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Covid-19: limites ao tratamento criminal

Os Decretos estaduais que tratam das medidas emergenciais de enfrentamento do Covid-19 possuem algo em comum: a advertência da aplicação de sanção criminal em caso de descumprimento. Especificamente, a maioria deles invoca o crime de infração de medida sanitária preventiva e o crime de desobediência, respectivamente previstos nos artigos 268 e 330 do Código Penal.

Muito embora possa ser tentador aos vigilantes de plantão testemunharem punições exemplares dos empresários que mantém o funcionamento presencial de atividades não essenciais, de frequentadores das praias, de praticantes de esportes em via pública e, até mesmo, de indivíduos diagnosticados que fogem de instituições de tratamento, nesse período de distanciamento social, não é qualquer inobservância das determinações do poder público que, necessariamente, implicará na aplicação de sanção penal.

No que se refere à infração de medida sanitária preventiva, possuem relevância penal prática mais evidente a infração: i) da prescrição médica ou da determinação de agentes de vigilância para o isolamento domiciliar ou hospitalar de pessoas contaminadas, especialmente aplicada aos indivíduos diagnosticados ou com suspeita de portarem o vírus; ii) da realização de exames e tratamentos por indicação de médicos ou profissionais da saúde; iii) de outras significativas determinações normativas, que de fato ofereça risco de introdução ou propagação da doença. De se advertir que, uma vez que consiste em norma penal em branco, o seu complemento apenas se dá por leis, decretos, regulamentos e portarias emanadas de autoridade competente, bem como por normas individuais e concretas delas decorrentes.

Além disso, é fundamental ser avaliada a incidência dos aspectos objetivo e subjetivo do tipo penal. Objetivamente, é preciso que exista: i) determinação do poder público; ii) que essa seja destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa. Portanto, não é qualquer orientação do poder público que enseja a aplicação do dispositivo, é preciso que haja uma determinação, isto é, uma ordem expressa, com a finalidade de conter ou obstar doença contagiosa. Precisamente por essa razão que não é toda determinação do poder público que enseja a tutela penal, sendo a aplicação do tipo mais restritiva, no sentindo de abranger as infrações mais significativas que coloquem em risco a saúde de um número indeterminado de pessoas, por implicarem na possível introdução ou propagação da doença contagiosa.

Do ponto de vista subjetivo, é punível apenas a título de dolo, devendo o agente descumprir intencionalmente a determinação, tendo conhecimento de que se tratava de medida sanitária preventiva para impedir a introdução ou propagação da doença. Se, porventura, desconhecer a destinação da medida sanitária ou mesmo o caráter contagioso da doença, afasta-se o dolo.
Em se tratando de crime de perigo abstrato, não é necessária a efetiva introdução ou propagação da doença contagiosa, porém deve ser demonstrado que a conduta do agente produziu um potencial resultado ofensivo à saúde pública, bem jurídico tutelado pelo tipo. Caso contrário, haveria violação ao princípio da reserva legal, uma vez que se admitiria que a mera infração da norma administrativa configure delito.

Por sua vez, o crime de desobediência possui incidência subsidiária, não sendo aplicável se o descumprimento à determinação for objeto de sanção de outra norma penal ou se é expressamente aplicável outro tipo de sanção (civil ou administrativa). Além disso, a doutrina e a jurisprudência entendem que a ordem desobedecida deve ser individualizada e transmitida pela autoridade pública diretamente ao particular, seja por escrito, seja verbalmente, sob pena de atipicidade da conduta.
A desobediência pode ser resultado de ato omissivo ou comissivo, mas deve sempre existir a vontade livre e consciente de não obedecer a ordens transmitidas por um agente que sabidamente seja público.

Assim sendo, caberia o crime de desobediência em casos específicos como, por exemplo, o de um empresário que recebe a ordem direta de um agente público para fechar o seu estabelecimento e essa ordem não é cumprida, não existindo outro tipo de sanção menos severa prevista. Ainda assim, em casos envolvendo a Covid-19, poderá ser invocado o princípio da especialidade para atrair a aplicação única do artigo 268 do Código Penal, sob pena de dupla incriminação.

Em ambos os delitos a confusão entre normas conflitantes (municipal, estadual ou federal) pelo agente, poderá afastar ou diminuir a responsabilidade criminal, caso configurado o erro de proibição.

A observância dos limites na aplicação do Direito Penal no contexto da emergência sanitária desencadeada pelo Covid-19, além de coibir abusos, é relevante para a própria formulação de políticas públicas mais realistas para enfrentar a epidemia. É preciso que, logo de início, já se reconheça que o caráter subsidiário e fragmentário do Direito Penal não lhe confere um papel pedagógico. Como sempre, a política da ameaça penal está bem longe de resolver essa e qualquer outra crise.

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