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Análise crítica da PEC 199 – Uma questão de status libertatis e de cláusula pétrea

Análise crítica da PEC 199 – Uma questão de status libertatis e de cláusula pétrea

Não é difícil de compreender a PEC nº 199/2019. Ela quer eliminar os recursos especiais e extraordinários e no lugar deles o objetivo é colocar uma ação revisional. Qual é o problema?

Vamos por partes:

Hoje, para interpor REsp, tem de haver algum destes requisitos: contrariedade de tratado ou lei federal ou negativa de vigência desses, julgar valido ato de governo local contestado em face de lei federal e controvérsia jurisprudencial, tudo conforme a CF, artigo 105.

Para um RE, tem de haver algum destes requisitos: quando a decisão contraria a CF, declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal, julgar válida lei de governo local contestado em face da CF e julgar valida lei local contestada em face de lei federal.

E o que é a revisional proposta na PEC 199? O que existe hoje é a ação rescisória. De todo modo, revisional, rescisória, RES e RE – são coisas muito diferentes. No Resp ou RE se busca erros de interpretação, nulidades e inconstitucionalidades.

O texto da PEC coloca como requisitos da revisional não os da rescisória, mas os dos atuais recursos extraordinário e especial. Certo. O obstáculo é menor. Apenas troca o nome das coisas? Mas, como demonstrar repercussão geral? E como provar o interesse geral? Em matéria criminal – que é o foco principal?

E o conceito de trânsito em julgado? Ora, coisa julgada é cláusula pétrea. A PEC extermina com a coisa julgada e cria algo inédito (ação revisional), com requisitos semelhantes ao do atual RES e RE.

Mas vejamos: nem só de 103 e 105 se faz uma Constituição. Além de uma decisão (vinculante) do STF sobre a presunção de inocência (ADCs 43, 44 e 54), temos um inciso de um parágrafo: o IV do £ 4º do art. 60, que impossibilita PEC tendente a abolir os direitos e garantias individuais. Cláusula pétrea. Sacralização no texto constitucional do princípio básico de vedação ao retrocesso.

O recurso é um direito, uma garantia individual. A vontade do constituinte originário foi a de estabelece que as Cortes superiores são acessíveis mediante recurso, e a de que, em havendo a possibilidade de recurso, presume-se a inocência do réu. Esse é o ponto fulcral.

Como passar de um sistema para outro? Mais: a PEC que extermina o REsp e RE será abrangente para os demais ramos, como tributário, cível, eleitoral? Ou será só para penal? O patrimônio — do poder público — vale mais que a liberdade — do cidadão?

Bom, se for para todas as áreas, ficará bem interessante uma decisão de segundo grau terminativa em matéria tributária, que só poderá ser modificada por revisional. E em matéria trabalhista? Paga logo? O governo pagará? Ou não vale para os governos? E a cassação de um mandato pelo TER? Ou até mesmo pelo TSE? Vejamos o caso da senadora Selma. No Rio Grande do Sul, o Presidente da Assembleia legislativa foi cassado há quatro meses. E continua no cargo. Corretamente. A presunção da inocência deve ser esgrimida em seu favor.

E se for só para a área criminal? Condenação e, pronto: prisão na segunda instância. Assim, direto? Como funcionará a revisional? Aí é que está. A PEC não trata disso. Se a revisional é uma cópia do RESP e RE, a resposta é simples: a PEC só serve para dar o drible na coisa julgada.

Intriga o fato de os requisitos para a revisional serem os mesmos dos recursos especial e extraordinário. Parece que o objetivo – e isso deve ser dito às claras – é prender automaticamente e o condenado é que terá que provar o contrário. Como uma espécie de ordália, porque já estará cumprindo a pena.

Diz a PEC 199 que a admissibilidade será feita pelo Tribunal a quo. OK. E caberá agravo para o STJ ou STF? E se couber agravo, no STJ ou STF esse será examinado monocraticamente como no caso do REsp e RE, hoje? Imaginemos o leque de “precedentes” defensivos que serão opostos pelos Tribunais Superiores. (“Precedentes”, leia-se, teses abstratas e prospectivas.)

No caso da matéria cível, o valor decidido no acordão em favor de uma parte já terá que ser pago logo? Haverá caução? De novo: De que modo essas revisionais serão julgadas no STJ e STF? Com os mesmos requisitos do RESP? Ou do RE?

Problema grave: como fica o controle difuso? O STF fará controle difuso no bojo da revisional?

Preocupa-nos sobremodo essa PEC. Corre-se o risco de atirar fora a água suja com a criança junto. Tudo por uma narrativa. Uma legal fake news. Venderam a ideia de que a decisão nas ADCs proibiu a prisão que eles tanto desejam: a decorrente de decisão de segunda instância.

Assim como o Direito não é o que o judiciário diz que é, também não pode ser o que o legislativo quiser – quando confronta a Constituição, a Lei Maior.

O Direito é um todo coerente. Há um ordenamento, há uma tradição, há princípios que sustentam tudo isso. Tudo isso deve ser respeitado. O legislador tem um importante papel a cumprir; mas não pode dizer que ovos são caixas de ovos.

Por último: Há limites para a reforma da Constituição. São as cláusulas pétreas, a segurança que o constituinte colocou para proteger o direito contra maiorias eventuais, por mais bem-intencionadas que estejam. Uma PEC pode violar a Constituição. Parece ser o caso da PEC 199.

Não devemos esquecer que:

  • O STF nunca proibiu a prisão sequer em primeiro grau (prisões cautelares eram, são, serão possíveis).
  • A declaração de constitucionalidade do art. 283 à luz da presunção de inocência vincula.
  • Se a CF vincula, e se ela diz o que diz, qualquer tentativa de burlar o sistema tem de ser assim chamada.

Insistimos: a decisão do STF – que ora a PEC 199 visa a contornar – jamais proibiu prisão nem no primeiro, nem no segundo graus. Disse-se que as ADCs provocariam o caos. Passados dois meses, não mais do que 8 réus da Lava Jato saíram da prisão. E no restante do sistema, nãos mais do que 300 pessoas foram beneficiadas. Para um quadro de caos que se dizia ser de 160 ou 190 mil réus, parece que a montanha pariu um rato.

Por que dizemos isso com tanta convicção? Porque a decisão do STF foi correta e ela apenas trouxe de volta a possibilidade de alguém, reunindo requisitos que tais, pode recorrer em liberdade. Os números são absolutamente tranquilizadores. Não há e não há perigo de caos. Há apenas a garantia constitucional da presunção da inocência.

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