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100 anos da Semana de Arte Moderna de 1922: Um novo olhar sobre o movimento

100 anos da Semana de Arte Moderna de 1922: Um novo olhar sobre o movimento

Por Severino Francisco

Em entrevista para a série sobre os 100 anos da Semana de Arte Moderna de 1922, o professor Ítalo Moriconi afirma que o movimento permanece inspirador, mas a pós-modernidade coloca desafios não enfrentados

O professor, poeta e crítico literário Ítalo Moriconi transita por múltiplos circuitos da cultura. Além de participar intensamente dos debates acadêmicos de revisão do modernismo brasileiro, ele acompanhou de perto a emergência da Tropicália e da Poesia Marginal, os dois últimos ciclos diretamente marcados pela influência do movimento de inovação cultural deflagrado pelos paulistas em 1922. Foi aluno de Silviano Santiago e colega de Ana Cristina César, na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Organizou as antologias Os 100 melhores contos brasileiros e Os 100 melhores poemas brasileirosTorquato Neto Essencial e As cartas de Caio Fernando Abreu. Ítalo nasceu no Rio, mas cresceu em Brasília, onde se formou em ciências sociais pela UnB. E, nesta entrevista, que dá sequência à série sobre a passagem dos 100 anos da Semana de Arte Moderna, Ítalo discute o impacto do movimento na literatura, a riqueza e os limites da poesia pau Brasil proposta por Oswald de Andrade, a relevância para uma releitura do Brasil e os novos desafios da atualidade não colocados pelos modernistas.

Com a distância de 100 anos, como vê a contribuição e o impacto do modernismo para a criação de uma literatura brasileira moderna? O que, de fato, o modernismo criou?

O modernismo criou o conceito e a prática do moderno no Brasil. A maneira como o Brasil cultural e artístico se vê a si próprio, ao longo de todo o século passado, desde a Semana de 1922, foi moldada pelo modernismo. O modernismo reviu a história brasileira e resgatou nossa herança colonial e escravocrata. Do ponto de vista da linguagem literária, o modernismo coloquializou, estabeleceu e homogeneizou o padrão linguístico nacional. Foi na língua brasileira consolidada pelo modernismo que foram escritas as maiores, mais canônicas obras literárias do século, na poesia e na prosa. De movimento iconoclástico e inovador dos anos 1920, sob a égide da Semana, o modernismo se tornou a cultura oficial do Brasil desde a gestão Capanema na Educação (que tinha a assessoria direta do poeta Drummond) no governo Getúlio. Vale enfatizar que a modernidade na versão do modernismo brasileiro é uma modernidade profundamente nacional.

Em que momento as propostas do modernismo produziram alta literatura? Você acha que a poesia inicial de Oswald de Andrade era alta literatura?

Eu não acho que a poesia pau-brasil seja alta literatura nem que Oswald pretendia que fosse, a não ser ironicamente. Mas certamente a proposta era uma intervenção singular, criativa, extremamente inteligente e original visando dois edifícios canônicos, o literário e o histórico. O valor relativo da poesia pau brasil deve ser estabelecido numa comparação com Alguma poesia, de Drummond e os primeiros poemas, de Murilo Mendes, assim como outros que publicaram nos anos 1920 e depois sumiram. Todos os grandes autores brasileiros do século 20, prosadores e poetas e dramaturgos como Nelson Rodrigues, todos, sem exceção, são tributários dos valores e da língua brasileira culta consolidada pelo modernismo. O ponto fora da curva é Guimarães Rosa, cuja modernidade estética insere-se num conceito de modernismo mais abrangente do que aquele que constitui a pedagogia do modernismo no sentido brasileiro estrito.

Como você analisa a evolução da poesia de Carlos Drummond de Andrade em relação ao movimento de 1922?

A obra completa de Carlos Drummond exemplifica todas as fases do modernismo, desde o tempo iconoclástico de Alguma poesia, passando pela alta poesia de Rosa do povo, pelo neotradicionalismo cético de Claro enigma e voltando ao poema curto, poema-crônica-memória dos Boitempos, entre outras vertentes da poesia dele. A poesia de Drummond é a suma poética do século 20.

Qual a relevância do modernismo para uma releitura do Brasil?

As grandes obras de interpretação brasileira dos anos 1930, de Sérgio Buarque de Holanda e Gilberto Freyre, são produtos diretos do modernismo, nas versões paulista e pernambucana. Tudo que se segue em matéria de estudos históricos, sociologia, antropologia e ciências humanas em geral, dos anos 1940 aos 1970, é intelectualmente tributário do modernismo. O modernismo de 1922 se tornou não só a cultura oficial do Brasil, como também a cultura acadêmica sobre o Brasil hegemônica na universidade brasileira. Aliás, a própria fundação da USP nos anos 1930 é consequência em parte do modernismo.

Estão sendo lançados livros e têm sido promovidos debates com críticas aos modernistas como integrantes de uma elite da indústria cafeeira que ignorou a violência da escravidão e produziu uma imagem caricata do índio. Em que medida, você concorda com essas críticas ou considera essas leituras demasiadamente sociológicas ou antropológicas?

Eu precisaria conhecer melhor essa bibliografia recente. Sobre a origem social dos intelectuais e escritores modernistas, a grande referência é a crítica de Sergio Miceli. Dizer que eles (ou vários deles) pertenciam à classe dominante é uma obviedade. Como argumentou Alfredo Bosi, um tema central na prosa modernista brasileira (particularmente a regionalista) é a decadência dessa classe de proprietários e o destino urbano de seus descendentes. A própria poesia de Drummond expressa a tensão permanente com a herança patriarcal proprietária. Não sei o que se pretende dizer com a “denúncia” de que o índio modernista é caricatural. Estão falando de quê? De Macunaíma? De Cobra Norato, do Raul Bopp? Da antropofagia oswaldiana e depois tropicalista? Eu poderia até concordar com esse termo, desde que não pejorativo, mas preferiria dizer visão estética ou estetizante, já que ela não provinha de uma relação direta com os índios e, sim, de leituras da mais avançada etnografia da época. Mário e Oswald de Andrade praticamente inauguraram a percepção da antropologia como central à possibilidade de compreensão da brasilidade. Eles inocularam na cultura brasileira a antropologia, a psicanálise e a história colonial.

A produção literária atual ainda se alimenta do modernismo ou as referências são outras? O modernismo é bananeira que já deu cacho? O que está ocorrendo de importante e que não foi pensado ou praticado pelo modernismo?

A melhor colocação sobre a relação entre o modernismo de 1922, o seu presente (anos 1940) e o futuro é a célebre conferência de Mário de Andrade que faz o balanço do movimento, justamente naquele momento em que o movimento está deixando de ser revolução e está virando cultura oficial estatal e acadêmica. Nesse sentido, as obras (mas não necessariamente a ideologia) produzidas nos anos 1920 e 1930 nunca deixarão de ser bananeira que pode inspirar gerações posteriores, como inspirou nos anos 1950, 1960, 1970 e, talvez, ainda, 1980. Eu diria que, a partir dos anos 1990, o modernismo continuou sendo uma cultura hegemônica, mas as novas gerações especificamente literárias tinham por referência, na prosa os autores dos anos 1970 e, na poesia, a busca de novos poetas estrangeiros, por meio das traduções que extrapolaram em muito o pai de uma concretista, esse já um ruído no modernismo oficial. Eu diria que a maior diferença entre a brasilidade modernista e a brasilidade atual é que se os modernistas eram intelectuais redescobrindo o Brasil e aposentando as visões oitocentistas, hoje em dia o grande fenômeno é a ascensão das próprias classes marginalizadas — o índio fala pelo índio, não precisa de um poeta branco que fale por ele e assim por diante.

Entrevista publicado originalmente no Correio Braziliense.

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