Todos somos contra a corrupção. Um novo julgamento da lei de improbidade começou em 15 de maio de 2024 no Supremo Tribunal Federal. Teremos então mais um turno jurídico ou cripto-legislativo de debates acalorados. Ao que tudo indica, o Pleno do STF pretende reavaliar, pelo mérito supra judicial, os aprimoramentos dos institutos normativos propostos pelo Congresso na valetudinária Lei 8.429/92. O sistema brasileiro de controle da corrupção foi sendo robustecido ao longo dos últimos 30 anos.
Todos somos a favor do combate da corrupção. E ninguém — que estude direito seriamente — deseja ver inocentes no banco dos réus. Pior ainda quando uma ação de improbidade não tenha mínimos indícios de procedibilidade. As alterações da lei vieram para diminuir o custo judiciário havido por abusos práticos diante do sistema original. Se todos — ou quase todos — são processados indiscriminadamente, as sentenças à profusão acabam sendo inexequíveis. Como diria Machado de Assis em O Alienista, se todos estão no hospício o conceito de louco desaba.
O legislador, com a Lei 14.230/21, quis simplesmente tentar encerrar abusos havidos na aplicação da lei de 1992 ao longo das décadas. O elastecimento teórico das hipóteses de cabimento de improbidade levou à utilização seletiva de seus mecanismos, fazendo com que quase todos os agentes ocupantes de cargos eletivos tenham tido acusações de improbidade. Um exército de doutores-Simão-Bacamarte trancafiaram a classe política brasileira dentro de um judiciário Casa Verde, pedindo nova vênia para Machado de Assis.
A sociedade brasileira reagiu através do Congresso. O interesse público e a natureza jurídica dos institutos do direito não devem estar nas mãos dos alienistas. Direito é aquilo que a sociedade diz que é direito, diretamente ou por meio de seus representantes. Claro que os tribunais podem operar a jurisprudência vinculante e circunscrever o direito constitucional objetivo, suprimindo ou interpretando de modo conforme as normas legais. Isto não significa que possa o intérprete relegislar ou agir como se houvesse um terceiro turno legislativo após a sanção presidencial.
O novo sistema de proteção contra a corrupção deixou claro que deve responder quem comprovadamente desviou algo. Não há mais espaço para processos apoiados em dano presumido (dano “in re ipsa”), nos quais o Ministério Público nem tenta provar nada e o Juiz julga em tese uma corrupção inexistente. Ações antigas imputavam responsabilidade culposa (fundadas em mera discrepância com a opinião pessoal do promotor) e se processavam administradores sem o esforço de demonstrar qualquer prejuízo (partia-se simplesmente daquilo o promotor considerava que deveria ter sido feito).
São inúmeros os prefeitos condenados a devolver somas astronômicas em relações jurídicas implementadas com efeitos positivos perante a administração (atuaram em compasso com a boa administração, o que não estaria perfeito apenas na visão do promotor local). Ações de improbidade com valores de causa que ultrapassam de longe as cifras constantes dos processos administrativos (valor ficcionalmente aumentado para antecipar a pena e prejudicar os réus desde o início), pedindo responsabilidade por atos que muitas vezes nem foram para a decisão direta destes prefeitos (e nem menos ainda foram avaliados pela assessoria jurídica da administração nos aspectos econômicos).
Intenção dolosa
Pela Lei 14.230/21, exige-se agora que haja comprovação da intenção dolosa do agente que causou dano efetivo para os cofres públicos, pois está clara a natureza jurídica criminaliforme da improbidade. Não adianta, portanto, o intérprete dizer que na década de 50 um famoso professor disse que existiam apenas duas naturezas jurídicas: civil e penal. E não adianta, pois a natureza jurídica decorre da Lei e não da vontade individual do intérprete, agarrado nos livros que leu algumas décadas atrás.
Todos lemos os clássicos do direito, e aplicá-los hoje de modo dinâmico envolve reler seus escritos à luz das alterações constitucionais e legislativas que se sucederam. A norma remodelada tem natureza penal direta ou como terceiro gênero (se se preferir), pois o legislador assim disciplinou esta nova natureza jurídica. Depois da alteração de 2021, jamais se poderá dizer, cientificamente, que se trata de norma meramente civil.
É claro que o Supremo pode e deve declarar inconstitucionais normas que materialmente esbarrem na Constituição (ou promover a sua interpretação conforme). O que parece impossível é enxergar valores e princípios “decorrentes” do texto do §4º do artigo 37 da CF para suplantar a vontade do legislador. Diz o dispositivo constitucional:
“Os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível.”
Ou seja, cabe à lei regular a matéria e dizer todo o mais em termos de aplicação destas penalidades, pois a CF dá apenas o traçado básico. Cada um de nós pode ter a sua avaliação sobre querermos penas mais pesadas para os agentes ímprobos a partir desta mesma Constituição, mas o que vale é o que o legislador veio a definir.
Se existe perda da função pública, por exemplo, esta será a da função que a Lei diz que será. E não aquilo que o juiz constitucional pretende que seja. Eu posso individualmente até querer a morte civil do agente público, com o cancelamento do seu CPF, mas o que vale são as penas que a lei definiu, gravou, marcou, detraiu, reabilitou etc. A natureza jurídica daquilo que se ganha ou perde em juízo decorre da lei, e não de uma natureza em tese (como se a natureza jurídica decorresse das coisas, ou da leitura que o intérprete faz destas coisas do mundo dos fatos).
O direito constrói suas realidades a partir do texto normativo, e não de histórias ou preconceitos individuais. Pretender julgar com base em convicções pessoais sobre o que é e o que não é um dado instituto, deixando de lado o sistema normativo, pode configurar um autoritarismo contra a obra do legislador. Aquilo que a norma não distinguiu não podemos nós distinguirmos (“ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus”).
Um exemplo para deixar claro. Diz o artigo 12, §1º, da Lei em debate:
“A sanção de perda da função pública, nas hipóteses dos incisos I e II do caput deste artigo, atinge apenas o vínculo de mesma qualidade e natureza que o agente público ou político detinha com o poder público na época do cometimento da infração, podendo o magistrado, na hipótese do inciso I do caput deste artigo, e em caráter excepcional, estendê-la aos demais vínculos, consideradas as circunstâncias do caso e a gravidade da infração”.
E ainda o §10 do mesmo artigo 12:
“Para efeitos de contagem do prazo da sanção de suspensão dos direitos políticos, computar-se-á retroativamente o intervalo de tempo entre a decisão colegiada e o trânsito em julgado da sentença condenatória.”
O que a Lei faz aí é criar um novo sistema de aplicação e de detração de penas. A métrica de tais institutos não tem previsão constitucional explícita nem um fundamento direto na Lei Maior. Tanto é assim que o legislador ampliou prazos de aplicação de penalidades máximas e ninguém poderá dizer que exagerou. Existem prazos e possibilidades de combinação de penalidades diferentes definidas em lei. O legislador pode ampliar ou diminuir dentro de sua discricionariedade política.
Os parágrafos 1º e 10 do artigo 12 dizem agora que a interdição ou perda da atividade pública precisa ser (a) de mesma natureza e que (b) os prazos de castração iniciam quando esta penalidade máxima tiver início (e não depois de um trânsito em julgado, que pode demorar muito gerando efeitos de duplicação da penalidade). As penas acessórias poderiam ter sido extintas ou diminuídas (ou até aumentadas) em qualquer caso pela nova lei, mas restaram apenas absorvidas.
O que a norma está dizendo agora é que uma vez iniciado o bloqueio da restrição à cidadania, este prazo precisa ser contado, sob pena de se eternizar restrição à capacidade eleitoral dos agentes (ou ter o efeito prático de castração do direito de recorrer).
Por acaso poderia o intérprete definir ele o que entende por natureza jurídica externa à norma para dizer “eu não concordo com este novo critério e o declaro inconstitucional com base no §4º do artigo 37”? O critério escolhido e votado pelo legislador não pode ser declarado inconstitucional apenas porque a visão do intérprete sobre natureza de institutos é diversa da natureza jurídica dada pela lei. Se assim for, estaremos relegislando e não julgando a nova norma.
Em síntese: prazos precisam contar, penas aplicadas precisam valer para todos os efeitos e somente haverá efeitos para além das relações jurídicas subsequentes ao cargo no qual foi praticado a improbidade (se o magistrado fizer tal conexão de modo fundamentado). Nada há de inconstitucional nos critérios adotados pelo legislador, ainda que possa o tema ser objeto de interpretação conforme para facilitar a aplicação da lei a casos futuros.
Mais um exemplo
Vejamos o §8º do artigo 1º da nova norma:
“Não configura improbidade a ação ou omissão decorrente de divergência interpretativa da lei, baseada em jurisprudência, ainda que não pacificada, mesmo que não venha a ser posteriormente prevalecente nas decisões dos órgãos de controle ou dos tribunais do Poder Judiciário.”
Como poderia o intérprete julgar inconstitucional o novo texto com base no §4º do artigo 37, fazendo conjecturas sobre hipóteses de mau uso futuro da nova lei? O mau uso será coarctado pelos tribunais, por evidente. Claro que o Supremo Tribunal Federal poderia fazer a interpretação conforme e dizer:
“Ações de improbidade ajuizadas exclusivamente com base em divergência interpretativa não terão cabimento quando não estejam documentalmente presentes indícios mínimos de prova sobre a existência de dolo específico no caso concreto.”
Uma tal decisão do STF aclararia e conciliaria o §8º do artigo 1º com os demais parágrafos do mesmo artigo e do resto da lei. Já aniquilar integralmente o dispositivo por inconstitucionalidade destruiria, sem fundamento constitucional, o texto votado e ainda geraria o risco de interpretação “a contrario sensu” (no sentido de que poderia caber ação de improbidade apoiada apenas em mera divergência interpretativa).
Em conclusão
O texto do §4º do artigo 37 da Constituição não pode ser um mantra para sobrescrever a lei votada. Apenas quando houver incompatibilidade material direta com o texto da Constituição teremos inconstitucionalidade. Fora disso não há.
A harmonia entre os Poderes da República passa, necessariamente, pelo respeito às competências que a Constituição atribui a cada um deles. O respeito à independência dos Poderes precisa ser efetivado na linha dos discursos e decisões proferidas pelo STF. A autocontenção judicante, longe de parecer inércia, demonstra, na verdade, atuação consentânea com a Constituição.
O combate à corrupção e o aprimoramento do sistema de defesa da probidade passa pelo respeito às leis discutidas, votadas e promulgadas pelos Poderes competentes. Os precedentes do STF devem ser compatibilizados em termos de limites de controle de constitucionalidade, para que em um dado caso não se avance sobre o texto legal. Respeitar a tripartição de funções é imperioso, para que não se implante um tricameralismo no Brasil.
Clique aqui para ler o memorial da OAB Nacional
Artigo publicado originalmente no Consultor Jurídico.
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