Se confirmadas as inúmeras informações recentemente trazidas pela mídia e pelo próprio Procurador-Geral da República, Augusto Aras, em live promovida no dia 27/07/2020 pelo grupo Prerrogativasiii, não haverá dúvidas de que a Força Tarefa denominada Lava-Jatoiv se trata, acima de tudo – e de todos –, de um projeto de poder gestado no interior do Ministério Público – com forte apoio externo, diga-se – e que, no fim das contas, se apresenta como verdadeiro fenômeno autofágico, capaz de estremecer as bases da instituição, considerada a exposição que faz do fosso aberto entre sua práxis e o dever ser que lhe impõe a Constituição de 1988.
Todavia, oportuno destacar que a Lava-jato não surge de uma autopoiese, mas floresce em um contexto que, se jamais poderia justificá-la, no mínimo a explica. Afinal, não é de hoje que observamos o distanciamento da práxis jurídica em relação aos princípios e projetos constitucionais, especialmente no âmbito penal.
De forma progressiva, vimos bovinamente observando a destituição da liberdade pelo punitivismo e a ascensão deste como fetiche orientador da elaboração, interpretação e aplicação de nosso direito e processo penal. Os véus foram dispensados e, mais que nunca, é a tara punitivista que abertamente pauta o poder, no sentido mais amplo que se lhe possa conferir.
Podemos dizer, portanto, que é em nome do punitivismo que a polícia se autoriza e é autorizada a matarv; que se admitem provas ilegalmente obtidas como base para juízos condenatórios seletivos; que temos um sem-número de militares ocupando postos em um governo supostamente democrático; que elegemos nossos representantes no Executivo e Legislativo – inclusive no âmbito municipal; que os fins passam a justificar os meios, contrariando os ideais democráticos que têm na observância dos meios a única via legítima para que se alcancem legitimamente os fins propostos; enfim, é em nome do punitivismo que nosso debilitado Estado de Direito vai dando lugar a um estado de polícia que não soubemos conter, não obstante recentemente saídos de uma ditadura.
E é de punitivismo que se cuida quando analisado o fenômeno Lava-Jato no contexto maior de um Ministério Público cuja imagem reduz-se cada vez mais àquela vinculada à função de acusador penalvi. Noutras palavras, apropriando-se do discurso e mesmo se apresentando como arauto primeiro do punitivismo que tanto poder tem rendido, assistimos ao veloz regresso do Ministério Público à mera condição de órgão de acusação, desvinculado dos ideais maiores aos quais lhe destinou a Constituição de 1988, que se abrem pelo seu art. 127, a seguir transcrito:
“Art. 127. O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.”
Mesmo que nos detenhamos apenas na função de defesa da ordem jurídica e do regime democrático – que já é missão de exigente nobreza –, é possível concluir que uma dedicação fetichizada à acusação penal está muito aquém do que a Constituição estabelece como dever ser do Ministério Público. Aliás, essa dedicação fetichizada à acusação penal, que bem se traduz como punitivismo – porque seletivo e descompromissado em relação aos meios legítimos de aplicação da lei penal –, não só está aquém, mas, em verdade, é de fato violadora do dever de defesa da ordem jurídica e do regime democrático, colocando em risco toda a estrutura de nosso Estado de Direito e a própria instituição.
Ora, não há dúvidas de que a assunção do punitivismo como discurso e modo de ação predominante por parte da instituição que deveria se ocupar de contê-lo, em defesa da ordem jurídica e do regime democrático, é capaz de abrir fissura suficiente para que, como já destacado por Zaffaroni, irrompa o estado de polícia com todo seu potencial deletério em relação à democracia e ao Estado de Direito que deveria contê-lovii.
Emerge, então, a questão: como isso seria possível? O que motivaria um tal projeto?
Embora possam ser muitas as respostas possíveis a esses questionamentos, compreendemos que, se verdadeiras as muitas informações recentemente veiculadas sobre os procedimentos da Lava-jato – ou, ao menos, parte delas –, o poder despontaria como leitimotiv de tantos e tão graves abusos e ilegalidadesviii. E não se trata de qualquer poder, mas de um poder que se imporia ao país e ao próprio Ministério Público, aviltado em seus regramentos internosix, a Lava-jato se estabelecendo progressivamente, nos planos imaginário e concreto, como uma instituição à parte, imune, inclusive, ao controle institucionalx.
Ou seja, se as coisas realmente se passam e se passaram como se tem noticiado há algum tempo – no que incluímos as recentes falas do Procurador-Geral da República em exercício –, impossível escapar à conclusão de que a chamada República de Curitiba, cega de pleonexia, não hesitou em dispensar seus compromissos constitucionais primeiros e colocar em risco toda a instituição que representa para alcançar seus objetivos. Para tanto, consoante informações advindas de várias fontes, a Lava-Jato teria se valido de todos os meios disponíveis, sem maiores preocupações com questões de licitude ou moralidade, os quais incluiriam, dentre outros: 1) estabelecimento de aliança pouco ortodoxa – em linguagem eufêmica – com potência imperial estrangeira, em detrimento de nossa soberaniaxi; 2) intervenção direta e deturpadora dos processos políticos locais, em prejuízo do regime democrático e da própria estabilidade do paísxii; 3) desconsideração das normas que regem o processo penal brasileiro, a começar pelo princípio acusatório, estabelecendo-se uma indistinção entre as funções que têm por finalidade assegurar imparcialidade e justiça às persecuções penaisxiii, com graves máculas à credibilidade do sistema de justiça penal; 4) criação de fundação própria com valores arrecadados ao longo de persecuções penaisxiv; 5) formação de parcerias informais com empresas de comunicação de massas para divulgação e glorificação da força tarefa, o que incluiria a difusão orquestrada de notícias, ações e vazamentos de conteúdos de interceptações.
Esses, como dito, são alguns dos métodos que, conforme vem sendo noticiado, regeriam a dita República de Curitiba e seus representantes, os quais, segundo nossa hipótese, e se verídicas as informações que pululam aos montes, agiram motivados pela pleonexia.
E o que seria a pleonexia?
Para Dany-Robert Dufour, a pleonexia apresenta-se como significante-chave para a compreensão do sujeito e de suas relações em nossos tempos, na medida em que representa, resumidamente, o desejo de possuir sempre mais que a parte que lhe cabexv, ambição que está na base do processo de divinização do mercado e que se expressa pelo ultraliberalismo correntexvi.
Assim sendo, partindo do que informa a mídia – que, enquanto servia à força tarefa, era sinônimo de credibilidade –, ao observarmos que a Lava-jato colocou-se acima da soberania nacional, da Constituição, da legislação vigente, da instituição que representa e dos regramentos desta, conclusão certa é a de que seus mentores e executores agiram tomados de pleonexiaxvii. Quiseram e querem ter muito mais do que aquilo que lhes cabe, colocando-se acima da lei que, inclusive, deveriam resguardar, aplicando-a a si próprios em primeiro lugar.
Entretanto, a ambição por poderes desmedidos e as injustiças cometidas em nome da pleonexia reclamam punição. É o que também destaca Dany-Robert Dufour:
“(…) a pleonexia pertence a uma forma de hybris, isto é, de desmesura. A hybris é uma noção ainda mais antiga que a pleonexia. De fato, nós a encontramos, antes da filosofia, nos mitos gregos fundadores. Estes mitos gregos se estabelecem, de certo modo, como o discurso da physis, a qual corresponde às forças da natureza com as quais os homens devem criar. Portanto, os nomes comuns se tornam, no mito, nomes próprios. De modo que a deusa Hybris, filha da Noite e de Érebo (divindade infernal nascida do Caos), personifica a hybris, a desmesura. Aprendemos, por meio do mito, que Hybris forma casal com Nêmesis, a punição. Porque aquele que sai de seu limite, se expõe a ser punido pelos deuses para ser mais ou menos brutalmente levado para a medida, a fim de que, de alguma forma, seja reposto em seu lugar, que é o de ser mortal.”xviii
Por tão evidente pleonexia, caso se confirmem os tantos e tão graves abusos e ilegalidades atribuídos à Lava-Jato, esperamos que lhe esteja por chegar a necessária punição – nos limites do direito e do devido processo legal, sempre – ou que, no mínimo, medidas sejam tomadas para que as coisas sejam repostas em seus devidos lugares. Em especial, esperamos que a Constituição volte a reger o processo penal e a servir de limite às autoridades que dele participam – aliás, cabe destacar que uma das principais funções de uma Constituição é de limitar o poder do Estado e de seus agentes –, com a necessária distinção entre as funções acusatórias e jurisdicionais.
Mais uma vez, se verdadeiras as informações recentemente difundidas, até mesmo pelo Procurador-Geral da República, tem-se que a Lava-jato, em seus métodos e em sua pleonexia, conseguiu alçar o punitivismo ordinário com o qual infelizmente estamos nos habituando a patamares jamais vistos, o que, imagina-se, deve causar mal-estar entre os próprios pares dos responsáveis por esse projeto de poder. Inclusive, parece-nos que o próprio Ministério Público já dá sinais de recusar o controle que tenta lhe impor a força tarefaxix, que se tornou uma espécie de ministério público paraleloxx e, sentindo-se agigantada em relação à instituição, tentou instrumentalizá-la em nome de um projeto de poder que, talvez, já tenha até candidato para o próximo pleito presidencialxxi.
Mas, é claro, tudo isso desde que pertinentes e verdadeiras as não poucas críticas e informações que vêm emergindo em relação à Lava-jato, seus métodos, alianças e objetivos. A propósito, embora reconheçamos a redundância das condicionantes lançadas neste texto – tantos se, caso e desde que –, temos que cumprem função relevante. São como o escudo de Perseu, que lhe serviu de proteção contra o olhar direto e petrificante da Medusa, Górgona que bem metaforiza a face horrenda da tara punitivista que permanece em ininterrupto plantão, sempre pronta a silenciar os que a denunciam.
1 Comentario
João Paulo
06/08/2020, 20:20Ótimo texto.
ResponderA lava jato criou um vazio que dificilmente será preenchido e, se for, demorará muito para tal. Se pelo caminho correto ou não, o que é discutível do ponto de vista dos parâmetros utilizados para a escolha das empresas, os esforços feitos pelos governos petistas em elevar a condição de player globais algumas das mais renomadas empreiteiras do Brasil foi uma política que trouxe divisas para o pais e que trouxe certa independência tecnológica para a nação. Empresas como a Odebrecht estavam envolvidas em projeto e construção de um amplo portfólio de ativos (rodovias, barragens hidrelétricas, plantas petroquímicas, usinas nucleares, área de defesa, etc.). Conhecimento que traz muito poder para uma nação subdesenvolvida e que poderia começar a ameaçar a geopolítica mundial.
Mas na cegueira, ou esperteza, da lava jato, ocorreu o desmonte da engenharia nacional, quando perdemos grandes empresas. O famoso jogar o bebê fora junto com a água suja, pois, punir administradores que praticaram atos de corrupção era necessário, mas também o era preservar os CNPJs que geravam milhares de empregos e traziam divisas (econômicas, tecnológicas) para o país. Quantos milhões de empregos não foram perdidos nesta cegueira?
Por fim, é importante se destacar que, de forma intencional ou por incompetência, a aliança/cooperação com os EUA poderia ter sido intermediada pelos canais oficiais corretos, mas, em função da omissão do então ministro da justiça, José Eduardo Cardozo, que passou esta missão para o procurador geral da república, que por sua vez passou esta incumbência para o pessoal de Curitiba, tal aproximação (que levasse em conta a nação sistemicamente) não ocorreu. Com isso, além dos arranhões a credibilidade do MP e demais consequências abordadas de forma brilhante no texto, a nação foi jogada em uma espiral de perdas (econômicas, sociais, etc.) que nos fizeram recuar no tempo da evolução da nação várias décadas. Pior, abriu espaço para um projeto nacional que só temo o Brasil como ponto central no lema…
Mas já estamos avançando, lembro no início da lava jato, quando as arbitrariedades começaram a vir à tona, quando eu fui criticar a operação com uns colegas de trabalho e um deles disse: da forma como você critica a lava jato, parece que você é a favor da corrupção). Então eu expus alguns dos pontos listados acima. Era crime criticar a lava jato. Hoje as críticas já começam a ser aceitas, daqui a pouco, se confirmadas todas as denúncias existentes, a operação vai ser mais uma página para se esquecer na história da nação.