Logo no começo do filme Platoon – que oferece ao público uma visão crítica sobre a guerra do Vietnã –, o soldado Chris Taylor, interpretado por Charlie Sheen, chegado havia pouco ao front, crava: “o inferno é a impossibilidade da razão.”
A frase é atribuída ao próprio Oliver Stone – escritor do roteiro e diretor da produção – e não se trata de uma afirmação de sentidos dados, óbvios, mas de um verdadeiro aforismo, uma síntese de raro potencial esclarecedor em contextos de ruína civilizatória, como é o caso de uma guerra – especialmente nos moldes daquela levada a cabo no Vietnã – ou daquilo que quotidianamente temos experimentado no Brasil.
Desgarrado de uma pura natureza e tendo a linguagem, mais precisamente o acesso a um universo simbólico, como dom compensatório a seu déficit instintual, o sentido – sua assimilação ou construção – passa a ser verdadeira condição de habitabilidade do mundo para o sujeito. A civilização, portanto, nada mais é do que um universo de sentidos que o homem não cessa de tecer para tornar suportável sua existência desnaturada pela linguagem.
E, diferentemente do que se passa na natureza, a constituição de um universo de sentidos complexo como é o humano exige leis que ordenem suas tramas. Aliás, essas leis – e as ordens que criam – são verdadeiras condição de sentido, na medida em que estabelecem distinções que rompem com o que em natureza é indiferenciado, instituindo pontos de referência em que o sujeito estabelece ancoragens na tentativa de se proteger do absurdo de uma realidade indiferente a sua busca por sentido[i].
Nós e nossos sentidos nada dizemos à natureza, que, ao final, sempre prevalece com a morte que impõe a nosso corpo, ainda não havendo filosofia ou ciência capaz de ludibriar nossos limites biologicamente determinados. Sabendo-nos finitos no mundo enquanto sujeitos, resta-nos a linguagem e os sentidos que a partir dela criamos na tentativa de, em alguma medida, instituirmos ordens precárias que nos confiram ao menos uma ilusão de segurança diante da devastação mortífera de um não-sentido sempre iminente. Embora nos possua em vida e morte, habitando-nos no mais profundo íntimo, o Real não cessa de nos escapar, assim como nós não cessamos de persegui-lo a uma distância tão segura quanto nos podem garantir os nomes com que tentamos apreendê-lo em frágeis gaiolas, incapazes de impedir os voos de um absurdo fugidio.
É do absurdo materializado na morte, portanto, que procuramos nos defender quando nos sujeitamos – nos tornamos sujeitos – a leis instituintes das mais diversas ordens, que, a um só tempo, nos igualam e diferenciam, de modo a permitir variadas formas de interação e, logo, a construção de sentidos capazes de conferir alguma estabilidade a nossa existência. A isso se prestam a arte, a gramática, a religião, a ideologia, a ciência, a filosofia, enfim a cultura, enquanto expressão máxima da racionalidade humana, o habitat natural de seres desnaturados pela linguagem.
Essas considerações são suficientes para, no mínimo, indicar o quão devastadoras podem ser as rupturas provocadas em determinadas ordens essenciais à garantia de nosso instável equilíbrio no mundo. O filólogo Victor Klemperer foi sensível a essa suscetibilidade humana ao, em sua obra LTI: a linguagem do Terceiro Reich[ii], apontar a linguagem – base primeira de todas nossas ordenações simbólicas – como o principal meio da dominação nazista sobre os judeus.
Enquanto dependentes da linguagem para sabermos o mundo e para saber-nos no mundo, (re)construindo-o à nossa maneira, segundo nossas mitologias, seu controle (da linguagem, mas também das narrativas a partir dela engendradas) pode equivaler ao controle de nossa realidade. Afinal, somos causa e efeito da palavra[iii], ou, nos dizeres de José Eduardo Agualusa, “assim como nós criamos a língua, também as línguas criam a nós”[iv], de modo que o domínio de seus sentidos podem resultar na manipulação de nossa realidade.
Lewis Carroll bem soube sintetizar essa dinâmica no diálogo a seguir transcrito, estabelecido entre Alice e Humpty Dumpty[v]:
“‘Quando eu uso uma palavra’, disse Humpty Dumpty num tom bastante desdenhoso, ‘ela significa exatamente o que quero que signifique: nem mais nem menos.’
‘A questão é’, disse Alice, ‘se pode fazer as palavras significarem tantas coisas diferentes.’
‘A questão’, disse Humpty Dumpty, ‘é saber quem vai mandar – só isto.’”
Submetida a ordens próprias que transcendem seus usuários para reuni-los em torno de leis comuns – como é o caso da gramática –, certo é que o manejo da linguagem não depende do exclusivo arbítrio do falante. Aliás, os sentidos das palavras – e as regras de uso da linguagem – antecedem os que por elas se expressam, de maneira que não há uma disponibilidade absoluta de seus usos pelos falantes, ainda que resguardada a dimensão da liberdade poética, que não perde de vista as margens da ordem de que se desvia e para a qual pode retornar.
Mas isso em circunstâncias ditas normais, entre os que sabem as regras do jogo e a elas se sujeitam, ainda que em constante conflito, o que se pode definir como um modo neurótico – e democrático, diga-se – de lidar com a Lei. Ocorre que nem sempre é assim, como bem demonstra a história em sua incansável repetição. Não são poucos os episódios em que determinados personagens, tangendo as massas, colocam em risco o precário equilíbrio dessa ordem democrático-neurótica. Eles sabem as regras do jogo, mas mesmo assim…[vi], em nome dos próprios interesses, se apropriam do poder ao ponto de encarnarem a Lei – em suas mais variadas ordens – e impô-la tiranicamente desde um lugar de absoluta exceção, de onde podem melhor dirigir o teatro de sua potestade.
Já estamos, então, em um registro perverso, no qual a Lei é tomada pelo avesso e, de instrumento estabilizador das relações, definidor de referências minimamente seguras e igualadoras, se converte em expressão de um arbítrio que mais facilmente se imporá quanto melhor se acomodar nas subjetividades, a linguagem apresentando-se, então, como o meio mais adequado para esse contrabando, ao melhor estilo Humpty Dumpty. Não foi outra a função da propaganda nazista e não é outra a função das narrativas disseminadas na velocidade e em quantidade absurdas, como o permite a capilaridade horizontalizada das redes sociais.
A partir da manipulação narrativa de afetos como ódio, inveja e ressentimento, a linguagem – em sentido amplo – é esgarçada ao ponto de comportar múltiplos sentidos, inclusive contraditórios[vii]. Afinal, diante da comunhão de feições religiosas possibilitada pela mobilização dos afetos acionados nas narrativas disseminadas – a força da fratria que se faz massa diante de um líder mitificado, de moções e inimigos comuns –, a crítica sucumbe e a racionalidade dá lugar à fé, o juízo de verdade submetendo-se mais à crença em quem a enuncia que à verificação de correspondência do enunciado aos fatos ou ao exame do lugar (de onde) parte a enunciação (do lugar de autoridade garantido pela ciência, por exemplo).
Nesse contexto, ao exemplo do que se passa com a capacidade crítica, a Terra se achata, bastando que o eleito mito insista na citação de um versículo bíblico que trata da verdade[viii] para que todas as conquistas científicas desabem, atingidas pela força de um estelionato narrativo voltado à conversão de pandemias mortais em gripezinhas, ignorância em força, liberdade em escravidão, guerra em paz[ix]. Enfim, dizemos de uma alquimia perversa capaz de transformar os piores vícios em virtudes, a mentira em verdade, de modo a fundar, a partir de uma realidade ao avesso e à maneira de Sade e sua antifilosofia de alcova, uma antirrepública e um antiestado, em que a racionalidade e o sentido colapsam dando lugar a um absurdo normalizado, verdadeira condição de prevalência da horda.
Assim, se “o inferno é a impossibilidade da razão”, como afirma Oliver Stone pela boca do personagem Chris Taylor, em Platoon, é nele que estamos imersos até o pescoço, à mercê do mais baixo charlatanismo, de taumaturgos ungidos por deuses empreendedores de si mesmos, cultuados no altar do sucesso pessoal, intranscendentes, cujos desígnios são capazes de tornar dispensáveis até mesmo os piores demônios.
[i] O Real lacaniano.
[ii] Rio de Janeiro: Contraponto, 2009.
[iii] Aqui, metaforizando o Simbólico.
[iv] Milagrário pessoal: apologia das varandas, dos quintais e da língua portuguesa, seguida de uma breve refutação da morte. Rio de Janeiro: Língua Geral, 2010. p. 72.
[v] Aventuras de Alice no País das Maravilhas; Através do espelho e o que Alice encontrou por lá. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. p. 245.
[vi] Em alusão à síntese com que Octave Manonni resume a denegação perversa diante da Lei: “eu sei, mas mesmo assim…”.
[vii] O que nos remete ao duplipensar, de George Orwell, em seu 1984 (São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2005).
[viii] João 8: 32: “E conhecerão a verdade, e a verdade os libertará.”
[ix] Com referência ao lema do Partido, no já citado 1984: “ignorância é força, liberdade é escravidão, guerra é paz”.
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