A saga da páscoa judaica, comemorada nessa semana, tem como pano de fundo a liberdade de um povo que vivia na escravidão. Essa é a parte mais fácil de sua leitura, a parte mais bela afinal, quem não deseja, almeja a liberdade? Quantas mulheres não desejam se livrar de um marido abusivo? Quantos filhos não desejam se livrar de pais autoritários? Quantos trabalhadores e trabalhadoras não desejam se livrar de um emprego que os explora até à medula? Provavelmente mais da metade da população mundial. Portanto, como não celebrar a passagem, a transposição, tradução literal da palavra Pessach, da escravidão para à liberdade? Mas a saga da saída do Egito em direção à Terra Prometida nos ensina muito mais que meramente uma busca pela liberdade. A história da páscoa judaica é a história da formação política e cultural de um povo e, mais ainda, é a história da luta fratricida para se chegar ao destino final.
A páscoa judaica nos ensina que sem luta, sem perseverança, sem tergiversar com os inimigos, não se chega à Terra Prometida. A história começa com a conscientização de Moises de sua verdadeira origem, hebraica, portanto, escravo. Essa tomada de consciência política de sua origem o impele a enfrentar o mais poderoso país de sua época, custe o que custar. Moises foi criado pela família do Faraó, pela realeza egípcia, mas abandona sua formação e aproximação com a elite do país, que transformara seu povo de origem em escravo, iniciando o enfrentamento. Moises, em audiências com o poder, tenta convencer a elite da conveniência de suas demandas para a própria sociedade egípcia com objetivo final de, através de acordos, a autorização para o término da escravidão. Infelizmente, a elite egípcia recusa, não havendo alternativa senão o enfretamento direto contra o exército mais poderoso da região, cujo enfrentamento teve a sua batalha final no assassinato do filho do próprio Faraó, o herdeiro do trono egípcio; com esse desenlace Moisés recebeu autorização para o término da escravidão. Mas essa foi a primeira batalha do longo caminho para a formação política de um povo. Moises tinha uma enorme tarefa pela frente: como transformar um povo sob a escravidão egípcia por 400 anos em um povo detentor de direitos? Liberdade é uma palavra vazia se não transformada em ação política na conscientização do povo de seus direitos.
Não é a toa que um dos cânticos mais famosos desse período tinha somente dois versos: escravos éramos, agora somos seres humanos (avadi ainu, archav benei horim). Moisés tinha completa noção da gravidade e dos tempos duros que o povo deveria passar para adquirir a necessária consciência política de sua existência. Moises sabia que nesse momento não poderia retroceder, não poderia tergiversar, não mais com a elite faraônica, que fora deixada para trás, mas com partes do próprio povo hebreu que resistia a aceitar as novas alianças políticas necessárias para o nascimento de um povo que saíra da escravidão e caminhava para a liberdade. A resistência de parte do povo em aceitar a nova Constituição, que Moises cunhou como os 10 Mandamentos, e posteriores leis de costumes e comportamentos que até hoje vigem, levou a uma inevitável guerra civil finalmente vencida pela exércitos aliados a Moises. Moises sabia, por fim, que a passagem para a Terra Prometida precisava ser longa e árdua. Caminhou durante 40 anos pelo deserto para que as gerações que viveram a escravidão perecessem e que novas gerações nascessem com força suficientemente forjada no deserto para a criação de um povo livre. A história da páscoa judaica nos ensina que a liberdade é algo que se conquista rompendo com o passado. A liberdade não se constrói com resquícios de uma sociedade que mantinha o povo na escravidão.
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