Estudos acadêmicos publicados no Brasil e nos EUA submetem o legado da Operação Lava Jato a exame crítico, sugerindo que opção por métodos controversos minou a legitimidade de suas ações e inviabilizou reformas que poderiam ter efeitos mais duradouros para o enfrentamento da corrupção no país do que os processos criminais.
No início de setembro, quando a Procuradoria-Geral da República renovou mais uma vez o prazo da força-tarefa da Operação Lava Jato em Curitiba, o procurador Deltan Dallagnol comemorou nas redes sociais. “É uma resposta ao anseio da sociedade”, escreveu. “Mais de 400 investigações ainda estão em andamento e não poderiam ser simplesmente abandonadas.”
O futuro da operação segue incerto, entretanto. Criada após a descoberta do envolvimento de uma rede de doleiros com um esquema de corrupção na Petrobras, em abril de 2014, a força-tarefa de Curitiba teve seu mandato prorrogado por prazo mais curto desta vez, até janeiro de 2021. Nada garante que ela continuará funcionando depois disso.
Deltan, que pedira mais um ano, afastou-se da equipe por razões familiares pouco antes do anúncio da decisão, após meses de atrito com o procurador-geral, Augusto Aras. O novo coordenador do grupo, Alessandro Oliveira, está revendo prioridades, enquanto a cúpula do Ministério Público Federal busca um novo modelo para organizar suas ações de combate à corrupção.
Não é só em Brasília que o prestígio da operação parece em baixa. Uma nova safra de estudos acadêmicos, incluindo trabalhos produzidos com a colaboração de pesquisadores estrangeiros, começou a promover uma reavaliação profunda do legado da Lava Jato, submetendo a olhar crítico as estratégias que deram impulso às investigações e suas consequências.
Os autores desses estudos reconhecem que os êxitos da operação resultam do fortalecimento das instituições encarregadas de coibir os abusos do poder após a redemocratização do país, mas a veem também como produto de ações voluntaristas que contornaram as regras do sistema de justiça criminal para atingir seus objetivos e assim minaram sua legitimidade.
A tese é defendida com vigor por Fabiana Alves Rodrigues num livro que acaba de ser lançado, “Lava Jato: Aprendizado Institucional e Ação Estratégica na Justiça”, adaptação de uma dissertação de mestrado aprovada pelo Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo no ano passado e resultado de uma pesquisa minuciosa nos processos de Curitiba.
Rodrigues, juíza federal em São Paulo, não discute o mérito das acusações dos procuradores. Ela se debruçou sobre documentos públicos e dados objetivos extraídos dos autos para tentar entender as escolhas feitas pelo ex-ministro Sergio Moro quando era o juiz responsável pelo caso no Paraná. Assim, colecionou evidências que reforçam as dúvidas sobre a isenção do ex-magistrado na condução da operação.
Moro foi celebrado por impor celeridade às ações da Lava Jato e aplicar penas rigorosas a políticos e empresários corruptos, mas Rodrigues mostra que alguns processos andaram mais rápido que outros e conclui que houve uma estratégia deliberada para fazer as investigações avançarem na direção almejada pelos procuradores, em que o papel de Moro como juiz se confundiu com o do Ministério Público.
Das 84 ações iniciadas pela força-tarefa de Curitiba nos primeiros cinco anos da operação, 49 foram julgadas até o fim de 2018, quando Moro abandonou a magistratura para ser ministro da Justiça do governo Jair Bolsonaro. A maioria recebeu sentença em menos de dois anos, mas algumas levaram o dobro de tempo para alcançar um desfecho. No fim desse período, 20 ações iniciadas havia mais de três anos ainda aguardavam julgamento.
O levantamento de Rodrigues não encontrou um padrão que justificasse essas diferenças no andamento dos processos. Ações com grande número de réus e testemunhas para ouvir foram julgadas por Moro mais rapidamente que casos relativamente mais simples —e algumas com número menor de acusados levaram mais tempo para receber sentença que outras de complexidade semelhante.
Rodrigues só achou uma explicação ao analisar o encadeamento das ações da Lava Jato. Processos abertos contra executivos das empreiteiras acusadas de pagar propina para fazer negócios com a Petrobras, ela concluiu, andaram rápido porque ajudavam a colocar as empresas sob pressão, de forma que aceitassem cooperar com os investigadores e denunciassem os políticos que corromperam.
A maioria dos delatores da Lava Jato estava em liberdade quando decidiu colaborar, em troca de penas mais brandas e da preservação de parte do seu patrimônio. O trabalho de Rodrigues, todavia, mostra como as prisões autorizadas por Moro nas várias fases da operação e o ritmo acelerado imprimido às ações judiciais foram decisivos para criar o clima propício para as negociações.
Em uma amostra com 80 pessoas presas nos primeiros quatro anos das investigações, todas acusadas de participação nos desvios descobertos na Petrobras, ela identificou 46 que se tornaram delatores, mais da metade do total. Dos que não quiseram cooperar, a maioria conseguiu sair da cadeia após recorrer a tribunais superiores ou foi acusada em apenas um processo criminal.
O estudo também recolheu evidências de que ações movidas contra antigos aliados do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que se tornou o alvo principal da força-tarefa de Curitiba, tiveram andamento mais rápido quando os procuradores ainda buscavam provas para sustentar a primeira acusação formal contra o líder petista, o que ajudou a apertar o cerco contra ele.
Na avaliação de Rodrigues, parcerias como a de Moro com o Ministério Público são preocupantes porque esse alinhamento desequilibra o sistema de justiça criminal e abre caminho para abusos. “A ausência de controles efetivos [sobre os atores do sistema] amplia as margens de atuação voluntarista, o que abre portas para a seletividade movida por fatores não submetidos a escrutínio público”, escreve.
É nesse sentido que, na sua visão, as ações da Lava Jato acabaram contribuindo para enfraquecer os esforços contra a corrupção. “O controle criminal que ultrapassa barreiras da legalidade, além de fragilizar a democracia pela ruptura do Estado de Direito, também pode ser qualificado como uma atuação corrupta, em especial se proporcionar benefícios pessoais ou institucionais a quem o promove”, ela diz.
A legislação brasileira permite que o mesmo juiz seja responsável pelo controle judicial de uma investigação criminal e pelo julgamento das pessoas que forem acusadas depois, como no caso de Moro na Lava Jato, mas existem regras para evitar que os magistrados misturem os dois papéis e com isso comprometam a imparcialidade exigida deles.
Moro foi além desses dois papéis, como mostraram as mensagens vazadas no ano passado, trocadas por integrantes da operação no aplicativo Telegram e reveladas pelo site The Intercept Brasil com a Folha e outros veículos. Segundo os diálogos, Moro orientava policiais e procuradores nos bastidores, reunia-se com eles para discutir estratégias e sugeria ações de comunicação com o público.
Em 2019, o Congresso buscou uma solução para esse problema ao instituir a figura do juiz de garantias como responsável pelas investigações, deixando o julgamento com outro magistrado. A inovação, que foi criticada por Moro e pelos procuradores da força-tarefa, foi abortada no Supremo Tribunal Federal por uma liminar do ministro Luiz Fux, que nunca submeteu a questão a julgamento no plenário da corte e hoje preside o tribunal.
A maioria das decisões tomadas em Curitiba que chegaram a instâncias superiores acabou referendada depois, mas Rodrigues atribui isso em parte a uma estratégia de emparedamento dos tribunais, em que a velocidade imprimida às ações da Lava Jato e o acúmulo de casos complexos teriam se combinado para tornar muitas condenações praticamente irreversíveis.
Quando a primeira apelação contra uma sentença de Moro foi julgada no Tribunal Regional Federal da 4ª Região, em setembro de 2015, já havia outras nove ações concluídas em Curitiba, segundo o levantamento de Rodrigues. Um ano depois, quando o primeiro recurso chegou ao Superior Tribunal de Justiça, outros 20 processos estavam a caminho.
Como a Lava Jato conquistou grande simpatia da opinião pública desde o início, argumenta a pesquisadora, sempre houve um custo político elevado para os que contrariassem a operação. Além disso, os acordos de delação premiada impediram muitos colaboradores de recorrer contra suas condenações, o que restringiu o espaço para discutir as decisões de Moro em outras instâncias.
O ministro Teori Zavascki, primeiro relator do caso no STF, chegou a suspender as investigações quando ainda estavam no início, ao suspeitar que a força-tarefa estava investigando ilegalmente políticos com direito a foro especial na corte. Moro logo o convenceu a recuar, mantendo o caso sob seu controle, com uma manobra em que apontou o envolvimento com tráfico de drogas de um dos doleiros investigados.
Dois anos depois, Teori repreendeu Moro pela divulgação de escutas telefônicas realizadas durante as investigações sobre as relações de Lula com empreiteiras, incluindo uma conversa dele com a então presidente Dilma Rousseff que fora interceptada fora do prazo autorizado pelo juiz. Não houve maiores consequências, e Moro foi mantido à frente dos processos.
Para Fábio de Sá e Silva, professor do Departamento de Estudos Internacionais da Universidade de Oklahoma, nos Estados Unidos, uma estratégia de comunicação agressiva também contribuiu para a construção desse ambiente, ao elaborar um discurso político que aos poucos foi usado não só para justificar os métodos da Lava Jato, mas para ampliar os poderes das instituições à frente do caso.
Em um trabalho publicado em outubro, em que descreve os resultados de uma análise de 194 pronunciamentos de integrantes da operação, incluindo entrevistas e artigos de Moro e integrantes da força-tarefa de Curitiba, o pesquisador examina a construção desse discurso e defende a tese de que ele se transformou radicalmente com o avanço das investigações.
“Com o tempo, leis e instituições que tornaram a operação possível passaram a ser apontadas como restritivas, porque eles queriam ampliar seus poderes a pretexto de combater a ameaça representada pela corrupção”, afirma Silva. “Quando os novos poderes foram negados, com a rejeição das medidas propostas pela força-tarefa ao Congresso, eles passaram a justificar a necessidade de contornar a lei em nome do bem maior que dizem representar.”
A cientista política Nara Pavão, da Universidade Federal de Pernambuco, diz que a Lava Jato deve ser entendida como uma cruzada judicial, não apenas como uma investigação de um grande caso de corrupção. “Campanhas desse tipo podem contribuir para reduzir o cinismo do eleitor com a política e a tolerância com a corrupção, mas somente se projetarem uma imagem positiva de eficiência técnica e imparcialidade”, explica.
Em parceria com Ezequiel Gonzalez-Ocantos, da Universidade de Oxford, do Reino Unido, e colegas na Argentina e no Peru, Pavão está estudando o impacto que a operação teve sobre a opinião pública no Brasil e nos outros dois países, que também foram atingidos pelas investigações após a delação da Odebrecht expor desvios na América Latina e na África.
Pesquisas do instituto Ipsos indicam que a confiança dos brasileiros na Lava Jato sofreu uma erosão com o tempo, mesmo antes do vazamento das mensagens do Telegram e da entrada de Moro no governo Bolsonaro. Entre setembro de 2017 e abril de 2018, caiu de 44% para 37% a parcela dos que achavam que a corrupção iria diminuir com a operação, e aumentou de 44% para 51% a fatia dos que previam que ela continuaria igual.
Pesquisadores coordenados por Pavão submeteram diferentes grupos de pessoas a uma série de experimentos. Todos foram questionados a respeito dos resultados alcançados pela Lava Jato, mas para alguns entrevistados a formulação das perguntas realçou o papel dos empresários que haviam colaborado com a Justiça, enquanto para outros foi destacado o envolvimento do Judiciário.
As respostas indicaram que a associação da operação com o Judiciário não resultou em atitudes diferentes dos entrevistados em relação à corrupção, mas reforçou em alguns, com preferências partidárias mais definidas, a indignação com o sistema político e as estruturas tradicionais de representação. “A maioria das pessoas parece não ver o Judiciário como um ator imparcial”, diz Pavão.
Para Raquel Pimenta, pesquisadora da Escola de Direito da Fundação Getulio Vargas em São Paulo, a partidarização do debate sobre a Lava Jato impede o país de avançar no enfrentamento da corrupção, dificultando reformas no sistema político e na legislação que regula o relacionamento das empresas com o Estado, que poderiam produzir efeitos mais duradouros que os da operação.
Num artigo escrito por Pimenta a quatro mãos com a professora Susan Rose-Ackerman, da Universidade Yale, para uma coletânea de trabalhos acadêmicos sobre a Lava Jato publicada nos EUA neste ano, as duas especialistas reconhecem a importância da punição rigorosa dos envolvidos em desvios, mas dizem que a operação, na ausência de outras mudanças, se mostrou insuficiente para deter a corrupção no Brasil.
“A Lava Jato desestabilizou o sistema político, que não conseguiu se reinventar, e alimentou com sua retórica a ilusão de que seria possível prescindir dele para lidar com o problema”, afirma Pimenta, que lançou neste mês um livro, “A Construção dos Acordos de Leniência da Lei Anticorrupção”, baseado em sua tese de doutorado, sobre as negociações do Ministério Público e da Controladoria-Geral da União com as empresas atingidas pelas investigações.
Matthew Stephenson, professor de direito da Universidade Harvard, acha preocupante que o futuro da força-tarefa de Curitiba seja discutido num ambiente de radicalização política como o atual, em que Bolsonaro tem demonstrado publicamente sua hostilidade à Lava Jato, e Moro, após romper com ele, tenta viabilizar uma candidatura presidencial.
“Talvez a partidarização da questão fosse inevitável, dado o impacto das investigações para os principais partidos políticos, só que agora ela não é alimentada apenas pela esquerda, mas também pela direita”, diz Stephenson, um admirador da Lava Jato. “Isso ameaça erodir o apoio da opinião pública à operação, essencial para que ela tenha efetividade”.
Em um trabalho recente, escrito em parceria com Jessie Bullock, ele descarta a ampliação do mandato da atual força-tarefa. Sugere que a melhor maneira de preservar o legado da operação seria disseminar seu aprendizado para aperfeiçoar o trabalho das instituições envolvidas com o combate à corrupção, investindo em treinamento, maior cooperação entre os órgãos de controle e medidas preventivas.
É possível, no entanto, que seja tarde demais para esse movimento, como o artigo sugere. “Depois que a operação for encerrada e não mais dominar as manchetes, será mais difícil para os reformistas aproveitar a combinação de raiva e otimismo que a Lava Jato ajudou a cultivar e que provavelmente é essencial para gerar a pressão política necessária para assegurar reformas significativas”, eles escrevem.
Publicado na Folha de S.Paulo.
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