O direito à vacina contra a Covid-19 é um direito extraído diretamente da Constituição, assim como o direito a outras ações e serviços de saúde, pois está expresso em seu texto que “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação” (CF, art. 196, caput, grifo nosso).
O conjunto dessas ações e serviços constituem, também nos termos da Constituição, em seu art. 198, um sistema único de saúde (SUS) que funciona segundo princípios de organização – rede regionalizada e hierarquizada – e de diretrizes: descentralização, integralidade – que abrange a prevenção mediante vacinas, por exemplo –, e participação da comunidade. Daí derivam sua universalidade e gratuidade, características que reunidas tornam o SUS uma das mais engenhosas criações da Constituição de 1988, elaborada a partir da produção teórica e da luta social de milhares de brasileiras e brasileiros nas décadas anteriores. Verdadeira garantia institucional de direitos fundamentais.
A Lei nº 8.080/90 regula e organiza, segundo os princípios constitucionais, o SUS. Do ponto de vista da vigilância epidemiológica (art. 6º, I, “b”), que abrange as ações do sistema para a detecção e prevenção de doenças, estabelece a competência da direção nacional do SUS, exercida pelo Ministério da Saúde, para definir e coordenar o sistema nacional de vigilância epidemiológica (art. 16, III, “c”) e coordenar e participar de suas ações (art. 16, VI). Aos Estados (art. 17, IV, “a”) e Municípios (art. 18, IV, “a”) competem a execução dos serviços. No caso da vacinação, por exemplo, é nos postos de saúde e outros equipamentos municipais e estaduais que as pessoas irão receber a vacina.
Vê-se, pois, que na engenharia do SUS – um sistema único em um Estado federado – as atribuições do sistema estão legalmente definidas, harmonizando-se a atuação dos entes federados.
No caso das vacinas, a decisão sobre quais devem ser incorporadas ao SUS e fornecidas à população deve ser tomada pelos órgãos competentes do Ministério da Saúde, uma vez que estejam registradas pela Anvisa – Agência Nacional de Vigilância Sanitária, órgão integrante do SUS responsável pela vigilância sanitária (art. 6º, I, “a”) na produção de bens e serviços de saúde.
Assim, temos um processo em duas etapas no fornecimento de equipamentos, medicamentos e insumos de saúde pelo SUS, o que inclui as vacinas: na primeira etapa, a Anvisa, nos termos da Lei 9.782/99 e em conformidade com a experiência mundial de outras agências similares, faz um primeiro controle da sua qualidade, atestando que ela é segura, e assim não produzirá um dando maior do que o benefício, e possui algum grau de eficácia, ou seja, produzirá resultados na prevenção ou tratamento da doença. Se aprovada, a Anvisa concede o registro da vacina (art. 7º, IX), o que possibilita, inclusive, sua comercialização no Brasil pelo setor privado.
Na segunda etapa, para que a vacina seja fornecida pelo SUS, é preciso um processo administrativo específico de incorporação conduzido pela CONITEC, que é a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde, criada pela lei nº 12.401 de 28 de abril de 2011.
Nessa segunda etapa será avaliada a efetividade da vacina comparativamente a outras vacinas e tratamentos disponíveis, podendo ser aprofundados os estudos técnicos e científicos sobre ela.
Nesse momento também se avalia uma relação de custo/benefício, considerando os impactos orçamentário ao SUS.
Conforme determina a lei, o “relatório da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS levará em consideração, necessariamente: I – as evidências científicas sobre a eficácia, a acurácia, a efetividade e a segurança do medicamento, produto ou procedimento objeto do processo, acatadas pelo órgão competente para o registro ou a autorização de uso; II – a avaliação econômica comparativa dos benefícios e dos custos em relação às tecnologias já incorporadas…” (§2º do art. 19-Q da Lei nº 8.080/90, acrescido pela Lei nº 12.401/11).
Esse processo de incorporação conduzido pela CONITEC é efetuado com a participação das áreas técnicas respectivas do Ministério da Saúde. Se é um medicamento para tratamento do câncer, por exemplo, deverá ser efetuado em conjunto com a área técnica que cuida das doenças oncológicas, e assim por diante. No caso específico de vacinas, a área técnica responsável é o Programa Nacional de Imunização (PNI), que é quem tem competência para avaliar a situação epidemiológica, o risco, a eficácia, a vulnerabilidade, condições administrativas e as especificidades sociais que indicam o melhor caminho a ser trilhado.
O Programa Nacional de Imunização (PNI), instituído pela Lei nº 6.259/75 e regulado pelo Decreto nº 78.231/76, incorporado ao SUS, constitui um reconhecido programa de Estado, respeitado internacionalmente pelos resultados já alcançados no Brasil. A ele, como estrutura de governança dessa área tão sensível, deve competir a avaliação e as decisões sobre a complexa campanha nacional de vacinação contra a COVID-19, o que passa obviamente sobre as vacinas que deverão compô-la, quem será vacinado em primeiro lugar, em quais regiões, entre outras decisões fundamentais.
Haverá, ainda, um importante debate sobre a obrigatoriedade da vacinação, já que a Lei 6.259/75 estabelece que “Cabe ao Ministério da Saúde a elaboração do Programa Nacional de Imunizações, que definirá as vacinações, inclusive as de caráter obrigatório” (art. 3º) e, mais ainda, a lei especial sobre a emergência decorrente do coronavírus reforça essa possibilidade nos seguintes termos: “Art. 3º Para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional de que trata esta Lei, as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, entre outras, as seguintes medidas: (…) III – determinação de realização compulsória de: (…) d) vacinação e outras medidas profiláticas”.
O que fica evidente, verificado o ordenamento jurídico do SUS, é que as decisões relacionadas ao tema deverão ser tomadas pelos órgãos legais responsáveis a partir de critérios estritamente técnicos e científicos, e considerando a maior finalidade que é a garantia da saúde da população brasileira, direito fundamental previsto na Constituição.
Advirta-se que nesse processo decisório não há espaço para interferência de agentes governamentais estranhos, por mais elevados que estejam na estrutura do Estado brasileiro. Desse modo, não cabe ao Presidente da República manifestar-se sobre qual será a vacina que deverá ser aprovada pela Anvisa e ser incorporada, comprada e fornecida pelo SUS. Ainda mais considerando que tais manifestações possuem um conteúdo xenofóbico, negacionista da ciência, contrário às leis e à Constituição do país, e efetuadas apenas em função de disputas políticas e ideológicas.
Se ficarem apenas no campo da bravata, entrarão para o triste e lamentável repertório dos absurdos proferidos pelo Presidente. Porém, se de alguma forma influenciarem ilegal e negativamente na atuação administrativa, por ação ou omissão, como no caso de atrasos injustificáveis, os órgãos de controle devem agir para evitar prejuízos e responsabilidades devem ser apuradas e punidos os agentes que derem causa. O Presidente da República, nesse caso, se comprovada a ilegalidade cometida, poderá ser punido por crime de responsabilidade previsto na Lei nº 1.079/50, art. 9º, itens 6 e 7 (art. 9º. São crimes de responsabilidade contra a probidade na administração: (…) 6 – Usar de violência ou ameaça contra funcionário público para coagí-lo a proceder ilegalmente, bem como utilizar-se de suborno ou de qualquer outra forma de corrupção para o mesmo fim;7 – proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decôro do cargo).
Espera-se, porém, que os órgãos do Sistema Único de Saúde não considerem as declarações do Presidente e atuem conforme a legalidade em defesa da vida e da saúde das pessoas, encontrando o melhor caminho para que a vacina almejada chegue a todas as brasileira e brasileiros.
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