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Quem são as mulheres do sci-fi?

Ser apaixonada por ficção científica é poder construir quarenta e dois mundos dentro da própria cabeça, e sentir fielmente que você pode – e vai – explorar todos eles em vida. Isso porque nessa ficção cerebral, você pode ter uma máquina azul, na forma de cabine telefônica, que manipula o tempo e espaço. Pode ter um colarzinho na forma de vira-tempo que te permite ler todos os artigos acadêmicos que já sonhou em ler, maratonar sua série preferida e ainda se jogar na loucura do Carnaval, tudo isso acumulando boas horas de sono que te deixa tranquila para enfrentar o dia seguinte.

Acho que desde menina gostei tanto de ficção científica porque sempre me pareceu um mundo de imaginação infinita – o verdadeiro paraíso das filhas únicas.

Praticamente toda garotinha da minha geração, crescida e criada na década de 90, tem um apreço especial pela Hermione. Uma das protagonistas de Harry Potter, ela é a personagem que pode tudo, e faz tudo, por saber trabalhar a cabeça e a própria inteligência. Esse era o tipo de personagem que sempre quis ser, mas cuja presença nos livros de ficção científica – principalmente nos clássicos – é escassa.

Afinal, onde estão as mulheres da ficção científica?

Recentemente, acabei de ler a trilogia Fundação – clássico sci-fi escrito por Isaac Asimov que conta a história da ascensão e declínio do Império Humano. Com a ajuda de cientistas psicossociais, capazes de prever comportamento humano em manada via observação psicológica e estatística, Hari Seldom, o maior psicocientista de todos elabora um plano que pretende encurtar o declínio do Império Galático, e garantir que o Segundo Império seja formado com o mínimo de destruição possível.

A trilogia percorre um espaço de tempo de 400 anos, no qual acompanho as façanhas políticas de generais, religiosos, comerciantes, ditadores, enfim… Todo tipo de figura masculina clássica em grandes epopéias humanas. 

Consigo me lembrar de duas personagens femininas em toda trilogia – Bayta e Arcadya. A segunda é neta da primeira. Ambas são extremamente inteligentes, mas a todo tempo são descritas como mulheres capazes de prejudicar um homem poderoso. Como se a inteligência das mesmas fosse uma pedra no caminho para um homem que não contava com tamanha astúcia feminina.

Na minha opinião, as interações com as personagens femininas são as mais interessantes de toda a trama, e gosto da construção que Asimov fez de ambas, mas há essa constante latente de que o “ser mulher” está sempre na iminência de arruinar alguma coisa. Fundação ainda tem o mérito de construir bem suas (duas) mulheres, mas acho que não posso dizer o mesmo sobre outros livros do gênero.

1984, Nós, Androides sonham com ovelhas elétricas?, todos são títulos clássicos nos quais vemos o personagem feminino como um estepe para a construção de um personagem masculino que vive atordoado dentro de uma distopia. Sedutoras e inteligentes, essas mulheres não parecem ter uma personalidade própria, e seus motivos não são tão claros aos leitores – estão, no final das contas, sendo vistas pela ótica de um homem que as observa.

É engraçado que esse tipo de retrato feminino, da mulher que trás o pecado, que desvia o homem da virtude “desejada”, tem uma conotação religiosa inegável. Em todos os casos, o tal homem desviado acaba agradecendo por ser levado à contemplação de uma realidade maior pela mulher que o seduziu.

Minha dúvida é: quem são essas mulheres?

O que se passou na cabeça delas para que elas chegassem em estado de tamanho brilhantismo individual, de revolta inata contra o poder? O mundo da ficção científica me parece balançar entre a mulher selvagem e destrutiva, e a mulher inútil e dependente, arquétipos redutores de todo o potencial complexo que uma personagem feminina pode ter. Mulheres que se vestem entre os extremos de pecado e pureza, mas que não existem na zona cinzenta que se forma entre esses polos.

Essa borracha que apaga a construção da personalidade feminina como personagens de ficção científica reflete e faz a realidade na qual está inserida. O mundo da tecnologia é uma área dominada por homens, assim feita pelo mito coletivo enganoso de que mulheres não teriam “jeito” para tecnologia.

O próprio desenvolvimento do gênero sci-fi, que se deu no fim do Século XIX, contou com um boicote ativo à mulheres escritoras, feito por editores como  John W. Campbell e Groff Conklin, que repudiavam os movimentos da primeira onda feminista.

O apagamento de mulheres como protagonistas das histórias da ciência não é apenas ficcional – hoje, computadores e celulares dominam nossa vida contemporânea, mas pouco se fala das mulheres do ENIAC, responsáveis por construir o primeiro programa de computador já existente. Enquanto os homens celebravam o funcionamento do ENIAC em jantares caríssimos para anunciar a nova invenção, as seis mulheres responsáveis pela sua programação simplesmente não foram convidadas.

Uma coisa que definitivamente me atravessa como mulher é perceber como contamos os mitos que nos definem, as histórias que nos inserem no mundo. Aos poucos, estamos contando e recontando a história da ciência e da tecnologia – uma história que revê suas páginas de protagonistas apagadas devido à manutenção de um status quo dominante.

Por enquanto, pesquiso as palavras “sci-fi writer” no Google, e tudo que consigo é uma lista de rostos e nomes que pouco parecem comigo:

Apesar disso, já vejo Margaret Atwood com seu Conto da Aia ser transformada em série distópica e aterrorizar o coração de milhares de pessoas. Vejo Kindred, de Octavia Butler, vendido em uma livraria local, narrando o psicológico retorcido de uma mulher negra, dos anos 80, que se teletransporta sem maiores explicações para um Estados Unidos escravocrata.

Ainda falta muito para conseguirmos recontar todas as histórias que envolvam mulheres e ciência, e estamos em um caminho de novas construções. Não quero ser anacrônica criticando livros escritos em contextos diferentes do meu, mas com a opção de escolha daquilo que consumo no meu presente imediato, quero que a história das minhas ficções (sejam utopias, distopias, ou universos paralelos), sejam construídas por personagens femininos tão complexos quanto a realidade.

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