Por Igor Mauler Santiago e Fábio Tofic Simantob
A divisão de competências é uma das mais importantes regras de um Estado Democrático de Direito. Previne a concentração de poder, o arbítrio, e garante a impessoalidade do exercício da função pública, evitando ou pelo menos diminuindo o espaço para perseguições pessoais praticadas sob patrocínio estatal.
É por isso que existem limites à atuação dos agentes públicos, principalmente daqueles investidos do poder de polícia. Este só pode agir onde a lei manda, e não quando lhe convém. Quanto mais ampla a atribuição de uma função pública, maior a chance de arbitrariedades. Quem semeia arbítrio corre grande risco de colher corrupção.
Os Estados absolutistas não precisavam de leis delimitando o poder do soberano, e nem as admitiam. O Rei tudo podia. O direito serve para limitar o poder do soberano, que passa a se guiar pela lei, apenas e tão-somente pela lei, e não mais pela vontade ou pelo capricho.
Este é o espírito do artigo 64-A que o senador Fernando Bezerra Coelho inseriu na Medida Provisória 870/2019: esclarecer, em caráter meramente interpretativo (mas muito necessário diante dos excessos que vêm sendo cometidos), os limites da competência da Receita Federal do Brasil em matéria criminal.
Trata-se de introduzir um parágrafo 4º ao artigo 6º da Lei 10.593/2002, dispondo que “a competência do Auditor-Fiscal da Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil limita-se, em matéria criminal, à investigação dos crimes contra a ordem tributária ou relacionados ao controle aduaneiro” (inciso I) e que “os indícios de crimes diversos dos referidos no inciso anterior, com os quais o Auditor-Fiscal da Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil se depare no exercício de suas funções, não podem ser compartilhados, sem ordem judicial, com órgãos ou autoridades a quem é vedado o acesso direto às informações bancárias e fiscais do sujeito passivo” (inciso II).
A medida provisória expira em 3 de junho próximo e, além de dúvidas razoáveis que este artigo se propõe a esclarecer, a regra proposta pelo Senador tem gerado reações extremadas, umas decorrentes do puro desconhecimento do seu conteúdo, outras oriundas de setores que recorrem a práticas heterodoxas para ganhar a opinião pública e, com isso, legitimar pautas corporativas, quando não puramente pessoais: como bônus pagos com a arrecadação de multas tributárias, a livre disposição de fundos bilionários constituídos com dinheiro público, o contrabando de promoção pessoal em medidas reparadoras, a manipulação de dados para constranger autoridades não alinhadas, a pavimentação de carreiras políticas ou judiciárias…
As aventuras criminais da Receita Federal são testemunhadas dia a dia por quem atua nas áreas tributária e criminal. E foram há pouco escancaradas pelo vazamento da Nota 48/2018 RFB/Copes, de caráter sigiloso, a qual (i) confessa que o objetivo da RFB é apurar a atuação de agente público “como partícipe de uma eventual ação irregular” (itens 06 e 17), (ii) sugere “maior atenção da fiscalização na fonte de recursos do que no contribuinte” (item 26) e (iii) admite que nem todas as fiscalização abertas em seu cumprimento “levarão, necessariamente, à constatação de fraudes nos termos da legislação” ali tratada (lavagem de dinheiro), podendo haver casos onde se constate mera “irregularidade tributária” (item 35).
É certo que, no julgamento do RE 593.727/MG (Pleno, relator ministro Gilmar Mendes, DJe 4/9/2015), o STF estendeu a competência investigatória das polícias judiciárias ao Ministério Público, às CPIs, às corregedorias judiciais e a órgãos executivos como a CGU, o COAF e os Fiscos dos três níveis da Federação. Porém, como adverte a Corte, a competência dos outros órgãos, diversos da polícia e do Parquet, limita-se a que “promovam, por direito próprio, em suas respectivas áreas de atribuição, atos de investigação destinados a viabilizar a apuração e a colheita de provas concernentes a determinado fato que atinja valores jurídicos postos sob a imediata tutela de referidos organismos públicos” (2ª Turma, HC 89.837/DF, Relator Ministro Celso de Mello, DJe 19.11.2009).
Daí terem os Fiscos competência para investigar exclusivamente os crimes tributários — acrescidos, quanto à Receita Federal, dos aduaneiros —, por serem estas as áreas da administração postas sob a sua responsabilidade: “é da atribuição dos agentes da Receita Estadual” — e, pois, também das autoridades tributárias dos demais entes federados — “colaborar com a Polícia Judiciária na elucidação de ilícitos tributários, o que os autoriza a acompanhar as diligências de busca e apreensão” (1ª Turma, AP 611/MG, relator ministro Luiz Fux, DJe 10/12/2014).
E mais: mesmo nos crimes tributários, a competência da Receita limita-se a uma proposta de tipificação, a partir dos fatos geradores apurados e descritos na Representação Fiscal para Fins Penais. Proposta que, é claro, não vincula a polícia e muito menos o Ministério Público, titular exclusivo da ação penal. Tampouco lhe cabe adentrar temas como a análise dos antecedentes e da personalidade do agente, a distinção entre concurso material e continuidade delitiva, a prescrição da pretensão punitiva, entre tantos outros de índole estritamente criminal.
E nem poderia ser diferente. Há afinal um plexo de direitos e garantias em favor do investigado, que ficam completamente anulados numa apuração realizada no âmbito fiscal. Direitos como o de não ter devassada a intimidade bancária e fiscal sem decisão fundamentada de autoridade judiciária, direito ao silêncio e o de não produzir prova contra si mesmo, entre outros. Veja-se que o direito à não autoincriminação, garantia comezinha que socorre qualquer pessoa alvo de uma investigação criminal, é praticamente inexistente perante o Fisco, já que, dependendo da situação, é até mesmo capitulado como crime (artigo 1º, inciso V, da Lei 8.137/90 — de duvidosíssima constitucionalidade).
A investigação criminal está prevista no Código de Processo Penal e submetida a rigoroso controle judicial, com a obrigação, por exemplo, de que o inquérito seja enviado a cada 30 dias para avaliação do Ministério Público e do juiz. E no caso da Receita, quem controla a atividade investigativa? Os próprios agentes fiscais? Esta é a receita certa — com o perdão do trocadilho — para florescer o arbítrio e campear a corrupção.
O cobertor é curto. Ou bem a Receita é órgão de apuração de tributos, função repleta de poderes que outros órgãos não têm (quebrar sigilo bancário e fiscal sem autorização judicial, por exemplo), ou bem se torna mais um órgão de investigação criminal, passando a obedecer aos limites e rituais próprios dessa função — o que traria notório prejuízo à sua finalidade arrecadatória. No longo prazo, isso seria a morte dos Fiscos!
O que não se pode admitir é que, travestida de órgão arrecadatório, queira agir como polícia, método sub-reptício e rasteiro de se furtar à observância do figurino legal e constitucional que cerca a atuação dos órgãos incumbidos da investigação criminal em qualquer Estado Democrático de Direito. A propósito, é por isso que, além de não investigar pessoalmente os crimes não tributários ou aduaneiros cujos indícios suponha ter identificado nas informações bancárias e fiscais do contribuinte, o auditor não pode compartilhar dados e informações às quais teve acesso durante a fiscalização.
Sim, pois tal compartilhamento — assim como a investigação direta seguida da transmissão das respectivas conclusões aos órgãos de persecução penal — redundaria na entrega de informações sigilosas a autoridades que só as poderiam acessar mediante ordem judicial (CF, artigo 5º, incisos X e XI; CTN, artigo 198; artigo 6º, parágrafo único, da Lei Complementar 106/2001; Código Penal, artigo 325).
E nem se pretenda que tal compartilhamento estaria respaldado no artigo 116, inciso VI, da Lei 8.112/90, norma de controle interno da administração pública que impõe ao servidor federal o dever de “levar as irregularidades de que tiver ciência em razão do cargo ao conhecimento da autoridade superior ou, quando houver suspeita de envolvimento desta, ao conhecimento de outra autoridade competente para apuração”. A menos que os auditores da Receita Federal admitam que o Delegado da Polícia Federal o Procurador da República são seus superiores hierárquicos — assunção que, considerada a instrumentalização da categoria no âmbito das chamadas forças-tarefas, não estaria muito longe da realidade.
Tudo o que se disse acima diz respeito à investigação ou à comunicação de indícios que precisem ser aprofundados e que decorram de informações sigilosas. Crimes constatáveis de plano em quaisquer outras fontes podem e devem ser comunicados pelos auditores às autoridades competentes, na forma do artigo 27 do Código de Processo Penal. Não procedem, assim, as teses sensacionalistas de que, aprovada a emenda parlamentar, o fiscal tributário teria de ficar calado quando encontrasse drogas, armas de uso restrito ou pessoas reduzidas à escravidão no estabelecimento visitado.
À falta de melhores argumentos, diz-se que a emenda é um jabuti. Propomos um exercício simples: com o recurso “Localizar” do computador, verificar quantas vezes os termos “competência” e “compete” aparecem na MP 870/2019, ligados aos mais diversos órgãos do Poder Executivo. Acerta quem disser mais de setenta. Por que só a Receita estaria fora do seu alcance?
Ao cabo, o jabuti é só mais um disfarce para a jabuticaba que são os fiscais-tiras!
A quem se interessar pelo tema, sugerimos ainda a leitura do excelente artigo de Lenio Streck publicado neste domingo.
Texto publicado originalmente no Consultor Jurídico.
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