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Construção do Direito leva tempo e não se satisfaz com pensamento único

Por Thiago Crepaldi e Danilo Vital

Contrariar entendimentos consolidados de um órgão colegiado pode incomodar, mas não chegar a ponto de haver um pedido de punição por seus integrantes.  Foi o que aconteceu com a desembargadora Kenarik Boujikian ao ser promovida ao Tribunal de Justiça de São Paulo. Depois de 28 anos de magistratura, ela foi alvo de processo administrativo movido por um colega no próprio tribunal por ter posto em liberdade réus que estavam em prisão provisória há mais tempo do que o previsto na condenação que nem havia transitado em julgado.

Kenarik foi absolvida no CNJ, por 10 votos a um, mas chegou a ser censurada pelo TJ por “ofender o princípio da colegialidade”, já que as decisões foram monocráticas. Desde o primeiro momento, a desembargadora vê com clareza que a punição não teve nada a ver com a forma de suas decisões, mas o conteúdo: o tribunal queria enquadrá-la dentro da jurisprudência “mão pesada” da 7ª Câmara Criminal, que ela compunha como juíza substituta em segundo grau.

“Se eu tiver que pensar de uma outra forma, seja qual for o lugar, eu posso pensar, e não é possível que alguém possa fazer pressão de modo que eu saia da seção porque eu penso diferente”, critica Kenarik, em entrevista ao Anuário da Justiça São Paulo.

Nascida na Síria, a desembargadora integra a magistratura desde 1989 e é integrante da Associações dos Juízes pela Democracia (AJD). Por isso, é conhecida por suas posições garantistas, que ela considera nada mais serem do que aplicar a Constituição, as leis e a jurisprudência dos tribunais superiores — embora seus colegas acreditem que isso significa contribuir com certa sensação de impunidade.

Era o que se via na 7ª Criminal, uma das mais rígidas do TJ-SP. Kenarik sempre se recusou a ressalvar entendimento próprio para se curvar ao entendimento dos demais que, antigos no colegiado, firmaram sua jurisprudência. Para a desembargadora, isso seria tolher o direito da defesa de recorrer da decisão. Foi essa independência jurídica que, na visão dela, foi afetada com a pena de censura.

Promovida a desembargadora em 2017, Kenarik agora integra a 2ª Câmara Criminal do TJ de São Paulo, após rápida passagem pela 15ª Câmara Criminal, e depois de um período na Seção de Direito Privado da corte.

Leia a entrevista 

ConJur — Por que a senhora disse que a promoção a desembargadora por merecimento e por unanimidade foi simbólica?
Kenarik Boujikian — 
Porque eu tinha acabado de ser punida pelo próprio tribunal com a pena de censura, o que considero grave, porque foi uma forma de recriminar uma visão do mundo e do Direito.

ConJur  — Censura é impedir a promoção. A punição te atrapalharia?
Kenarik Boujikian —
Não, porque logo em seguida abriram duas vagas, uma delas por antiguidade e eu, fatalmente, seria promovida. Mas todo o processo foi muito simbólico. Especialmente porque o tribunal não pôde mais manter uma pena em relação a mim pelo fato de eu ter expedido alvarás de soltura de forma monocrática. Havia a manifestação de alguns desembargadores da câmara para que cessasse a designação onde eu atuava, porque eu não acompanhava a forma de eles decidirem.

ConJur — Era uma reação esperada ali, não?
Kenarik Boujikian — 
Confesso que fiquei chocada quando fiquei sabendo, pois é inadmissível que uma designação de juiz funcione dessa forma e que juiz possa sofrer pressão, interna ou externa da magistratura. Não é possível que alguém possa fazer pressão sobre o meu modo de pensar para que eu saia da seção. Nunca abri mão e nunca abrirei mão do modo de pensar, e não é por uma questão pessoal, é por uma obrigação que tenho nas minhas mãos, que recebi quando assumi o cargo de magistrada.

ConJur  — Quando a senhora percebeu que tudo tinha acabado?
Kenarik Boujikian —
 Para mim, acabou no dia do julgamento do CNJ. Mas houve lições para todos. O processo administrativo teve duas coisas importantes. Uma foi a reflexão sobre a questão da independência judicial – as palavras do conselheiros do CNJ foram fortes e todos fizeram referência a esse princípio. E a partir do momento que a censura foi afastada pelo CNJ, o que fica? Nada. Sou uma juíza séria e responsável com o meu trabalho, tenho competência e tenho histórico para ser promovida por unanimidade. O julgamento foi muito importante também em relação a outra ponto, que é a questão prisional, que é um grave problema social. De algum modo, o processo trouxe a oportunidade de mais um debate. Muitas pessoas se revoltaram com a punição, pois foge à compreensão  humana que um juiz possa ser condenado porque expediu alvará de soltura em caso que entendeu devido. Ficam as lições.

ConJur — A senhora teve apoio também de colegas magistrados?
Kenarik Boujikian  —
 Não só de magistrados, mas também de advogados, defensores, promotores. Recebi apoio de muitas pessoas de muitos lugares. Foi uma verdadeira avalanche de cartas, telefonemas, mensagens que chegaram a mim. É doloroso responder a um processo administrativo, depois de tantos anos na magistratura, onde estou desde 1989. Você fica muito exposto e isto é muito duro. E, é claro, a razão era chocante. Recebi apoio de pessoas que eu não conheço, de juristas, apoio que vinham de outros estados, de entidades, organizações, de ONGs que conhecem a minha trajetória. Pouquíssimas pessoas sabiam do processo, inicialmente. Tudo veio à tona em razão do parecer que foi feito pro bono pelo Mauricio Zanoide e publicado pela ConJur. As pessoas leram o parecer e a partir daí foi que nem rastilho de pólvora. Em termos pessoais, receber solidariedade foi algo fantástico. Foi o sentimento mais bonito que vivi nesses tempos. É muito forte ver e sentir que não se está sozinho.

ConJur — Como foi a volta à Seção Criminal do TJ-SP?
Kenarik Boujikian —
 Quando se é juiz, você tem que estar pronto para trabalhar em qualquer área do Direito. Mas inevitavelmente você tem a preferência pessoal, aquilo que você gostou mais de estudar, a sua vivência. Na magistratura, eu fui da área criminal quase toda a minha vida. Se eu sei alguma coisa, o pouco que sei é da área criminal, é minha matéria predileta, então foi muito bom ter voltado. Em termos de democracia, acho que é uma retomada do que foi interrompido. A gente precisa saber lidar com as diferenças.

ConJur — Nessa volta à Seção, a senhora foi designada para a 15ª Câmara e logo mudou para a 2ª Câmara. Foi uma questão ideológica?
Kenarik Boujikian —
 Quando assumi o cargo de desembargadora, eu tive a possibilidade de escolher, pois tinha uma vaga em cada uma das seções. A do crime era na 15ª, para onde fui. Depois é que surgiu uma vaga na 2ª Câmara. Foi uma opção minha, não existe nenhuma outra conotação senão um desejo meu de ir para essa câmara. Ninguém me pressionou e nem sugeriu, e os que me conhecem sabem que não sou sujeita a pressões. Considerei especialmente a efetividade das decisões e o volume do trabalho, de processos.

ConJur — Há cadeiras com acervo bem grande.
Kenarik Boujikian —
 Sim, mas não é pelo acervo. Pensei no trabalho que ia gerar na 15ª Câmara Criminal. Logo eu percebi, e muitos já tinham dito que a câmara não tinha tanto o meu perfil, vamos dizer assim, do modo de pensar o Direito Penal e o Processo Penal. O problema não é só você. É criar um volume significativo para os outros, porque se eu dou os meus 180 votos, os outros vão ter que fazer mais 180 ou quase isso, provavelmente, porque não concordarão comigo. Eu levei isso em consideração, porque trabalhar com cerca de 550 processos por mês é muita coisa. Não é que você tem que ter o pensamento igual, mas, minimamente, é preciso ter uma linha de trabalho para que você possa produzir o necessário.

ConJur — Tem menos divergência?
Kenarik Boujikian —
 Hoje existe certa tendência de funcionamento dos tribunais de não ter votos divergentes, mas a gente tem que ir com cuidado com essa história. Não acho correto como premissa. Você não precisa concordar com tudo.

ConJur — Senão o julgamento colegiado perde o sentido.
Kenarik Boujikian — 
Exatamente. Mas é conveniente ter. minimamente, algumas tendências. Não vejo problema em ser minoritária. Fui minoritária minha vida inteira como juíza de primeira instância em muitos temas como progressão em crime hediondo, regime semiaberto ou aberto para roubo, liberdade provisoria para tráfico, reconhecimento do crime de bagatela e muitos mais. Eu não tinha problema algum que reformassem minha sentença. E isso não mudou minha forma de pensar. E nem na segunda instância isso aconteceu, e não acontecerá, porque sobretudo tem que existir a questão dos princípios. O que é necessário na atuação em segunda instância é saber lidar com as diferenças, respeitar o pensamento do outro.

Conjur –— Foi esse o problema na 7ª Câmara, não?
Kenarik Boukinian — 
Havia muita divergência na 7ª Criminal. Na época eu era juíza substituta. Tenho até um levantamento dos processos com essas divergências. Mas infelizmente alguns não se conformavam com o meu modo de pensar e decidir. Alguns desembargadores escreverem que não deveria permanecer na câmara porque penso diferente. Isto é muito complicado. É grave.

ConJur — Depois da instauração do processo administrativo, a senhora ficou um tempo na 12ª Câmara de Direito Privado. Foi uma “geladeira”?
Kenarik Boujikian —
 Para mim, acabou por ser um aprendizado. Comecei do zero. Mas foi muito interessante, porque vi no conjunto dos processos civis como as relações sociais estão deterioradas. Há processo para tudo, por qualquer coisa, o Judiciário servindo para atender determinados setores. Consegui enxergar o Judiciário atuando como “cobrador de luxo” ao analisar os maiores litigantes e números dos processos que temos. A minha ida para o civil teve muito aprendizado.

ConJur — O pedido para sua remoção e o processo administrativo correram juntos?
Kenarik Boujikian —
 Não. O documento com o pedido foi anterior e assinado por quatro desembargadores que disseram que não queriam que eu continuasse com a designação em razão de não pensar da mesma forma que eles, o que eu acho um absurdo porque nenhum juiz é obrigado a pensar igual a outro. O processo administrativo referente aos alvarás teve um só desembargador representante e foi protocolado poucos meses depois daquele documento.

ConJur — Um juiz substituto que está para ser promovido, que chega ao Tribunal, fica preso à jurisprudência da câmara?
Kenarik Boujikian —
 Temos que ter um sistema e uma estrutura em que isso sequer seja cogitável. É preciso ter critérios para a designação de juiz substituto em segundo grau e também de juízes auxiliares. E critérios pressupõem que sejam prévios. Não me importa quais sejam, só acho que é preciso ter critérios objetivos para não ocorrer eventualmente de um juiz achar que precisa julgar dessa ou daquela forma. Ele tem que julgar de acordo com a sua interpretação do Direito, calcado na Constituição, de acordo com o juramento que fez ao ingressar na carreira. É inadmissível que alguém queira que um juiz decida de forma igual à sua. Tenho obrigação de estar sempre refletindo sobre a minha posição, em cada processo, e estar aberta para que se faça alteração, se entender que é o caso. Para isso é preciso dar atenção ao que as partes colocam, ao que os demais juízes,  desembargadores e ministros estão refletindo.

ConJur — Do ponto de vista prático, isso cria um problema, não cria? Em câmaras em que os integrantes estão alinhados, o trabalho flui. Só que isso também cria posições discrepantes dentro do mesmo tribunal.
Kenarik Boujikian —
 O sistema tem essa previsão: a existência de pensamentos divergentes. É por isso que temos o  julgamento estendido e os embargos infringentes, por exemplo. O Direito é uma construção. Muitos anos atrás, quando eu era juíza, eu defendia que, mesmo para crimes hediondos, era necessário aplicar a progressão do regime de pena, pois havia inconstitucionalidade na lei. Fiquei vencida muito tempo. No Tribunal de Justiça, a maioria das câmaras reformava a minha decisão, mas algumas começaram a entender que essa posição era correta. Isso aconteceu em todo o Brasil. Demorou muito tempo até que o Supremo decidiu pela inconstitucionalidade da lei. A construção do Direito não é feita de uma hora para outra e ele não se satisfaz com o pensamento único.

ConJur — E assim a jurisprudência oscila.
Kenarik Boujikian —
 Existe a oscilação inicial, mas existe uma tendência à consolidação, pois em determinado momento, essa forma de construção faz com que os próprios juízes mudem de posição, pelo menos em sua maioria. No exemplo que falei dos crimes hediondos, primeiro foram os casos individuais em primeira instância, depois nos tribunais, depois no STF, até que, passado um tempo, foi declarada a inconstitucionalidade da lei. E como fruto, tivemos uma nova lei. Portanto, não é uma coisa isolada, de um juiz só que decide, é uma construção coletiva, constante, diária. E é feita não só com juízes, mas com advogados, defensores, promotores. O Supremo não pode chegar numa decisão do nada, de um único processo. Normalmente é esse  processo de construção, em que todos do sistema de justiça estão envolvidos.

ConJur — Por que o TJ de São Paulo é tão rigoroso?
Kenarik Boujikian —
 Não sei dizer a razão, mas sei que é assim.  Pesquisa da FGV já mostrou que o TJ-SP é refratário às posições  consolidadas em matéria penal que são mais benéficas aos réus.

ConJur — Alguns desembargadores dizem que é preciso exercer uma repressão dura porque a criminalidade vem aumentando e os crimes têm ficado mais violentos.
Kenarik Boujikian — É uma forma de pensar com a qual não concordo. É equivocado achar que a condenação e a prisão vão ser solução para o problema geral da criminalidade. Quando eu fiz faculdade, um professor falava que o que importa é não ter impunidade, não é aumentar a pena ou ter pena mais rigorosa, remontando lições do século XVIII,  de Cesare Beccaria. Depois de formada, vi leis mais rigorosas, como a Lei de Drogas e a Lei de Crimes Hediondos. O que aconteceu? Condenamos as pessoas mais duramente. Mas as pessoas passaram a praticar menos crime? É só ver pelos dados do Depen que tivemos aumento. Então é contraditório afirmar que o recrudescimento das penas vai ser uma solução, que a criminalidade diminui. É uma forma de enxergar o funcionamento do sistema penal de modo não condizente com a realidade.

O exemplo da Lei de Crimes Hediondos é muito bom para provar isso, porque muitos que estão hoje atuando no sistema de Justiça viram claramente que nós passamos por aquilo que Beccaria dizia em outro século. A pessoa não vai deixar de praticar o crime porque a pena ficou maior ou o regime mais duro.

ConJur — E como ser garantista sem passar a impressão de se aumentar a impunidade?
Kenarik Boujikian —
 Ser garantista significa que você está cumprindo a função que é obrigatória para o Estado-Judiciário. Em cada processo, em cada ação, temos que utilizar o que é necessário e previsto nas normas nacionais e internacionais para proteção de cada indivíduo contra o Estado. Assim, garantindo um indivíduo, o juiz está protegendo todas as pessoas, toda a comunidade, todo o país e todo o sistema constitucional. Não é contraditório, não há divergência entre ser garantista e condenar alguém. As sensações das pessoas não são o foco do Judiciário. O garantismo não significa que você vai absolver, não significa que você vai aplicar uma pena X ou Y, significa que você vai dar a forma até de condenar protegida pelos princípios constitucionais. Grave é condenar sem garantir os princípios constitucionais.

ConJur — A participação feminina no Judiciário vem aumentando, mas só recentemente entrou na pauta nacional. Como a senhora avalia a situação?
Kenarik Boujikian —
 O histórico aqui do Judiciário paulista mostra que as mulheres começaram a ingressar na magistratura tardiamente, em 1980. A verdade é que as mulheres prestavam concurso e não eram aprovadas pelo fato de serem mulheres, não existe outra justificativa. Não é razoável imaginar que não tivesse nenhuma mulher capaz. Mas o número de mulheres começou a aumentar significativamente depois que o concurso da magistratura  deixou  de identificar os candidatos.  Uma lei estadual obrigou que as provas escritas não fossem mais identificadas. Identificação só na prova oral, porque aí não tem mais jeito. Foi a Associação de Juízes para a Democracia (AJD), da qual eu faço parte, que propôs este mecanismo, para que fosse respeitado o principio da igualdade, da não discriminação.

ConJur — E na progressão da carreira?
Kenarik Boujikian —
 No nosso tribunal, não faz diferença. O critério que é o critério da antiguidade, então vai demorar um tempo para termos muitas mulheres do tribunal, já que elas  demoraram para entrar na magistratura. Eu tomei posse em janeiro de 1989 e fui promovida no ano passado, foram 28 anos. Você passa esse tempo todo para chegar no segundo grau, mas é próprio da carreira, não tem distinção entre homens e mulheres. O que chama atenção são as estruturas de poder e as instituições. Nelas você nunca vê uma mulher. Por exemplo, no órgão especial, são 25 desembargadores. Quantas vezes nós já tivemos mulheres? Nenhuma.

ConJur — A presença feminina no Judiciário influencia no problema do encarceramento feminino?
Kenarik Boujikian —
 Não tem a ver com o fato de ser julgado por homens ou por mulheres. É uma questão de não conseguir enxergar as especificidades das mulheres em relação ao sistema criminal. É preciso entender que há  consequências diferentes da prisão de um homem e de uma mulher. Compreender que, normalmente, a mulher é que assume a chefia da família e, nessas circunstâncias, a prisão dela vai ter uma repercussão social muito grande. Ou seja, é preciso que juízes e juízas tenham maior ciência do significado da prisão feminina e sua repercussão. O juiz tem que ter maior clareza das relações sociais, conhecer melhor a sociedade que vive. Não dá para fazer um julgamento justo, seja ele qual for, sem saber como o Direito vai interferir na vida.

Texto publicado originalmente no Consultor Jurídico.

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