Por Alexandra Moraes
Jornal demora a mostrar que caso de cabeleireira no STF vai além de vandalismo contra escultura
Um leitor atento e interlocutor frequente, Rafael Simi, enviou nesta semana à ombudsman o que chamou de “questionamento sincero”. “Será que a Folha não deveria parar de usar em suas chamadas a expressão ‘mulher que pichou estátua’? A Folha é um jornal plural e seus colunistas têm uma saudável liberdade para discordar da pena (…). Mas a opinião dos leitores fica enviesada se o destaque da reportagem é uma condenação supostamente por pichar uma estátua. Não foi essa a razão e vocês sabem disso”, afirmava Simi.
O caso era o da cabeleireira Débora Rodrigues, presa preventivamente há dois anos por atos no 8 de Janeiro e denunciada pela Procuradoria-Geral da República por crimes que somariam 14 anos de pena: associação criminosa armada, tentativa de abolição violenta do Estado democrático de Direito, tentativa de golpe de Estado e dano qualificado por violência e grave ameaça contra o patrimônio da União. Os ministros do STF Alexandre de Moraes e Flávio Dino votaram a favor da condenação, e Luiz Fux pediu vista.
A mulher foi fotografada com as mãos sujas de batom pichando a estátua “A Justiça”, em Brasília, com a inscrição “perdeu, mané”. (Nestes tempos de português sofrido, talvez o uso correto da vírgula antes do vocativo devesse servir para reduzir-lhe ao menos alguns dias de pena…)
O caso ensejou um sem-número de manifestações nos jornais e nas redes sociais. A de Simi, porém, não era simplesmente sobre o cabimento ou não da prisão ou da pena. “Duas jornalistas da Folha estão sendo perseguidas. Isso não é culpa da Folha. É reflexo de uma perseguição metódica ao jornalismo”.
O aspecto para o qual ele e depois outros leitores chamaram a atenção era o fato de o próprio jornal reduzir o caso ao de uma “mulher que pichou a estátua”, “pichadora do batom” etc. “Esse ruído não ajuda no debate e, no fim, alimenta os fanáticos. E os fanáticos são mão de obra terceirizada de políticos golpistas.”
A perseguição a jornalistas, sobretudo mulheres, não é novidade. Infelizmente, ganhou um novo capítulo com ataques que insinuavam que Gabriela Biló e Thaísa Oliveira seriam responsáveis pela identificação da mulher que vandalizou a escultura em Brasília. A identificação foi feita pela Polícia Federal.
Contra as jornalistas, que trabalharam na cobertura da intentona de 2023, havia “xingamentos, estímulos a linchamentos públicos e ao escrutínio de informações pessoais” e ameaças de morte, segundo relato da Folha, que registrou boletim de ocorrência.
Partidários dos golpistas criaram uma fantasia narrativa em que o jornal servia de linha auxiliar de Alexandre de Moraes. “Tiozões” fizeram seu esperado papel de idiotas úteis e reproduziram o material mentiroso e criminoso em redes capilarizadas.
Essas pessoas não estão preocupadas em saber ou informar fatos. Mas muitas das reportagens da Folha, inclusive aquela em que a ação criminosa contra as repórteres do jornal era relatada, falhavam reiteradamente em contar os motivos pelos quais àquela cabeleireira, que se embrenhara numa turba golpista a cerca de 900 quilômetros de sua casa, estava sendo aplicada a pena de 14 anos. E não era apenas por ter passado batom na estátua.
Na Folha, o texto da coluna Encaminhado com Frequência se revelava o mais sóbrio nesse sentido. Ele a tratava como “Débora Rodrigues dos Santos, acusada de crimes como tentativa de abolição violenta do Estado democrático de Direito e de golpe de Estado”. A coluna evidenciava de que forma a narrativa do “batom” vinha sendo usada nas redes.
Justa ou injusta, a pena teve seus motivos enunciados pelos juízes, e a Folha faria bem em ao menos listá-los sempre que tratasse do caso “do batom” ou “da pichadora da estátua”.
O clamor se impôs, e há pouco acharam-se os motivos para que a ré fosse enviada a prisão domiciliar. As ameaças às repórteres e ao jornalismo, porém, continuam a vagar por aí.
O bolsonarismo e outros movimentos radicalizados na internet há muito elegeram profissionais da imprensa como alvo. Olavo de Carvalho doutrinou hordas de homúnculos com suas palavras contra o jornalismo numa época em que blogueiros governistas ganhavam a vida denunciando a “mídia golpista”. As redes sociais, por sua vez, gamificaram o trabalho de atacar o mensageiro.
Além de animar a turba eleitoral, manifestações criminosas de hostilidade como esta recente têm como objetivo coibir novas investidas do velho jornalismo (a segunda profissão mais antiga do mundo, ralhava Paulo Francis).
Mas o caso da “pichadora do batom” ilustra também algo maior. Em sua Coluna do Estadão, Roseann Kennedy promoveu discussão importante sobre a simbologia dele na bússola ideológica brasileira. “Na avaliação de acadêmicos e criminalistas, o ministro Luiz Fux ajudou a institucionalizar o debate sobre a revisão de penas aos condenados do 8/1, e o caso (…) é identificado pela população como injustiça.”
Em entrevista à newsletter do cientista político Yascha Mounk, Audrey Tang, especialista em democracia digital e “embaixadora cibernética” de Taiwan, conta como buscou outra abordagem para o que se chama por aí de “desinformação”. “Não se trata de ser totalmente verdadeiro ou falso, mas do potencial de impulsionar engajamento por meio da raiva”, diz. “Às vezes não tem nada a ver com informações factuais. Tem a ver é com polarização.”
Parafraseando Audrey Tang, às vezes não tem nada a ver com batom. Tem a ver é com polarização.
Artigo publicado originalmente na Folha de S.Paulo.
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