No fim de semana passado o filho zero 02, Carlos Bolsonaro, vereador pelo Rio de Janeiro, postou uma mensagem no Twiter que surpreendeu e assustou, divulgando um pensamento dizendo que “por meios democráticos não haverá mudanças rápidas desejadas no país”. A natureza do pensamento do segundo filho em ordem cronológica do Presidente da República não surpreenderia nem ensejaria reações dos diversos setores da vida política brasileira, se não fosse quem ele é. Pronunciamentos desse tipo são ditos cotidianamente em todos os cantos do território nacional contudo, considerando o autor, tornou-se importante pelo fato que poderia ter sido um recado do presidente transmitido por seu filho.
Imediatamente as lideranças políticas contestaram e criticaram a manifestação pelos temores que esse tipo de comportamento traz à memória coletiva do povo brasileiro e, mais ainda, pela natureza militar do atual Presidente da República que, em diversas ocasiões, enalteceu a ditadura civil-militar de 1964. Entre as respostas formuladas pelas lideranças a que mais me chamou a atenção foi do atual presidente interino, general Hamilton Mourão. Mourão não somente contraditou o filho do presidente defendendo a democracia e seus valores, mas interpretou e enumerou suas bases elencando seus elementos fundamentais. Segundo ele, democracia é um dos pilares da civilização ocidental e arrematou dizendo que “são pilares da civilização ocidental. Vou repetir para vocês: pacto de gerações, democracia, capitalismo e sociedade civil forte. Sem isso, a civilização ocidental não existe”.
A resposta do presidente interino ao comentário do filho do presidente vai muito além de uma mera defesa da democracia, ele define quais são os componentes da civilização ocidental. Contudo, a fala do presidente interino, ao invés de trazer tranquilidade defendendo a democracia apresenta novos pontos que intranquilizam. Qual o momento histórico que o presidente interino se refere ao termo ocidente? Se nos atermos ao início da civilização judaico-cristã, ocidente era toda extensão territorial do mapa à esquerda da atual Turquia, cujo próprio país tem terras em dois continentes, Europa e Ásia. Essa identificação geográfica perdurou até o fim da Segunda Guerra Mundial, portanto, por quase dois mil anos. Será que o presidente interino estava se referindo ao feudalismo europeu, que foi a base econômica e política da Europa por 1.000 anos, desde o fim do Império Romano, como sua inspiração da civilização ocidental? Ou será que o presidente interino estava se referindo à civilização ocidental ao domínio mouro da Península Ibérica iniciado em 726 da Era Cristã e que perdurou por 700 anos até a expulsão pelos reis católicos?
A blague que fazemos da declaração do presidente interino serve para demonstrar que civilização não é algo estabelecido a priori nem algo formulado de caráter dogmático e estático, civilização é algo construído em cima de diversas fases históricas, culturais e políticas ao longo dos séculos. Porém, o mais preocupante da declaração do presidente interino é a natureza da definição de civilização ocidental.
Evidente, como tudo que perpassa esse governo há um caráter nostálgico, o presidente interino está se referindo ao termo adotado pela Guerra Fria e pelos organismos de segurança norte-americano estabelecendo que civilização ocidental é tudo que está à esquerda do mapa a partir da antiga divisão da Alemanha do pós-guerra, sendo nessa atmosfera que ele inclui o capitalismo como um dos pilares dessa civilização. O caráter nostálgico da declaração do presidente e, consequentemente autoritário da sua fala, estabelece um parâmetro para esse tipo de civilização defendido por ele. Ao incluir o capitalismo entre um dos elementos dessa civilização ele, obviamente, está excluindo seu antagônico, o socialismo.
Para ele, socialismo não é integrante da civilização ocidental, mesmo que seja adotado pela população de uma país através de eleições transparentes. Desta forma, Cuba não é parte da civilização ocidental, apesar de geograficamente estar à esquerda no mapa; a França também não estaria nessa civilização quando elegeu Mitterrand em 1981 o primeiro presidente socialista e o reelegeu em 1988, tendo uma das suas primeiras medidas a estatização de parte do setor bancário.
O mais preocupante na declaração autoritária do presidente interino é não permitir que os povos decidam quais as relações de produção desejam para suas vidas e para seu país. O presidente interino não compreende e pior, acredita, que o capitalismo não é uma construção político-histórica do desenvolvimento e do processo civilizatório humano, quer dizer , ele crê que o capitalismo é algo inerente à vida humana, como se fosse algo inato, inamovível; portanto, fora dele, não há vida.
Esse tipo de interpretação por parte do presidente interino desnuda as ameaças autoritárias que setores das forças armadas fazem a cada inciativa do STF em julgar os pedidos da defesa do ex-presidente Lula para libertá-lo. A libertação de Lula, para o presidente interino, é inadmissível pois ameaçaria o capitalismo como elemento incluído na sua interpretação de civilização ocidental, considerando a crença que esses setores, nostalgicamente, têm da posição política do Partido dos Trabalhadores, mesmo após 13 anos de governos petistas cujos governos, Lula e Dilma, os setores empresariais mais ganharam nas últimas décadas.
Mas, na realidade, a fala do presidente interino defendendo o capitalismo na sua interpretação da civilização ocidental não tem absolutamente nada a ver com o receio de um governo petista e pela hipotética implementação do socialismo. O capitalismo, como construção política-econômica da civilização, desde sua gradativa implementação a partir do século XVIII passou por diversas fases. Qual capitalismo o presidente interino defende? Aquele do século XIX com crianças menores de 14 anos trabalhando 20 horas por dia? Ou o capitalismo intervencionista de Keynes? Aquele capitalismo monopolista que levou a civilização ocidental, que ele tanto defende, a duas guerras mundiais ou o capitalismo social democrata dos países nórdicos, onde encontramos tributações dos mais ricos em 50% de suas rendas? Será que ele defende o capitalismo protecionista americano de Trump com as taxações sobre produtos importados ou o atual capitalismo neoliberal brasileiro com a entrega de suas riquezas, com o desmonte de seu parque industrial, com a venda de suas terras e, por último, mas não menos importante, a redução dos gastos sociais em educação e saúde e o congelamento do salário mínimo, em um país historicamente carente a em profundo abandono de sua população encravada nas diversas favelas existentes nas grandes cidades?
A burguesia brasileira e seus sustentáculos, as forças armadas e, atualmente no estágio político que vivemos, o sistema de Justiça, construíram uma sociedade para poucos mantida à força, repressão, assassinatos, corrupção sistêmica e exclusão da maior parte da sua população, muito bem retratados no filme Bacurau. Bacurau, cidade que não está no mapa cujo nome tem diversos significados no país, tem uma estética semelhante a Mad Max. Bacurau está encravada no sertão onde a ausência de água é crônica e usada politicamente pelo prefeito. Em Mad Max a luta é pelo petróleo e as gangs que aterrorizam são motoqueiros, iguais aos motoqueiros que em Bacurau assassinam a população. Em Mad Max as gangs vivem em lugarejos construídos com enormes muros, em Bacurau a gang que defenderá a cidade também vive dentro desses muros. Em Mad Max a estética é pós civilização semelhante a de Bacurau com sua crônica miséria sertaneja com caixões à beira da estrada, essa mesma civilização ocidental defendida pelo presidente interino. Fora os diversos clichês do filme, Bacurau nos apresenta um alternativa a essa civilização neoliberal defendida pelo presidente interino, uma utopia: uma sociedade auto governada, possível em uma cidade de poucos mais de 1.000 habitantes.
Mas como fica só no clichê, do bem contra o mal representado por mercenários americanos que matam pelo mero prazer em matar, Bacurau não avança na sua crítica a esse capitalismo ocidental, tão defendido pelo presidente interino. Mas o clichê mais importante em Bacurau é a capacidade mobilizadora de sua população em se auto defender dos ataques assassinos dos mercenários estrangeiros e brasileiros na preservação do tipo de sociedade escolhida, capacidade, presidente interino, inserida e permitida na democracia ocidental defendida pelo senhor.
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