É preciso que façamos uma vigília histórica acerca do sentido dos fatos e das palavras
No conto “O Segredo do Bonzo”, Machado de Assis fala de ficções. Os cidadãos da fictícia Fuchéu sofriam de uma espécie de doença que tornava o nariz das pessoas inchado e horrendo. Para se livrar da moléstia, bastava que se amputassem os narizes. O médico Diogo propôs a solução: os narizes amputados deveriam ser substituídos por “narizes metafísicos”. A história termina, enfim, com o dr. Diogo requisitadíssimo para muitas operações para o implante de narizes metafísicos pela população local. Pouco importava se os narizes não existissem na realidade, desde que uma ideia respaldada em uma conjectura complexa afirmasse sua existência.
Assim estamos: a tentativa de golpe no 8 de janeiro tomou a forma de um nariz que foi amputado. E no lugar dele estão colocando um nariz metafísico, chamando-o de baderna e insurgência civil. Muitos narizes também estão em construção, como a concessão de anistia, defendida até mesmo pelo presidente da Câmara dos Deputados, Hugo Motta (Republicanos-PB). Isso sem contar as críticas acerca do tamanho dos narizes, quer dizer, do tamanho das penas aplicadas aos golpistas. Há experts de ocasião, como o próprio ministro da Defesa, José Mucio Monteiro, dizendo terem sido excessivas. Se algumas o foram, há caminhos processuais para as devidas e eventuais correções.
Até mesmo a tese de que os golpistas praticaram apenas uma conduta e estão respondendo por dois crimes vem sendo ventilada, com o que a própria lei seria inconstitucional porque, por mais estranho que pareça, teria incriminado a mesma conduta duas vezes. Nesses casos, a um duplo nariz metafísico.
Qual é o problema? Simples. O problema é que não se pode brigar com a história, chamando as coisas por outro nome. Já basta o negacionismo com as vacinas, praticado pelos mesmos que negam a democracia.
Veja-se: o golpe de 1964 já foi chamado de revolução. O golpismo cotidiano de Jair Bolsonaro era chamado de “atuação dentro das quatro linhas”. O artigo 142 da Constituição Federal foi chamado de “poder moderador” dos militares, defendido até por gente do direito. O acampamento de milhares de pessoas às portas dos quarteis clamando o golpe foi chamado pelos comandantes militares, em nota de 11 de novembro de 2022, de “atos respaldados na lei”, o que vitaminou o 8 de janeiro.
Já a anistia para golpistas, que é um oximoro antidemocrático —em nome da democracia, quer-se extingui-la—, agora é chamada de “ato para pacificação” de uma guerra que quase ocorreu. Até a antes adorada Lei da Ficha Limpa agora é “uma lei que serve só para perseguir”.
Eis a perigosa novilíngua. Estão trocando o nome das coisas. Pior: está se normalizando. Atentemo-nos. Chamemos as coisas pelo seu nome. Um nariz decepado não pode ser reposto metafisicamente, como queria o dr. Diogo.
É preciso que façamos uma vigília histórica acerca do sentido dos fatos e das palavras. Embora vivamos em tempos de narrativas, golpe continua sendo golpe e democracia continua sendo o que ela significa para qualquer pessoa com senso crítico.
É preciso dar um salto para fora do passado, atravessar o presente e saltar para dentro do futuro. Para podermos dizer algo como no filme argentino “1985”: “Nunca mais”. Para isso, os responsáveis pela tentativa de golpe —é este o nome da coisa— devem ser processados, julgados e punidos com rigor. Só assim atravessaremos esse período obscuro da história do país, em que em plena democracia surge uma tentativa de volta à ditadura.
O que não podemos é cair na armadilha da normalização da troca do significado das coisas. Não vivemos em Macondo, em que as coisas ainda não tinham nome e ainda se apontava com dedo. Hoje já sabemos o sentido das palavras “golpe”, “anistia” e “democracia”.
Nesse sentido, a denúncia apresentada pelo procurador-geral da República, Paulo Gonet, ao Supremo Tribunal Federal nesta terça-feira (18) contra Bolsonaro e os demais golpistas, dá o nome certo para as coisas. A punição também soma pontos na busca pela paz e pela democracia. No mínimo, serve como alerta para o futuro.
Nunca mais!
Artigo publicado originalmente na Folha de S.Paulo.
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