Por Rodrigo Haidar
O aniversário de 39 anos do advogado Luís Guilherme Vieira foi inesquecível. Não pela comemoração. A conversa embalada por moderados tragos da roda de amigos reunidos habitualmente pelo carioca bonachão deu lugar a um happy hour diferente, que começou com esculachos em rede nacional e terminou no icônico Máscara Negra, prédio que abrigou a sede da Polícia Federal em Brasília até o ano passado. Ele chegou ao prédio no final da tarde, conduzido pela Polícia Federal desde o Senado, de onde havia saído preso junto com seu cliente, o ex-presidente do Banco Central Francisco Lopes.
A voz de prisão foi dada pelo presidente da CPI do Sistema Financeiro, senador Bello Parga (PFL-MA), depois que Vieira e o advogado José Gerardo Grossi aconselharam seu cliente a não assinar o termo de compromisso de testemunha para depor à comissão. Chico Lopes, como era chamado, foi convocado na condição de testemunha, mas era, de fato, investigado. Nos jornais daquele 26 de abril de 1999, Vieira e Grossi defendiam seu direito de fazer apartes e de orientar seu cliente durante o depoimento. Esse fato, hoje banal, tirava os parlamentares do sério.
A senadora Emília Fernandes (PDT-RS) chegou a pedir que não se permitisse a presença de Luís Guilherme Vieira na CPI, após ler um trecho de entrevista ao jornal O Globo em que o advogado dizia esperar respeito dos senadores em relação ao seu cliente. O pedido para expulsar o advogado foi rejeitado por orientação da assessoria jurídica do Senado, mas Bello Parga afirmou: “Os advogados podem permanecer no recinto, mas sem contato de orientação à testemunha”. A senadora Heloísa Helena (PT-AL) também se revoltou com o trabalho da defesa: “O advogado não pode intervir”. O senador Roberto Freire (PPS-PE) acusou a defesa de querer “criar um incidente” ao orientar Chico Lopes e Antonio Carlos Magalhães (PFL-BA) recomendou ao depoente que assinasse o termo, com a ressalva: “Se quiser, ouça seus advogados, mas eles não podem intrometer-se na comissão”.
Como advogado não é bibelô, Vieira seguiu orientando Chico Lopes a não assinar o termo e, dada a voz de prisão a seu cliente, levantou-se e pediu para fazer um esclarecimento. O que irritou ainda mais os senadores. “O senhor não vai falar!”, ouviu-se. “Recolha-se o advogado também, senhor presidente”, alguém disse. Trechos da sessão e da prisão podem ser vistos no site da TV Senado. Outros tempos, em que senadores podiam fumar em locais fechados — como faz Roberto Freire ao final deste vídeo — e não respeitavam de forma ampla as prerrogativas de advogados e de acusados em CPIs.
Enquanto Vieira e Lopes seguiam para a Polícia Federal, Grossi, que deixou a CPI minutos antes, se dirigia ao Supremo Tribunal Federal para ajuizar o Habeas Corpus para garantir a liberdade de seu cliente, com o argumento de que ele era, na verdade, investigado e, assim, sua recusa de assinar o termo de compromisso próprio de testemunhas jamais poderia gerar uma prisão. Os advogados, já antevendo a confusão, tinham, cada um, uma cópia do HC em suas respectivas pastas.
Na Polícia Federal, o delegado se recusou a materializar a ordem de prisão contra Vieira, formalizando-a somente em desfavor de Chico Lopes — conhecia melhor do que os parlamentares as prerrogativas da advocacia. No Supremo, o ministro Sepúlveda Pertence concedeu o HC, em parte.
“Não importa que, na CPI — que tem poderes de instrução, mas nenhum poder de processar nem de julgar —, a rigor não haja acusados: a garantia contra a autoincriminação se estende a qualquer indagação por autoridade pública de cuja resposta possa advir a imputação ao declarante de prática de crime”, escreveu o ministro. E decidiu que Lopes, se novamente convocado, teria a obrigação de depor, mas também o direito de não responder às questões que, em sua visão, pudessem prejudicá-lo.
Começava ali a ser pavimentado com uma camada mais grossa de revestimento o caminho que trouxe os direitos de depoentes em CPIs e a garantia do exercício da advocacia nas comissões até a realidade de hoje, em que o excepcional é quando parlamentares desrespeitam direitos de testemunhas, investigados e advogados.
Essa realidade é perfeitamente observada na frase do presidente da CPI da Covid, senador Omar Aziz (PSD-AM): “Não serei carcereiro!”. A declaração foi feita em 12 de maio passado, quando ele se recusou a dar voz de prisão ao ex-secretário de Comunicação da Presidência da República, Fábio Wajngarten, por mentir à comissão. No lugar de prendê-lo, a CPI enviou ao Ministério Público do Distrito Federal uma representação para que o ex-funcionário do governo Jair Bolsonaro seja investigado e processado por falso testemunho.
A atitude de Aziz é um avanço, analisada por qualquer ângulo. Do ponto de vista técnico, garante urbanidade e respeito pleno às garantias de uma testemunha, seja ela quem for. Do ponto de vista pragmático, é melhor que o depoimento continue para que o objetivo de uma CPI seja atingido. Quando é preso, o depoente é levado a prestar depoimento perante a Polícia Federal e, em seguida, liberado. Ou seja, na prática, o resultado é uma sessão que não conseguiu ouvir ninguém. Bom para o espetáculo; ruim para a justiça.
“Teje presa!”
Luís Guilherme Vieira não foi o primeiro advogado preso em pleno exercício de sua função por uma CPI. Seu caso ganhou maior relevância porque as sessões já eram transmitidas pela TV Senado, nascida em 5 de fevereiro de 1996. Dois anos antes, em 3 de fevereiro de 1994, a advogada Eny Moreira, que trabalhou com Sobral Pinto e foi uma profissional muito atuante em defesa de presos políticos durante a ditadura militar, foi presa por determinação dos deputados que compunham a CPI da Previdência.
Durante uma acareação entre dois acusados de cometer fraudes contra a Previdência Social, um deles seu cliente, Eny Moreira insistiu em seu direito de fazer apartes para orientar o depoente que representava. Por isso, recebeu voz de prisão. O então presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, José Roberto Batochio, saiu em defesa da advogada e foi ao Ministério Público com representação por crime de abuso de autoridade contra os parlamentares.
No dia seguinte, em artigo publicado no jornal Folha de S.Paulo, Luís Francisco Carvalho Filho escreveu: “A prisão da advogada cobre de vergonha o Congresso Nacional: Eny Moreira teria usado a palavra para denunciar a coação imposta ao seu cliente. É coação mesmo. Ela cumpriu um dever profissional. Sua prisão lembra os tempos do regime militar”. No Jornal do Brasil, o advogado Antonio Carlos Barandier também bateu forte: “Hoje é a violência contra a advogada. Amanhã os inquisidores e a multiplicidade de dispositivos repressivos poderão voltar-se contra os intelectuais, os dissidentes e oposicionistas, clamando pela ordem política e social, a paz dos cemitérios. O AI-5 era menos hipócrita e mais econômico”.
O caso de Eny Moreira, contudo, não teve desdobramentos profundos. Cinco anos depois, com Vieira, Grossi e Chico Lopes, as repercussões foram mais duradouras. Talvez porque transmitidas ao vivo em uma das mais barulhentas CPIs da época. Ou porque o país já estivesse um pouco mais maduro. Fato é que a partir dali se iniciou uma saudável disputa de forças que forjou o modelo de CPIs que, hoje, assistimos em todos os canais.
Atualmente, o direito do depoente de ser assistido por um advogado e a prerrogativa do advogado de orientar seu cliente não precisa sequer de salvo-conduto do Supremo. É algo corriqueiro nas comissões — e não apenas nelas, mas na maior parte dos órgãos públicos. Direito nascido da lei, mas tornado efetivo em, literalmente, dezenas de decisões do STF.
Comissões parlamentares de inquérito têm poderes de investigação próprios de autoridades judiciais. Significa dizer que uma CPI pode requisitar informações e documentos da Administração Pública direta e indireta, determinar buscas e apreensões, quebrar sigilos bancários, fiscais e de dados, deslocar-se a qualquer ponto do país para empreender investigações e fazer audiências públicas e acareações e, ainda, requisitar servidores de outros poderes da República para auxiliar em suas investigações.
Podem muito, mas não tudo. E suas ações se sujeitam a controle judicial. Para que direitos fundamentais sejam afastados, as comissões devem fundamentar suas decisões, exatamente como os magistrados são obrigados a justificar seus atos. Em um julgamento de 2001, por exemplo, o Supremo Tribunal Federal julgou ilegal a quebra dos sigilos fiscal e bancário da Federação Gaúcha de Futebol, determinada pela CPI do Futebol. De acordo com o ministro Celso de Mello, relator do mandado de segurança impetrado pelos gaúchos, a decisão de uma CPI tem de ser necessariamente fundamentada.
“A Comissão Parlamentar de Inquérito — que dispõe de competência constitucional para ordenar a quebra de sigilo bancário, fiscal e telefônico das pessoas sob investigação do Poder Legislativo — somente poderá praticar tal ato, que se reveste de gravíssimas consequências, se justificar, de modo adequado, e sempre mediante indicação concreta de fatos específicos, a necessidade de adoção dessa medida excepcional”, escreveu o ministro Celso.
Outras decisões do Supremo ao longo dos últimos 20 anos foram ajustando os poderes das comissões e, de certo modo, moldando também a forma como os parlamentares agem quando interrogam seus depoentes. Junto com a compreensão de que direitos fundamentais são inalienáveis, veio a percepção de que o espetáculo nem sempre joga a favor dos trabalhos das comissões.
Limites definidos
Já se decidiu que o poder de quebrar sigilos pertence à CPI, e não a seus membros individualmente. Isso significa que as determinações apenas têm validade jurídica quando, além de justificadas, são aprovadas pela maioria absoluta dos membros que compõem a comissão de investigação legislativa. Também é jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal Federal que depoentes devem ser tratados com urbanidade, respeito e, de forma alguma, serem submetidos a tratamento desumano.
A esse respeito, o ministro Ayres Britto decidiu, em 2006, que a Constituição Federal veda a submissão de testemunha, investigado ou pessoa acusada a situações de menosprezo. “Quero dizer, situações desrespeitosas, humilhantes ou, por qualquer forma, atentatórias da integridade física, psicológica e moral de qualquer depoente”, afirmou o ministro ao decidir Habeas Corpus impetrado pela empresária Nelma Kodama, proprietária da agência de câmbio, convocada a depor à CPI dos Bingos.
O mesmo Supremo decidiu que a gravação e a transmissão em tempo real de depoimentos em CPIs não provocam, por si só, danos à honra dos depoentes, nem podem ser entendidos como atos que colocam investigados em situação vexatória. As sessões de CPIs não apenas podem, como devem ser públicas. E não caracteriza abuso de exposição de imagem pessoal sua transmissão pelos meios de comunicação. Ou seja, o respeito é exigido, mas a publicidade e a transparência dos atos também. Este último precedente foi firmado pelo STF a partir do pedido de Law Kin Chong, investigado pela CPI da Pirataria em 2004.
Na ocasião, o ministro Cezar Peluso chegou a conceder a liminar pedida pelo empresário, que impedia a divulgação de sua imagem durante a audiência pública da comissão. A decisão provocou ataques de deputados federais ao Supremo. O relator da CPI, Josias Quintal (PMDB-RJ), chegou a dizer que não aceitaria interferência de outro poder nos trabalhos da comissão. O plenário do STF derrubou a liminar de Peluso por entender que prevalecia, no caso, o princípio da publicidade.
Mas a divergência em relação ao mérito da discussão não impediu os ministros de defender Cezar Peluso e reforçar em seus votos que parlamentares, quando investidos de funções e poderes próprios de autoridades judiciais, têm o dever de se submeter a todas as obrigações que dizem respeito à garantia de direitos fundamentais, tal qual fazem juízes e membros do Ministério Público. Logo, não há discussão interna corporis quando estão em jogo princípios como o do direito à ampla defesa ou da inviolabilidade da intimidade.
Pouco mais de um ano depois do enfrentamento entre o Legislativo e o Judiciário na CPI da Pirataria, os dois poderes voltaram a se estranhar por conta do processo de cassação do ex-deputado federal José Dirceu (PT-SP). Durante toda a tramitação do procedimento disciplinar contra o ex-ministro da Casa Civil de Lula no Conselho de Ética da Câmara dos Deputados, os advogados José Luís de Oliveira Lima e Rodrigo Dall’Acqua recorreram ao STF para fazer valer o direito à ampla defesa de seu cliente.
Em entrevista concedida à ConJur em dezembro de 2005, Juca, como Oliveira Lima é tratado pelos colegas, falou sobre a construção do trabalho que incomodou os parlamentares, mas abriu caminho para o entendimento de que, não importa o foro, garantias constitucionais existem para que sejam respeitadas. A atuação de Juca e Dall’Acqua representou um marco em processos disciplinares e, consequentemente, na definição de direitos de parlamentares processados por seus pares. Houve várias decisões do STF — até o relatório final do Conselho teve de ser refeito por determinação judicial — antes da decisão de cassar o mandato de José Dirceu, em 1º de dezembro de 2005. Não se tratava de CPI, mas o trabalho acabou tendo reflexos também na condução das comissões de investigação.
Silêncio e culpa
No jogo político, é natural que senadores e deputados ataquem seus adversários que, convocados para depor em CPIs, recorrem ao Supremo Tribunal Federal em busca de salvo-conduto para que seus direitos fundamentais sejam respeitados. Depois que o ministro Ricardo Lewandowski concedeu Habeas Corpus para que o ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello não respondesse às perguntas que pudessem incriminá-lo, muitos senadores foram à imprensa para dizer que o silêncio significaria admissão de culpa.
O argumento faz parte do jogo de cena que envolve toda e qualquer CPI, mas nada é mais equivocado. O direito de não produzir provas contra si mesmo e calar quando sua resposta pode incriminá-lo é uma defesa à disposição de qualquer cidadão contra o hipertrofiado poder de constrangimento do Estado. E, muitas vezes, o feitiço se vira contra o feiticeiro. Assim que a Advocacia-Geral da União impetrou o pedido de HC de Pazuello no Supremo, correu pelas redes sociais e virou notícia a postagem do ministro da Secretaria-Geral da Presidência da República, Onyx Lorenzoni, que, em 2015, disse que “só bandido” vai à Justiça para garantir o direito de não produzir prova contra si mesmo.
De acordo com notícia publicada pelo UOL, na postagem, que data de 11 de maio de 2015, Lorenzoni comentava sobre a oitiva de Nestor Cerveró à CPI da Petrobras. À época, o hoje ministro era deputado federal pelo Rio Grande do Sul e fazia oposição ao governo de Dilma Rousseff (PT). “Cerveró ouviu de mim que em CPI quem se vale do direito ‘ficar calado’ tem coisa a esconder. Só bandido usa disso”, escreveu.
Hoje, o que se assiste — ao menos até agora — nas sessões da CPI da Pandemia é algo bem diferente. O direito ao silêncio não é apenas respeitado, mas, por vezes, até sugerido por parlamentares. Pazuello mentiu de forma desabrida sobre não ter sido comunicado do fato de os Estados Unidos terem oferecido ao Brasil um avião para transportar oxigênio para o Amazonas quando pessoas estavam morrendo sufocadas por falta do suprimento.
O que desmente o ex-ministro da Saúde é um documento expedido pelo próprio Ministério que ele chefiou. Um advogado da União que acompanhava o ex-ministro, então, se levantou e foi até o presidente Omar Aziz pedir que seu cliente pudesse ficar em silêncio. E ouviu do senador: “Ótimo! Melhor ele ficar em silêncio do que se comprometer cada vez mais. A explicação dele não bate com a explicação do Ministério”. Deixar que acusados calem é um dever — isso os parlamentares aprenderam. Já permitir que mentirosos falem pode ser uma boa estratégia.
Publicado originalmente no Consultor Jurídico.
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