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Anistia, democracia e a Constituição: a inconstitucionalidade material do PL 2.858 e seus substitutivos

Anistia, democracia e a Constituição: a inconstitucionalidade material do PL 2.858 e seus substitutivos

Por Diogo Bacha e Silva, Júlia Guimarães e Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira

O tema da anistia parece ter dominado a agenda pública do país no último mês. Não é à toa que o PL mobilizou sua força política e financeira para colocar a anistia no centro da agenda pública após a decisão de recebimento pela 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal da ação penal movida pela Procuradoria-Geral da República (PGR) contra o núcleo central da trama golpista.

O uso de todo o aparato financeiro e político do partido, envolvendo até mesmo a organização de manifestações, para pautar o tema da anistia na agenda pública e na agenda legislativa decorre da pretensão de evitar a responsabilização jurídico-penal dos indivíduos que constituem o primeiro escalão da trama.

Para se contextualizar, após o recebimento da denúncia, iniciaram-se ações fragmentadas nas redes sociais e na mídia de uma forma geral que criticavam o voto do ministro Alexandre de Moraes na condenação de Débora Rodrigues dos Santos. As ideias — equivocadas — que circulavam era de que Débora fora condenada apenas por pichar a estátua do STF. Esse é um grave equívoco. Débora foi condenada por participar da trama golpista.

As críticas e o próprio caso de Débora Rodrigues dos Santos foram pretextos para mobilizar a opinião pública em torno do tema da anistia. A verdadeira intenção é evitar a responsabilização jurídica dos artífices ou, mais precisamente, dos autores mediatos e imediatos que tinham o domínio final dos fatos da tentativa de golpe de Estado, da abolição violenta do Estado democrático de Direito e que se constituíram como organização criminosa.

Não por coincidência esses autores são as altas autoridades políticas e militares envolvidas na trama golpista. Observa-se que, mais uma vez em nossa história, setores das elites políticas e militares se aliam para, em um primeiro momento, destruir a democracia arduamente conquistada, literalmente com suor e sangue das classes menos favorecidas, e, não alcançando seus objetivos, querem se livrar das consequências jurídicas de seus atos. Esse diagnóstico não é uma mera suposição, vez que se extrai dos próprios acontecimentos e do próprio projeto de lei de anistia apresentado.

De alguma forma, esses setores se veem acima da lei, contrariando a pressuposição de qualquer Estado que se pretende minimamente democrático: a igualdade. Assim, ao advogarem pela elisão da responsabilização jurídica desses atos, afrontam a igualdade e, fundamentalmente, o projeto constituinte inaugurado pela Constituição de 1988, conforme se verá no decorrer deste texto.

Dentre os diversos projetos de anistia apresentados por parlamentares de forma oportunista, o Projeto de Lei 2.858/2022 de autoria do deputado major Vitor Hugo (PL-GO), que recebeu, inclusive, requerimento de urgência assinado por mais de metade dos deputados, será o nosso objeto de análise. Considerando que é o texto-base que pauta a discussão da anistia na agenda pública, centraremos nossa análise em sua viabilidade jurídica e sua compatibilidade material com a Constituição de 1988.

Desmentido

Logo se verifica, na justificativa do projeto apresentado pelo deputado Major Vitor Hugo, uma contradição lógica insuperável entre o objeto pretendido e o próprio instituto da anistia. Na justificativa, o deputado afirma que as manifestações que ocorreram após o resultado das eleições presidenciais de 30 de outubro de 2022 são manifestações legítimas de cidadãos que estavam indignados com o resultado. Portanto, não seriam atos criminosos ou ações antidemocráticas [1]. Se, no entanto, são ações legítimas e não se constituem crimes, elas prescindem da anistia, porque a única finalidade do instituto é extinguir os efeitos penais e extrapenais de infração penal.

A apresentação do projeto de lei em questão foi feita em 24 de novembro de 2022 quando ainda se desenrolava todo o processo de tentativa de golpe de Estado. Mas, por óbvio, a apresentação açodada do projeto fez o autor da proposta ser desmentido pelo desenrolar dos acontecimentos. Em 8 de janeiro de 2023, aqueles que poderiam ser considerados “manifestantes” destruíram a sede do Supremo Tribunal Federal e do Palácio do Planalto.

Nesse ato, cometeram diversos crimes. Mais ainda, a investigação da Polícia Federal, seguida da denúncia da PGR desnudou o caráter violento e armado da conspiração golpista com planejamento detalhado de tentativa de assassinato do presidente Lula, do vice-presidente Geraldo Alckmin e do ministro Alexandre de Moraes.

Durante a tramitação do projeto de lei, após sua distribuição para a Comissão de Constituição e Justiça, em 9 de setembro de 2024 o relator naquela comissão, deputado Rodrigo Valadares (União-SE), apresentou substitutivo para tentar se adequar às pretensões dos setores beneficiados [2].

No artigo 1º, o proponente modificou o âmbito material e temporal de vigência. Assim, a anistia pretende abranger todos os que participaram de manifestações com motivação política e/ou eleitoral ou as apoiaram por quaisquer meios, inclusive contribuições, doações e apoio o logístico ou prestação de serviço e publicações em mídias sociais e plataformas entre 8 de janeiro de 2023 e a data de vigência da lei.

A anistia, tal qual como proposta, pretende abranger também os financiadores e os autores intelectuais da tentativa de golpe de Estado, ao contrário do texto anterior que deixava aberta a criminalização dos financiadores e dos autores intelectuais dos atos golpistas.

Isso fica ainda mais evidente no que tange ao âmbito temporal de aplicação da anistia, já que o substitutivo, no seu §3º, realiza uma retroatividade e ultratividade para estabelecer que também são anistiados todos os que participaram em eventos anteriores ou posteriores ao 8 de janeiro desde que mantenham correlação com tais eventos. Aqui há uma tentativa clara de evitar a responsabilização, principalmente dos autores intelectuais e dos financiadores.

No seu critério material, o §1º do projeto estabelece que a anistia abrange os crimes com motivação política e os conexos a ele, bem como os definidos no Código Penal. De igual forma, o texto do substitutivo pretende fazer com que a anistia alcance os artigos 359-L e 359-M do Código Penal, tipificação esta em que muitos foram condenados e tantos outros estão sendo denunciados e processados.

Exclui-se, no entanto, do âmbito material da anistia a prática dos delitos como tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, crimes contra a vida, os crimes previstos nos artigos 129, 163, 165, 250 e 251 do CP, a teor do artigo 2º.

O artigo 3º do projeto ainda estabelece que a instauração de procedimento investigatório relativamente aos fatos elencados será considerado crime de abuso de autoridade. Essa é uma tentativa de criminalização da interpretação dos fatos que ofende de forma frontal a separação de poderes, na medida em que busca constranger criminalmente o Poder Judiciário a aplicar a legislação.

Não bastasse isso, o substitutivo no artigo 6º realiza uma profunda modificação no artigo 359-T do CP para regrar a forma como serão interpretados os artigos 359-L e 359-M do CP. Dentre as hipóteses previstas, o projeto disciplina que a interpretação dos referidos dispositivos devem preservar a liberdade de expressão e a manifestação do pensamento; não se admite a figura do crime multitudinário ou qualquer outra teoria que implique generalidade de condutas; as expressões com emprego de violência e grave ameaça exigirão para a caracterização dos delitos a utilização de meios eficazes à efetiva consumação do delito; o apoio financeiro, logístico ou intelectual não pode ser enquadrado, por si só, como ato de financiamento contrário ao ordenamento jurídico quando o movimento atue com desvio de finalidade; a responsabilização penal da pessoa física ou administradores de pessoas jurídicas que decidam apoiar movimentos sociais ou manifestações cívicas exige dolo direto para subverter a ordem jurídica e nexo causal entre o auxílio prestado, as condutas antijurídicas e o resultado produzido; fica caracterizado como abuso de autoridade o início de investigação, persecução penal ou processo-crime, bem como oferecer ou receber denúncias ou aplicar os artigos de forma diversa da estipulada no artigo.

De novo, há a tipificação de crime de hermenêutica por parte do projeto, acarretando a violação à separação de poderes. No mais, não é tarefa do Poder Legislativo a interpretação/aplicação da lei ao caso concreto e nem mesmo estabelecer qual teoria há que se basear a interpretação da lei. Por fim, no que é relevante, o artigo 8º estabelece que ficam assegurados os direitos políticos e, ainda, a extinção de todos os efeitos decorrentes das condutas a si imputadas para as pessoas beneficiadas pela lei. O artigo 9º ainda disciplina que, tão logo tenha conhecimento da lei, a autoridade judicial deverá declarar extinta a punibilidade.

Inconstitucionalidade

Para além das inviabilidades jurídicas e inconstitucionalidades específicas da forma como foi apresentado o projeto de lei, a anistia para a tentativa de golpe de Estado representa, quanto ao seu conteúdo, uma grave inconstitucionalidade material.

Em primeiro lugar, a defesa da democracia e da Constituição do Estado Democrático de Direito não admite tergiversação ou qualquer tipo de acordo. Embora as justificativas apresentadas mencionem que a anistia levaria a uma pacificação social, não se alcança a unificação nacional ou paz com a evasão da responsabilidade em atos de violência e, por conseguinte, evitando-se a incidência do direito.

A pacificação social só pode ser alcançada por meio da responsabilização jurídica. O direito tem como uma das suas funções ser um mecanismo de pacificação social quando se violam as normas que regem a comunidade política. A responsabilização jurídica é, ela mesma, uma forma de alcançar a pacificação social.

Em segundo lugar, para se constituir em uma forma de pacificação social ou reconstrução, a anistia deveria advir de um clamor popular. Não há qualquer conflito social subjacente e as pesquisas recentes mostram que a maioria da população é contra a anistia aos ataques de 8 de Janeiro [3]. Essa pesquisa revela, por um lado, que não há qualquer clamor popular pela anistia aos envolvidos e, ainda, que a população tem pleno conhecimento da gravidade dos fatos e de que não se admite que se atente contra a própria democracia, eis que no limite é um atentado contra toda a população.

Em geral, aqueles que defendem a constitucionalidade do projeto de lei de anistia costumam advogar que se trata de matéria política e de competência do Congresso. Dentro de um Estado democrático de Direito em que resta assentada a supremacia da Constituição, não há como conceber a repristinação de “questões políticas” que estariam imunes ao controle de constitucionalidade. Todo e qualquer ato do poder público deve ser escrutinado sob o império da Constituição.

Como espécie de graça constitucional, a anistia tem limites materiais que decorrem da própria ordem constitucional. O próprio STF assentou o controle de constitucionalidade dos institutos da clemência ou graça constitucional nas ADPFs 964, 965, 966 e 967, relatora: ministra Rosa Weber.

A Constituição de 1988 definiu normas de criminalização obrigatória como no artigo 5º, inciso XLIII  em que “a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia  a prática da tortura , o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem” e no inciso XLIV “constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático”.

Mesmo argumentos jurídicos convencionalistas ou criterialistas chegariam à conclusão de que a tentativa de golpe de Estado envolveu a ação de grupo armado contra o Estado democrático de Direito. Como desconsiderar que militares tentaram emboscar com armamento pesado o presidente da República e o vice-presidente eleitos e ministro do Supremo como revelaram as investigações? Desse modo, a Constituição determina a criminalização dessa hipótese na forma do inciso XLIV, impossibilitando, da mesma forma que o inciso XLIII, a anistia. Os artigos 359-L e 359-M do CP nada mais são do que o desenvolvimento legislativo do mandato de criminalização expresso do inciso XLIV do artigo 5º.

Também, por uma questão de princípio, a anistia proposta para a tentativa de golpe de Estado é uma ofensa à Constituição. Além dos limites explícitos citados acima, toda a estrutura constitucional conta com limites implícitos. Naturalmente, a construção de um Estado democrático de Direito não pode conviver com atos que tentem abolir a própria democracia. Nesse ponto, se até mesmo o Poder Constituinte Derivado conta com limites materiais implícitos ao seu poder de reformar a Constituição como na hipótese de eventual reforma do artigo 60, §4º, com ainda mais razão o legislador ordinário [4].

Não se admite, portanto, que o poder constituído avance sobre a obra do poder constituinte, sob pena de subversão da própria ordem constitucional. A anistia, tal qual proposta, seria em absoluto uma fraude constitucional, uma vez que não se admite que a própria ordem democrática e constitucional seja utiliza contra ela mesma.

Da forma como proposta, o projeto de anistia é também uma ofensa à separação de poderes. Ela pretende, através de mecanismos coercitivos e até criminalizadores, substituir o papel do Poder Judiciário na fixação das penas e julgamento do caso concreto. O Congresso se constituiria, assim, em órgão revisor do STF na medida em que busca rever a interpretação dada pela corte aos atos e participações concretas dos réus, além de avançar na competência jurisdicional de fixação de penas e individualização das condutas criminais. Além disso, a pretensão se de constituir em revisão das sentenças encontra limites na cláusula do devido processo legal, já que a própria ordem jurídico-processual prevê os recursos e até revisão criminal para a pretensão de modificação da condenação ou revisão das penas aplicadas [5].

Por último, há grave desvio de finalidade na proposição da anistia. É que o projeto de anistia proposto foi endossado pelos próprios beneficiados de eventual anistia e que, ao fim e ao cabo, foram aqueles que atentaram contra a ordem democrática. É um princípio jurídico importante aquele de que ninguém poderá se beneficiar da sua própria torpeza. Tal princípio se aplica com ainda mais vigor quando se trata daqueles que ofenderam os princípios constitucionais.

Exceção constitucional

Caso sejam concedidas anistias aos atos violadores da própria Constituição e da ordem democrática, isso significaria que os eventuais beneficiados estão acima da própria ordem constitucional. Enquanto todos devem respeito à ordem democrático-constitucional, os anistiados contariam com autorização para violar a Constituição [6].

No limite, a anistia revelaria uma hipótese de exceção constitucional. O Poder Legislativo, como órgão constituído na e pela Constituição, acabaria transgredindo a si próprio. Restaria a pergunta: o que restará do Poder Legislativo e da Constituição? Seria um claro recado de que quaisquer ofensas vindouras sejam permitidas, inclusive até mesmo ofensas ao próprio Poder Legislativo.

O Congresso está disposto a ser fechado tal como em 1964 e 1937? Cumpre lembrar que o que o mantém aberto é a Constituição de 1988. O risco de rompimento com a ordem constitucional por meio da aprovação da anistia aos atentados contra a democracia seria realizado, de forma paradoxal, pelo próprio Poder Legislativo e se constituiria um primeiro e decisivo passo para que atos autoritários como o fechamento do Congresso sejam tolerados. A decisão da sua própria subsistência cabe, agora em primeiro lugar, ao próprio Poder Legislativo. Como diz Lenio Streck, a aprovação da anistia seria um “hara-kiri (suicídio) institucional” [7].


[1] Justificativa disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2474708&filename=Tramitacao-PL%202858/2022, acesso em 15 de abril de 2025.

[2] Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2474708&filename=SBT+1+CCJC+%3D>+PL+2858/2022, acesso em 16 de abril de 2025.

[3] Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2025/04/06/quaest-maioria-contra-a-anistia-ataques-de-8-1.ghtml, acesso em 17 de abril de 2025.

[4] Nesse sentido, ver a explicação de José Luiz Quadros de Magalhães em: https://soundcloud.com/radioufmgeducativa/quadros-criticos-como-projeto-de-lei-da-anistia-aos-envolvidos-no-8-de-janeiro-viola-a-constituicao, acesso em 16 de abril de 2025.

[5] MELLO, Celso de. Os profanadores do regime democrático e a impossibilidade constitucional de anistiá-los. Disponível em: https://iclnoticias.com.br/celso-de-mello-anistia-transgride-constituicao/, acesso em 17 de abril de 2025.

[6] STRECK, Lenio. Por que anistia para golpistas é inconstitucional. O Globo, 8 de abril de 2025. Disponível em: https://oglobo.globo.com/opiniao/artigos/coluna/2025/04/por-que-anistia-para-golpistas-e-inconstitucional.ghtml, acesso em 20 de abril de 2025.

[7] Disponível em: https://revistaforum.com.br/politica/2025/4/16/lenio-streck-diz-que-anistia-golpe-na-tentativa-de-golpe-177584.html, acesso em 21 de abril de 2025.

Artigo publicado originalmente no Consultor Jurídico.

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