“As coisas tangíveis tornam-se insensíveis à palma da mão. Mas as coisas findas
Carlos Drummond de Andrade
muito mais que lindas, essas ficarão.”
O talentoso compositor, poeta, músico, cantor e artista Caetano Veloso é também um grande contador de casos. É uma delícia ouvi-lo falar com sua métrica e voz inconfundíveis. Tão bom quanto escutar a sua irmã, a diva Maria Bethânia, recitar Fernando Pessoa. Impagável. Caetano conta que, uma vez, chegou na casa de Caymmi e esse disse que tinha algo genial para mostrar. Foi levado a um quarto onde tinha uma cadeira na frente de um ventilador. Ele não entendeu e perguntou o que era. Ouviu como resposta que Caymmi havia colocado ali aquela cadeira para nela se sentar com o ventilador ligado virado para ele. Assim, ele pensava a vida e deixava a criatividade tomar conta. Penso que esse fato e esse diálogo só poderiam ter acontecido na Bahia, terra abençoada.
Escrevo isso para refletir sobre como o mundo de hoje exige das pessoas um ritmo que afasta a reflexão e impõe uma velocidade que impede, de certa forma, o tempo certo da maturação das ideias e até dos afetos. Cansa o mundo de notícias 24 horas, o número chocante dos grupos de WhatsApp e as respostas que, muitas vezes, têm que se antecipar às perguntas. Os detalhes da vida, esses que compõem um certo caleidoscópio e que nos define, ficam à beira do caminho. Sem tempo para nós mesmos, deixamos de ter tempo para os outros. Como nos lembrava o matuto Manoel de Barros: “Ando muito completo de vazios”.
E a vida segue, independente, o seu curso inexorável. Sempre que viajo bem cedo e vou para o aeroporto em Brasília, pego um trajeto que mostra uma imagem, para mim, tocante. E que me faz pensar na finitude da vida.
Em uma reta em frente a um conjunto de casas, eu passava, há anos, por um grupo de senhores que fazia uma caminhada matinal. Conhecia vários deles. Andavam com desenvoltura e conversavam avidamente. Era sempre o mesmo grupo, perto de 10 amigos. Ao longo do tempo, os cabelos foram rareando e ficando brancos, os ombros curvados, os passos mais lentos e cuidadosos. Mas, principalmente, e que me dava certa angústia, foram diminuindo o número dos companheiros de caminhada.
Agora, restam 2 que andam bem vagarosamente, como que querendo segurar o tempo, impedindo-o de passar. Bem curvados, eles parecem que olham para o chão, talvez à procura dos passos dos que já se foram. Essa imagem é um quadro que dói em mim. É sobre a inevitabilidade do transcorrer do tempo.
Hoje passei outra vez correndo. Uma São Paulo densa e tensa me espera. Como sempre, ela não sabe de mim, eu é que corro para os inúmeros compromissos que me aguardam na cidade indecifrável. Só que, desta, vez não estou indo trabalhar, como sempre.
Acompanho uma pessoa amada para ir fazer exames de saúde. Talvez por isso, tenha sentido uma vontade incontrolável de descer do carro e me juntar aos 2 companheiros que resistem à caminhada matutina. Na vã esperança de sermos 3 a andar com passos trôpegos, mas amigos. Com a ilusão de, ao mudar, pela primeira vez, o número para uma quantidade maior de caminhantes, pudesse influenciar no tempo.
Senti-me com uma vontade incontrolável de voltar à roda da vida. Para um tempo no qual a gente não corria tanto e se permitia mais. Não desci e nem tive coragem de olhar para trás, com medo de ver aquilo que está para acontecer: um companheiro sozinho a resistir em nome do velho grupo.
É passada a hora de parar de correr tanto e sentar em uma cadeira em frente a um ventilador. Ou talvez seja a hora de me mudar para a Bahia.
Lembrando-nos da nossa Clarice Lispector: “Eu escrevo como se fosse para salvar a vida de alguém. Provavelmente a minha própria vida.”
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