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Ainda precisamos falar sobre o falso reconhecimento pessoal…

Ainda precisamos falar sobre o falso reconhecimento pessoal…

Por Aury Lopes Jr. e Joselton Calmon Braz Correia

O reconhecimento pessoal é um meio de obtenção de prova bastante útil, mas também extremamente sensível. Além de depender de memória e, portanto, também da falta de memória, das falsas memórias e da própria mentira, é um ato com imenso risco de indução e respectiva correspondência às expectativas criadas pela autoridade. No Brasil, o reconhecimento pessoal falha nas duas dimensões: na legislativa porque nosso CPP disciplina parcamente a matéria; e na dimensão das práticas policiais, por falta de preparo e de agentes capacitados para realizá-lo com o menor nível de contaminação, indução e cautela necessários.

Ao lado desses pontos sensíveis, temos ainda um equivocado rebaixamento de standard probatório para determinados crimes, que elevam a palavra da vítima (e o respectivo reconhecimento por ela feito, muitas vezes em condições erradas) a um nível de credibilidade extremamente perigoso. Nessa linha, o Superior Tribunal de Justiça já fixou (equivocado) entendimento de que, em caso de estupro, a palavra da vítima pode ser suficiente para a condenação do suposto agressor [1].

Na prática, a compreensão sobredita é o que realmente acontece, como exemplo, o caso de Israel de Oliveira Pacheco, de 27 anos, que foi preso por ter sido reconhecido pela vítima como o seu agressor sexual, porém o material genético colhido não era ligado a Israel, e sim a outro homem que anteriormente já tinha sido suspeito de outros crimes libidinosos, mesmo assim, os julgadores, baseando-se apenas na prova testemunhal, manteve a prisão de Israel, condenado a mais de 11 anos de carceragem, fundamentando que apesar da vítima nunca ter mencionado presença de outro homem na cena do crime, poderia ter o acusado agido em coautoria com outra pessoa [2]. Israel foi absolvido depois de cumprir 10 anos de prisão [3].

Além disso, é significativo acentuar que a citada prova colhida na fase de reconhecimento, não pode ser confundida com a simples narração dos fatos feita pela vítima, uma vez que, a certeza na identificação do suspeito é pressuposto para a efetiva produção desta prova, até porquê, se não houver convicção, não há de existir o reconhecimento.

Portanto, é preciso explicar que a memória é o local onde guardamos nossas lembranças, porém, este local de armazenamento está sujeito a falhas [4], como distorções ou o completo esquecimento, e é justamente por conta destas falhas que surgem erros cruciais no momento de identificação do suspeito.

Nesse contexto, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, aponta que as memórias falsas podem ser mais detalhadas que as verdadeiras, sendo criadas mediante processo interno da própria pessoa, ou por intermédio de informações implantadas pelo ambiente externo [5]. Logo, é lógico afirmar que, por mais aparente que seja a certeza de determinadas lembranças, esta convicção pode ser baseada justamente na memória falsa, até porque, este fenômeno está sujeito a apresentar mais detalhes do que a verdadeira memória, como sobredito.

Dessa forma, podemos sopesar que, quanto mais desacautelada a fase de reconhecimento dos acusados, mais estará sujeita a erros, devido ser uma fase que se ampara apenas na memória da testemunha, portanto, por mais que a testemunha ocular tenha plena convicção de suas recordações, não está livre de cometer grave erro, devido uma lembrança inautêntica, logo, observando o incalculável dano que poderá advir de um erro na identificação de um acusado, ressalta-se a cautela que se deve ter.

Nesse contexto, são importantes as informações reveladas pelo Innocence Project [6], o qual divulgou em suas pesquisas que, de 230 pessoas condenadas, posteriormente inocentadas mediante exames de DNA, 179 o foram devido a identificações erradas de vítimas/testemunhas oculares. Em 38% dos casos em que houve este erro, várias testemunhas oculares identificaram incorretamente o mesmo suspeito inocente.

Além disso, em 50% dos casos de imprecisão na fase de reconhecimento do acusado, os depoimentos das testemunhas/vitimas oculares foram a principal prova utilizada contra o acusado, sendo que, em 36% desses casos, o verdadeiro culpado fora identificado por exame de DNA. Em pelo menos 48% das ocorrências que tiveram identificações erradas, o autêntico malfeitor cometeu novo crime, enquanto um inocente estava cumprindo pena pelo seu delito anterior.

É importante registrar que, os métodos usados nos Estados Unidos para se reconhecer os acusados são os chamados LineUp (exibição do acusado perfilado com outras pessoas) e Photospreads (apresentação de várias fotos de pessoas contendo a do suspeito), porém, segundo a organização, com a descoberta de inúmeros casos de pessoas condenadas injustamente por erros mediante essas técnicas, foram aprovadas pelo Instituto Nacional de Justiça dos Estados Unidos e pela Ordem dos Advogados dos Estados Unidos, algumas normativas:

  • O policial dirigente do procedimento de reconhecimento não deve saber quem é o suspeito, aplicando este método tanto no LineUp quanto no Photospread;
  • As características dos participantes do perfilamento devem ser semelhantes a do suspeito, não podendo ele ficar em destaque e não devendo ter mais de um suspeito no perfilamento;
  • A testemunha/vítima ocular deve ser instruída que, dentre as pessoas apresentadas, pode o autor do crime não estar presente, e que as investigações continuarão independente de haver um reconhecimento (com isso se pretende diminuir o fator ‘aliança’, a necessidade (inconsciente) de corresponder a expectativa criada pela autoridade);
  • Caso haja a identificação, a testemunha ocular deve prestar declaração, apontando o quão confiante está do seu reconhecimento;
  • Esta fase deverá ser gravada em vídeo, para posterior controle epistêmico pelos advogados, promotores e jurados do júri;
  • Os perfilados podem ser apresentados um de cada vez, em vez de todos juntos (chamado ‘reconhecimento sequêncial’[7]).

Ademais, no tocante ao investigador que realizará tal operação, é importante que não tenha participado das diligências, para evitar a indução e o efeito compromisso. Ademais, é recomendável que seja alguém com formação na área da psicologia e preocupado com a não-contaminação do ato (técnicas da entrevista cognitiva). Práticas simples feitas pelo investigador, tais como sugerir à testemunha ocular que “olhe mais uma vez”, “tem certeza?”, “quer que eu mande que se aproximem?”, “deseja olhar este mais de perto?” [8] fulminam com a credibilidade e qualidade epistêmica do ato. É preciso muita cautela para evitar induções e falsos reconhecimentos.

Infelizmente, agravando o cenário dos falsos reconhecimentos, temos graves falhas na disciplina do art. 226 do CPP e no tratamento dado pela jurisprudência brasileira. O reconhecimento pessoal é um ato formal e que deveria seguir ainda um rígido protocolo de realização, sendo um grande erro a tendência jurisprudencial de aceitar os ‘reconhecimentos informais’, dando liberdade para que o reconhecimento do suspeito seja realizado de qualquer forma, desde que, não seja provado o “prejuízo” para a defesa. Nunca é excesso recordar que no processo penal ‘forma é garantia’, ‘forma é legalidade’, considerando aqui que a forma é requisito para qualidade epistêmica da prova. Quanto a famigerada categoria do ‘prejuízo’[9], além de ser uma errônea importação do processo civil, é uma cláusula genérica, vaga, imprecisa e indeterminada, que vai encontrar seu preenchimento naquilo que quiser o interprete (decisionismo). Por último, não se aplica a teoria do prejuízo quando se trata de prova ilícita, mais um erro básico no qual incidem muitos.

Diante disso, é imensurável o número de pessoas condenadas erroneamente no Brasil devido aos falsos reconhecimentos. Se, nos Estados Unidos que seguem regras legais rígidas em relação a realização desse ato, das 230 condenações errôneas citadas alhures, três quartos foram devido a falsos reconhecimentos, imaginem a situação brasileira, que além de ter regras legais ultrapassadas e sequer observadas (basta ver a admissão dos reconhecimentos ‘informais’), ainda tem graves falhas nas práticas policiais, diante do despreparo dos profissionais que o realizam e a falta de um protocolo rígido em relação aos cuidados que se deve ter na realização do ato para reduzir o dano de um falso reconhecimento. A situação é realmente apavorante.


[1] REVISTA CONSULTOR JURÍDICO. STJ reúne decisões sobre uso de depoimento de vítimas de estupro como prova. Conjur. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2016-jan-26/stj-reune-decisoes-valor-depoimentos-vitimas-estupro. Acesso em: 23 out. 2019.

[2] MATOS, Marcos. ‘Quero fazer a minha vida’, diz gaúcho inocentado por DNA após passar 10 anos na cadeia por estupro. G1. Disponível em: https://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2018/12/21/quero-fazer-a-minha-vida-diz-gaucho-inocentado-por-dna-apos-passar-anos-na-cadeia-por-estupro.ghtml. Acesso em: 23 out. 2019.

[3] ROSA, Guilherme. Como um monte de gente inocente é presa por memórias falsas no Brasil. Folha. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2015/11/1705294-como-um-monte-de-gente-inocente-e-preso-por-memorias-falsas-no-brasil.shtml. Acesso em: 23 out. 2019.

[4] STERNBERG, Robert J. Psicologia Cognitiva. 4. ed. Porto Alegre: Artmed® Editora S.A., 2008. P. 156.

[5] INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA (Brasil). Avanços científicos em psicologia do testemunho aplicados ao reconhecimento pessoal e aos depoimentos forenses. Nº 59. Brasília, Ministério da Justiça, 2015, p. 23.

[6] INNOCENCE PROJECT (Estados Unidos). Reevaluating lineups: why witnesses make mistakes and how to reduce the chance of a misidentification. Nova Iorque: Benjamin N. Cardozo School of Law, Yeshiva University, [2016], p. 3-5.

[7] LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. 16 edição. Editora Saraiva, São Paulo, 2019.

[8] FRANÇA, Rafael Francisco. Meios de Obtenção de Prova na Fase Preliminar Criminal: considerações sobre reconhecimento pessoal no Brasil e na legislação comparada. Revista Brasileira De Ciências Policiais Brasília, Brasília, v. 3, n. 2, p. 55-90, jul./dez. 2012, p. 64.

[9] LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. 16 edição. Editora Saraiva, São Paulo, 2019.

Artigo publicado originalmente no Consultor Jurídico.

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