Está provocando certa controvérsia a sanção do Projeto de Lei 7.448,de 2017, com manifestações intensas e acaloradas de algumas autoridades federais. Foi objeto de debate em uma sessão do TCU (Tribunal de Contas da União) e provocou uma manifestação contrária à sanção da Procuradora-Geral da República, Raquel Dodge.
Toda vez que se fala em ponderar a sanção e equilibrar a ação do fiscal revivem-se os argumentos que evocam impunidade.
Agora, é bom que se dê claridade ao objeto do que se está à sancionar. O PL 7.448, de 2071, é uma alteração na já antiga Lei de Introdução ao Código Civil (Lei 4.657, de 1942) de estável aplicação, pois sempre destinou-se à estabelecer balizas na interpretação das normas.
A lei não regula condutas mediante a aplicação de sanções (positivas ou negativas), mas orienta àqueles que interpretam a lei como fazê-lo. É como se fosse um guia a explicar ao leitor quais são os pontos mais importantes e como é a melhor maneira de ler um livro. Portanto, é um guia, mas não uma clausura.
No caso, o PL 7.448 nada mais faz do que estabelecer algumas premissas que, poderiam ser óbvias, mas não o são. Vamos a elas:
- No art. 20, estabelece que na aplicação de princípios e valores jurídicos deve-se sempre considerar as consequências práticas de uma decisão administrativa. Parece até óbvio que uma decisão que possa anular um ato ou contrato administrativo considera os efeitos disso, mas não é.No caso, é peculiar um caso em que um advogado da tribuna no Tribunal de Contas da União, ao defender o ato de um prefeito que havia comprado e distribuído medicamentos para enfrentar uma epidemia em município vizinho (o que por lei não poderia ter feito), apresentou como linha de defesa a demonstração de quantas crianças tiveram suas vidas salvas por um ato considerado ilegal.O parágrafo único deste artigo nada mais estabelece que a obrigação de quem julga demonstrar na sua motivação de julgamento as alternativas disponíveis a quem praticou o ato, fundamentalmente como instrumento educativo e legitimador de uma decisão.
- O art. 21 cita que o órgão de controle deve indicar as consequências administrativas e jurídicas de uma decisão de invalidação de um ato ou decisão administrativa. Nada mais significa que não é possível ao julgador ignorar as consequências de suas decisões. E mais, indicar igualmente a forma de regularização do ato ou decisão invalidade ponderando com as consequências para a sociedade para a administração pública. E nos seus parágrafos acaba por repetir o óbvio: uma sanção deve ser ponderada com a gravidade do fato e considerando os precedentes de aplicação da mesma sanção. Em outras palavras, aplicar pena não é ato de arbítrio.
- O art. 22 talvez seja um dos mais interessantes. Ao interpretar uma norma de gestão pública, os responsáveis pelo controle devem sempre dar ouvido a sua excelência a realidade dos fatos. Num país de dimensão continental, com mais de 5 mil municípios, a maior parte sem um mínimo de estrutura administrativa, querer impor a ferro e fogo regras de gestão pública sem a ponderação da realidade concreta é paralisar a administração, já que a realidade torna-se insuperável e os instrumentos institucionais de gestão pública deficientes. O artigo considera os efeitos concretos de tais instrumentos e da necessária adaptação ao limites concretos: o que é a ponderação entre o princípio legal e ação que salva vidas, dá educação, promove a saúde, etc?
- O art. 23 sequer é novo. Interpretação nova aplica-se para o futuro, como já expresso na Lei. 9.784, de 1999, art. 2º. O que há de novo na necessidade de adotar-se uma transição que pondere novamente o real e o legal. Grande parte da nossa legislação vem sendo adotada sem esta ponderação e como consequência vivemos litígios inconsequentes e infindáveis. O que a norma estabelece nada mais é o que já acontece no STF quando se promove a famosa modulação das suas decisões de forma a permitir uma transição na vida real entre uma realidade jurídica para outra.
- O art. 24, por sua vez, nada mais faz do que impedir a jurisprudência anacrônica. O que era legal, por uma alteração de entendimento, passa a ser ilegal e, na linha de consequência, tudo acaba por ser anulado. Irretroatividade de entendimentos é um fator indispensável à segurança jurídica. Assim, a norma orienta ao julgador a considerar, na sua decisão, a concepção jurídica existente na época em que o ato ou contrato foi realizado, impedindo decisões anacrônicas, muitas vezes presente na interpretação de um único agente público.
- Os artigos 25, 26 e 27 nada mais fazem do que estabelecer instrumentos jurídicos em favor da uniformização de entendimentos e solução de casos concretos. Assim, é que se institui a ação declaratório de validade de ato, com o objetivo de estabelecer um tratamento uniforme para situações repetidas, como acontece corriqueiramente, no Sistema Único de Saúde. Também o termo de compromisso, tal qual o compromisso de ajustamento de conduta da Lei 7.437, de 1985, com o objetivo de ajustar realidades e transições, sempre considerando que toda a lei passa por um intenso processo de interpretação que muda no tempo e local. É curioso que a garantia do mesmo princípio, da Impessoalidade, orienta nos Estados Unidos e Europa de que a sessões de julgamento dos Tribunais sejam reservadas, sem acesso público e, no Brasil, seja televisionadas para todo o país.
- O art. 28 vem estabelecer a responsabilidade do administrador por dolo ou erro grosseiro. Nada mais correto. A culpa simples não deve ser parametrizada para fins de julgamento pelo simples fato de que é extremamente subjetiva. É este princípio que protege os Juízes, inclusive os magistrados dos Tribunais de Contas e por um simples motivo: apurar a culpa simples (imperícia, negligência e imprudência) ocorre com uma apreensão subjetiva de que julga. É diferente do erro grosseiro, já que estes julgamentos são acompanhados por indícios objetivos fortes e consistentes (ignorar uma Súmula Vinculante do STF, por exemplo). Mas, por ser subjetiva, a culpa simples também confunde-se com a natural divergência de opiniões em relação à aplicação da lei. Por isto, quando um Juiz julga uma causa e tem sua decisão reformada por incorrer em imperícia, negligência ou imprudência no seu julgamento, não é punido por isto. Aliás, ele sequer é punido por erro grosseiro, apenas por dolo ou fraude (ou seja, ele só pode ser punido quando o erro é acompanhado de intenção). O artigo, assim, nada mais faz que proteger as decisões legítimas de uma administrador que, como todo ser humano, pode errar, mas é um erro escusável para que a administração não fique paralisada pela necessidade imposta pelo controle de que na administração pública só se admite o acerto e a precisão.
- O art. 29, por sua vez, estabelece como regra geral o que já é específico em diversos ramos da administração pública: a possibilidade de consultar a sociedade antes da prática do ato administrativo. Também o artigo 30 favorece a adoção de súmulas e orientações gerais que potencializem a segurança jurídica e traduzam orientações clara e precisas para todos que as tem que cumprir.
Tomado o conjunto da obra, a proposta é extremamente benéfica a toda a sociedade brasileira. Ela não impede o combate à corrupção, já que o crime continuará a ser combatido pelos instrumentos que o Brasil já incorporou no seu dia a dia. Apenas não podemos cair no clamor que se propaga e intensifica, principalmente nas mídias sociais, de que ponderação é palavrão e condenação é solução.
E principalmente, não pode o Brasil conviver mais com a invisível paralisia do Estado brasileiro, cujos resultados aparecem na saúde, previdência, segurança, investimentos, etc. Paralisia que, nas felizes palavras do Ministro Bruno Dantas, acabam por produzir o subproduto do controle que é a infantilização da administração pública.
Texto publicado originalmente no Poder 360.
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