Nos últimos meses o Brasil presencia, em rede nacional, filas gigantescas que foram formadas por pessoas que lá estavam para receber carcaça e pés de frangos para poderem se alimentar. De algum modo a fome está sendo mostrada, em osso, para que mais pessoas conheçam essa dura realidade.
A violência dessa imagem e tudo o que ela carrega de violações de direitos humanos mostra o quanto caímos no precipício social, contrastando com a alegria que tivemos em 2014, quando o Brasil saiu do Mapa Mundial da Fome, de acordo com a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), que utiliza faz 50 anos o Indicador de Prevalência de Subalimentação, medida usada para dimensionar e acompanhar a fome em termos internacionais. No relatório global, a FAO mostrou que o Brasil atingiu nível inferior a 5%, abaixo do qual se considera que países superaram o problema da fome.
Estudos, como o do Ipea, mostram que as políticas públicas implementadas podem, efetivamente, fazer com que o Estado cumpra seu papel. A título de exemplo, vimos que de 2001 a 2017, o programa Bolsa Família reduziu a pobreza em 15% e a extrema pobreza em 25%. Foram milhões e milhões de brasileiros que saíram da linha da miséria. Claro que não se trata de uma única ação governamental e nem poderia ser, mas um conjunto. Algumas foram apontadas pela FAO, tais como : aumento da oferta de alimentos; elevação da renda dos mais pobres, aumento real do salário mínimo; criação de 21 milhões de empregos; programas Bolsa Família e Merenda Escolar; a recriação do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional.
Grande parte das pessoas que estavam nas filas de ossos são mulheres que têm filhos. Mas neste mês de outubro, no qual se comemora o Dia Mundial da Alimentação, na verdade não temos como comemorar a data comemorativa do dia da crianças, pois são milhões de brasileirinhos que estão passando fome.
Estima-se que mais de 9 milhões de crianças vivam em extrema pobreza no país, portanto com dificuldade de se alimentar bem e, sendo crianças, sabemos que terão sequelas de longo prazo, eternas, em razão de estarem sendo sacrificadas na fase de desenvolvimento, que é tão crucial.
Doloroso, extremamente doloroso, que em pleno 2021 muitas pessoas mundo afora e no Brasil morram de fome e que é necessário ainda percorrer quase uma década para que ela seja extirpada do planeta Terra, se alcançada a meta de “Fome zero”, até 2030.
A fome não é natural, não pode ser naturalizada e é perfeitamente evitável, por isso, cada um de nós perde um pouco da sua dignidade quando um ser humano passa fome.
Como disse Papa Francisco, na pré-cúpula sobre sistemas alimentares da ONU, em julho de 2021: a fome no mundo é um escândalo e um crime contra os direitos humanos. Produzimos comida suficiente para todas as pessoas, mas muitas ficam sem o pão de cada dia. É dever de todos extirpar esta injustiça através de ações concretas e boas práticas, e através de políticas locais e internacionais. E acrescentou que precisamos de “uma nova mentalidade e uma nova abordagem integral e projetar sistemas alimentares que protejam a Terra e mantenham a dignidade da pessoa humana no centro; que garantam alimentos suficientes globalmente e promovam o trabalho digno em nível local; e que alimentem o mundo de hoje, sem comprometer o futuro”.
Muitas pessoas olham para o flagelo da fome e suas soluções, mas não nem sempre enxergam que se trata de um dever do Estado, que corresponde à um direito de todos nós em vivermos uma sociedade em que as pessoas sejam minimamente respeitadas.
A nossa Constituição Federal, a partir da emenda constitucional 64/2010, agasalhou a alimentação como direito social, expressamente. E nela está escrita: São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.
É certo que analisada em seu conjunto a Constituição já realizava a proteção, ainda que por vezes, não de forma expressa, na medida que a alimentação é uma necessidade primária e essencial para a própria existência, de qualquer pessoa. Por certo está englobada na compreensão do princípio da dignidade humana, estabelecido no artigo 1º da CF; no objetivo da República, no seu artigo 3º, quando estabelece como um deles a erradicação da pobreza e a redução das desigualdades sociais; no artigo 7º, IV, quando estabelece dentre os direitos dos trabalhadores o direito à percepção de um salário mínimo que atenda necessidades vitais básicas e dentre elas, refere-se expressamente a alimentação.
A humanidade já tinha determinado a sua importância, por ter a natureza de um direito humano. Neste sentido, encontramos sua proteção em diversos instrumentos internacionais .
No âmbito das Organizações das Nações Unidas (ONU), a Declaração Universal dos Direitos Humanos, reconheceu o direito à alimentação. Verifique-se os artigos 3º e 25º: Toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família, saúde e bem-estar, e , esepcialmente , a alimentação”. Vejamos o preâmbulo da parte A, da Constituição da FAO: “Os Estados que adotam esta Constituição,decididos a promover o bem-estar geral, intensificando, por sua parte, a ação individual e coletiva com os fins de: elevar os níveis de nutrição e de vida…e contribuir, assim… a libertar a humanidade da fome”. A Convenção de Genebra, em seu art. 55º, obriga a garantia de abastecimento de víveres a “pessoas civis” em situação de conflito. O Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais das Nações Unidas, estabelece, em seu art. 11, o “direito de todos de usufruir de um padrão de vida adequado para si mesmo e sua família, incluindo moradia, vestuário e alimentação adequados, e à melhoria contínua das condições de vida”.
Ainda na seara da ONU , tivemos em 1999, o Comentário Geral nº 12 do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais do Alto Comissariado de Direitos Humanos, que também tratou do tema e apontou que o tema da alimentação deve ter um viés amplo: “O direito à alimentação adequada realiza-se quando cada homem, mulher e criança, sozinho ou em companhia de outros, tem acesso físico e econômico, ininterruptamente, à alimentação adequada ou aos meios para sua obtenção. O direito à alimentação adequada não deverá, portanto, ser interpretado em um sentido estrito ou restritivo, que o equaciona em termos de um pacote mínimo de calorias, proteínas e outros nutrientes específicos. O direito à alimentação adequada terá de ser resolvido de maneira progressiva. No entanto, os Estados têm a obrigação precípua de implementar as ações necessárias para mitigar e aliviar a fome, como estipulado no parágrafo 2 do artigo 11, mesmo em épocas de desastres, naturais ou não”.
No âmbito regional, também temos normativa, como a Carta da Organização dos Estados Americanos – OEA. Confira-se o art. 34, que firmou como meta alcançar a “alimentação adequada, especialmente por meio da aceleração dos esforços nacionais no sentido de aumentar a produção e disponibilidade de alimentos”. O Protocolo de San Salvador , tem um dos capítulo nominado como “Direito à alimentação” ( artigo 12 , item 1 e 2 ), no qual registra as obrigações dos Estados Partes sobre esta questão e aponta para a necessidade de produção, abastecimento e distribuição de alimentos.
Enfim, temos vasta normativa nacional, regional e internacional.
Já tínhamos saído do maldito Mapa da Fome, mas para ela caminhamos fortemente, com filas de pessoas que buscam ossos, para ter algo que comer.
Esta jornada famélica vem por políticas públicas que não são realizadas, em termos nacionais e por extinguir políticas públicas exitosas.
Um dos primeiros atos do atual governo, no seu primeiro dia, em relação a este direito, foi o fim do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional – Consea, via medida provisória (MP) 870/2019, vulnerando os mecanismos de garantia do direito à alimentação e com o desmonte da política de segurança alimentar.
A situação se agravou a tal ponto que a OAB ingressou em setembro de 2021 com uma ADPF, para que sejam instituídas políticas de combate à fome. Usa como base de dados o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, que apontou para 116,8 milhões de brasileiros com algum grau de insegurança alimentar, em dezembro de 2020.
Os povos indígenas também tiveram que recorrer ao STF, através da APIB, para que durante a pandemia , tivessem medidas de proteção, inclusive a alimentar.
Todos os poderes da República têm obrigação de fazer respeitar a Constituição Federal e o regramento internacional que o país assumiu como compromisso, não olvidando que direitos humanos não permitem retrocesso.
Termino com a primorosa lição de Josué de Castro, que teve uma vida dedicada ao combate do drama da fome, na perspectiva econômica, política e social, e que à mais de meio século nos ensinou que: “ A fome age não apenas sobre os corpos das vítimas da seca, consumindo sua carne, corroendo seus órgãos e abrindo feridas em sua pele, mas também age sobre seu espírito, sobre sua estrutura mental, sobre sua conduta moral. Nenhuma calamidade pode desagregar a personalidade humana tão profundamente e num sentido tão nocivo quanto a fome, quando atinge os limites da verdadeira inanição” (Fome como Força Social: Fome e Paz – publicado na revista Pourquoi, número especial, março de 1967, Paris. Incluído no livro Fome, Um Tema Proibido).
Todos os chamados operadores de direito têm o desafio de concretizar o direito constitucional do direito à alimentação em realidade, com toda a capacidade de indignação que é necessária, pois é inaceitável que neste exato instante milhares de pessoas estejam com fome.
Publicado originalmente no Consultor Jurídico.
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