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Capítulos finais

Por Juliano Medeiros

A guerra contra o governo da extrema-direita é mais longa do que se imagina e não será resolvida com uma “Operação Valquíria”

O impasse que o Brasil vive está prestes a ser rompido. Quando Bolsonaro estabilizou os índices de apoio a seu governo em torno dos 30%, o país passou a viver uma situação nova: a rejeição ao governo e sua aprovação eram equivalentes. Entre os polos de rejeição/aprovação havia uma maioria que via aspectos positivos e negativos no governo, considerando a gestão de Bolsonaro “regular”. Com isso, a extrema-direita não conseguia ter a maioria necessária na sociedade e no Congresso Nacional para fazer avançar sua agenda por completo. A oposição, por sua vez, não tinha força social ou parlamentar para barrar todos os ataques do governo, uma vez que sua capacidade de mobilização não era suficiente para exercer a pressão necessária sobre o chamado “Centrão” em todos os temas. Essa era a fotografia da luta política no Brasil pré-pandemia.

Acontece que a chegada do coronavírus alterou esse quadro. Revelada a absoluta falta de capacidade de Bolsonaro para lidar com a mais grave crise vivida pelo país nas últimas décadas, a aprovação a seu governo começou a cair. Entre os que consideravam o governo regular, um expressivo contingente passou a considerá-lo ruim ou péssimo. Três pesquisas publicadas nos últimos dias atestam essa tendência. No levantamento da XP Investimentos de 29 de maio, a rejeição ao governo é quase o dobro de sua aprovação: 49% a 26%. Na pesquisa Datafolha, publicada nesta semana, Bolsonaro mantém os 33% de apoio de levantamentos anteriores, mas o percentual de desaprovação ao seu governo chega a 43%. Na pesquisa Atlas, a pior para o presidente, sua rejeição chega a 58% contra apenas 23% de aprovação. Nessa sondagem, aliás, os que consideram o governo regular foram reduzidos a apenas 19%.

Todas as pesquisas mostram o mesmo fenômeno, que pode ser descrito sucintamente em três sentenças: a) o governo Bolsonaro está perdendo apoio, com parte das pessoas que o consideram ótimo/bom migrando para uma avaliação mais crítica (regular); b) a migração dos que consideravam o governo regular para uma avaliação de que ele é ruim/péssimo é expressiva (no mínimo, 10%); c) apesar disso, esse processo está se dando num ritmo ainda lento, o que permite que Bolsonaro desfrute de impressionante aprovação que varia, a depender do instituto, entre 23% e 33%.

Bala de prata

Não há, portanto, uma “bala de prata” que vá resolver o impasse. Alguns analistas mais apressados chegaram a considerar que a saída de Mandetta do Ministério da Saúde poderia ter um efeito devastador sobre o governo. Não teve. Depois, afirmaram que a demissão de Sérgio Moro faria o apoio ao governo se liquefazer. Não fez. Tudo isso mostra que a guerra contra o governo da extrema-direita é mais longa do que se imagina e não será resolvida com uma “Operação Valquíria”. Será no campo de batalha, reunindo forças sociais e políticas, aprofundando as contradições entre as diferentes frações das classes dominantes, apontando os limites de Bolsonaro na condução da crise, que poderemos vencer o confronto.

A novidade, ao que parece, é que as tensões no “andar de cima” se acirraram. A reunião ministerial divulgada a pedido do ministro Celso de Mello não representou nem de perto o tiro de misericórdia no governo Bolsonaro, mas aprofundou o conflito entre as representações institucionais das classes dominantes. Quando o ministro da Educação afirma que “colocaria todos esses vagabundos na cadeia, começando no STF” acaba forçando uma resposta que a Suprema Corte não queria dar. Quando Ricardo Salles escancara seu plano macabro para a destruição da legislação ambiental no Brasil, divide o setor agrícola: enquanto uma parte publicou anúncio em apoio às pretensões do ministro, os exportadores – mais sensíveis aos humores do mercado lá fora – ficaram furiosos e rejeitaram qualquer associação à agenda de Salles.

O episódio mais emblemático desse confronto se expressou no dia 27 de maio com a operação da Polícia Federal determinada pelo ministro tucano do STF, Alexandre de Moraes, contra várias pessoas ligadas à rede de fake news controlada pelos bolsonaristas. Não se sabe se a operação já estava preparada ou se foi uma resposta de Moraes aos ataques dos ministros bolsonaristas ao STF, mas a reação de Bolsonaro aponta para o aprofundamento da crise. Ao afirmar que a Polícia Federal não cumprirá ordens judiciais “absurdas”, o presidente ameaça o Supremo com a insubordinação das forças de segurança federais – PF, Guarda Nacional e até mesmo as Forças Armadas –, o que significaria uma ruptura institucional, ou, em bom português, um golpe.

Militares

Esse seria um possível desfecho para o impasse. Mas falta combinar com os militares, que teriam que assumir todo o desgaste de uma ruptura sem os “bônus” de efetivamente governar o país, que seguiria sob comando do capitão. Também há o fator econômico: um golpe para salvar negócios que vão bem sempre são assimiláveis pelo mercado. Mas o que dizer de um golpe dado por um presidente que tem se tornado um mau aliado, em razão do elevado grau de fanatismo de boa parte de seu governo?

Uma outra forma de romper o impasse, todos sabemos, é pelas saídas constitucionais disponíveis: a renúncia, a cassação da chapa, o afastamento pelo STF ou o impeachment. Está mais do que evidente, inclusive pelas afirmações que fez na fatídica reunião ministerial, que Bolsonaro não irá renunciar. Da mesma forma, é difícil imaginar o ministro Luís Roberto Barroso, novo presidente do TSE, “matando no peito” a cassação da chapa, apesar dos abundantes crimes eleitorais fartamente comprovados cometidos pela chapa Bolsonaro/Mourão.

O afastamento pelo STF, por sua vez, dependeria de denúncia oferecida pelo Procurador Geral da República, Augusto Aras. Até agora, porém, ele tem se transformado num exemplar guardião dos interesses da família Bolsonaro e só mudaria de posição, ao que tudo indica, quando o governo já estivesse mesmo por um fio. O impeachment, por sua vez, é a mais “política” das saídas previstas. Depende de um entendimento entre a oposição e os partidos que representam as classes dominantes no Congresso Nacional. A oposição, como todos sabem, já tomou sua decisão e apoiará qualquer processo de impeachment que seja instalado. A bola, portanto, está com os partidos do chamado “Centrão”.

Sabendo disso, Bolsonaro está cooptando gradualmente parte dessas legendas fisiológicas que não sabem sobreviver sem parasitar a máquina do Estado. Está jogando o jogo que Dilma havia jogado em 2015, quando promoveu reforma ministerial que entregou nada menos que sete pastas ao PMDB. Mas o campo de batalha dos acordos por espaço no aparato estatal é apenas um entre vários outros. Muitos desses partidos que ora negociam com Bolsonaro são representantes de setores econômicos que começam a ver o presidente como disfuncional, na medida em que enfrenta dificuldades para fazer avançar as reformas e arrasta o país para uma crise sem precedentes ao não apoiar as ações de isolamento social implantadas por prefeitos e governadores. Mas se as classes dominantes têm o controle econômico e político do processo, porque não deram ainda o comando para a instalação de um novo pedido de impeachment? Porque para isso é preciso arrastar Mourão – e com eles, os militares – para um acordo. Isso significa um day after negociado que leve o país até 2022. Ou seja, enquanto não houver absoluta segurança sobre a transição no pós-Bolsonaro, as elites deixarão o capitão sangrar.

Mas e a oposição? Felizmente, a tese de deixar o capitão minguar até 2022 foi definitivamente superada. Com o impeachment protocolado na semana passada pelos últimos partidos que ainda resistiam abandonaram de vez seu “pacto Molotov-Ribbentrop”. Falou mais alto o senso de responsabilidade. Hoje toda a oposição defende a saída imediata de Bolsonaro. Isso é muito positivo. No entanto, com a impossibilidade de realizar manifestações de rua, a oposição perde seu principal capital, que é a luta de massas. É isso que a diferencia de parte dos partidos do centrão e de outros atores que travam a guerra de diferentes trincheiras. Além disso, a dissintonia entre algumas das principais lideranças da oposição cumpre papel muito negativo, porque enfraquece a capacidade de construção de um polo de enfrentamento alternativo àquele capitaneado hoje pelo consórcio Globo/Maia/Dória & Cia. Isso tudo, nós sabemos, é movido por mais que mesquinhos interesses eleitorais: está em jogo quem liderará a oposição de esquerda no pós-lulismo.

A notícia boa, portanto, é que o impasse que dividia a sociedade brasileira em três partes está se rompendo, com o aumento do isolamento de Bolsonaro. A notícia má é que esse processo é lento e está sendo conduzido, hoje, por forças sociais e políticas alheias aos interesses dos trabalhadores e trabalhadoras. Os desdobramentos da crise sanitária nas próximas semanas, o embate com o STF no inquérito das fake news e as negociações com o Centrão serão capítulos decisivos dessa guerra. O “Dia D” se aproxima. Estejamos prontos.

Juliano Medeiros é historiador, cientista político e presidente nacional do PSOL.

Artigo originalmente publicado no Le Monde Diplomatique Brasil.

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