se, com a limitação temporal, evitar que a CPI se torne um procedimento de exceção e infindo. Contudo, o que se tem assistido com frequência insuportável em nosso país, são CPIs inauguradas sem que o seu objeto esteja definido (ou, pior, definindo conforme o oportunismo político da ocasião, como é a hipótese da CPI ora em exame, por desventura seja aprovada sua aberturar), que “parlamentares-show”, sem nenhum compromisso público, usurpem dos poderes que lhes foram cometidos pelo constituinte e, com a imoralidade dos fascistas e seduzidos pelos efêmeros efeitos dos mutantes holofotes (pau de que dá em Chico, dá em Francisco, diz o dito), pratiquem atrocidades contra a dignidade das pessoas humanas, dentre outros, na contramão do estado democrático de direito.
As CPIs, que devem ser instaladas se e quando cabíveis, precisam repensar nos seus desmandos porque, despidas de qualquer tipo de ranço, estarão aptas a prestar os serviços públicos que a nação brasileira tanto necessita. Não é difícil, é só lembrar da educação que as mamães brasileiras falaram a todos…
1 Padre Júlio Lancellotti e CPI contra ONGs em SP: veja perguntas e respostas sobre proposta que causou polêmica. Disponível em: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2024/01/04/padre-julio-lancellotti-e-cpi-contra-ongs-em-sp-veja-perguntas-e-repostas-sobre-proposta-que-causou-polemica-em-sp.ghtml. Acessado em: 4/1/2024.
2 Padre Júlio Lancellotti deve ser alvo de CPI na Câmara de SP. Disponível em: https://www.poder360.com.br/brasil/padre-julio-lancellotti-deve-ser-alvo-de-cpi-na-camara-de-sp/. Acessado em: 4/1/2024.
3 Idem.
4 Quem é padre Júlio Lancellotti e por que a Câmara de SP quer investigá-lo em CPI das ONGs?. Disponível em: https://www.estadao.com.br/politica/quem-padre-julio-lancellotti-camara-sao-paulo-comissao-parlamentar-inquerito-cpi-ongs-populacao-rua-cracolandia-nprp/. Ceado em: 4/1/2024.
5 Páginas de Instagram @vladimirherzog e @comissaoarns
6 Arquidiocese de SP defende atuação do padre Júlio Lancellotti e se diz ‘perplexa’ com CPI. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2024/01/04/arquidiocese-de-sp-defende-atuacao-do-padre-julio-lancellotti-e-se-diz-perplexa-com-cpi.htm?cmpid=copiaecola. Acessado em: 4/1/2024.
7 Padre Júlio Lancellotti: Todos querem acabar com a Cracolândia, mas métodos são insuficientes. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/sociedade/padre-julio-lancellotti-todos-querem-acabar-com-a-cracolandia-mas-metodos-sao-insuficientes/. Acessado em: 4/1/2024.
8 Arquidiocese de SP defende atuação do padre Júlio Lancellotti e se diz ‘perplexa’ com CPI. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2024/01/04/arquidiocese-de-sp-defende-atuacao-do-padre-julio-lancellotti-e-se-diz-perplexa-com-cpi.htm?cmpid=copiaecola. Acessado em: 4/1/2024.
9 Decisões do STF e atuação de advogados moldaram direitos em CPIs. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-mai-22/decisoes-stf-atuacao-advogados-moldaram-direitos-cpis/. Acessado em: 4/1/2024.
10 Possível crime de abuso de autoridade em curso contra o padre Júlio Lancellotti. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-jan-04/possivel-crime-de-abuso-de-autoridade-em-curso-contra-o-padre-julio-lancellotti/. Acessado em: 4/1/2024.
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