Por Lenio Luiz Streck e Márcio Chaer
O idioma jurídico costuma confundir o povo. Expressões como “incompetência”, “trânsito em julgado” ou “pedido de vista” atrapalham o raciocínio. Sem falar em “dívida ativa”, que significa o contrário da expressão ou “delegacia de roubo a bancos”, que dispensa apresentações. E os embargos? Desembargador é quem (des)embarga? Enfiteuse é ofensa? Ou “você é um aluvião”? O depositário é fiel ou infiel? A esposa dele sabe? E será que cabe candidato a vice em “eleição de cabecel”? Mas, cuidado, muito cuidado, porque “in rebus sic stantibus”.
A coisa fica feia quando se diz que um suposto criminoso foi solto por falta de imparcialidade do juiz ou porque a “denúncia” contra ele era anônima. Difícil explicar que essas metáforas ou alegorias escondem coisas horrorosas. Por vezes, um certo jus-proxenetismo.
O dono da padaria que ouviu dizer que Lula foi inocentado porque Sergio Moro faltou com o princípio da imparcialidade vai comparar a falha do juiz à infração de uma regra de etiqueta. Algo como ter colocado o guardanapo à mesa do lado errado. E dirá: quanta frescura. Quanta bobagem. E espalhará a notícia de que o juiz fez o certo; o garçom é que errou.
Não é bem assim. A guilda de Curitiba intrujou o processo. Escondeu provas. Mentiu para os tribunais. O juiz mandou grampear advogados. Os procuradores tentaram, mediante uma “foundation” (em inglês é mais chique), amealhar quantias bilionárias. Fabricou notícias fraudulentas para aterrorizar desembargadores e ministros, bastando, para tanto, ver, agora, a reação do STJ.
De abusos em abusos, somando e dividindo, dá empate com muitos réus, mesmo jogando no estádio errado (a CBF, quer dizer, o STF, já disse que o jogo não poderia ter sido disputado em Curitiba e que o juiz era de fora).
O enredo é de todos conhecido: autoridades (um juiz, secundado por procuradores) foram absolutamente parciais (agora incompetentes), o que quer dizer “tomaram lado” e usaram o direito para perseguir um adversário. Escolheram entre o diabo e o coisa ruim, disseram.
O Supremo Tribunal Federal, finalmente, disse que o árbitro do jogo marcou pênalti no meio do campo. Mas o dono da padaria continua dizendo que o problema está no guardanapo.
Mas não é só o padeiro. Jornalistas e jornaleiros dizem que isso tudo foi firula. Moro está certo, sustentam. Ele “apenas” quebrou algumas regras de “etiqueta”. Afinal, qual é o problema de o juiz mandar escutar, à socapa, escritórios de advocacia? Coisa mais “normal” do mundo. Qual é o “problema” de o juiz descumprir a lei das interceptações? É só uma leizinha mequetrefe. Enfim, foi apenas um guardanapo fora do lugar. No que atrapalha o butim?
Pior de tudo é que, se o garçom — que colocou o guardanapo no lugar errado — fosse “o da defesa”, o jantar teria sido interditado e o pobre copeiro já estaria no ergástulo (que quer dizer “cadeia”).
É disso que se trata, pois não? O resto é narrativa. Você pode ter uma opinião sobre o tema, mas, por favor, não pode negar os fatos. Sim, fatos ainda existem, embora para algumas pessoas, em especial jornalistas da grande mídia, o ídolo seja Nietzsche (embora não saibam quem é o gajo), para quem “fatos não existem; só existem interpretações”. Logo, é possível mentir com ares de verdade. É possível dizer: ah, Moro foi parcial, mas… Aí é que está. O parcial, em direito, é fatal. Não tem nenhuma desculpa que venha depois desse “mas”.
O que está na mesa, então? Simples. Pode um agente público fazer o que Moro fez? O Supremo já disse que não pode. Claro: você pode não acreditar nos fatos e nem no que o STF disse sobre os fatos.
O grande problema é que parcela considerável das pessoas — e nisso se inclui gente (de)formada em direito — continua dizendo (ou pensando) que os processos contra Lula foram bloqueados por causa de “firulas”. Foi o “guardanapo”. É o fator “dono da padaria”.
A questão é: em Direito (você pode não gostar), uma garantia fundamental é a do juiz natural. Engraçado é que todas as pessoas, do padeiro ao procurador, querem as garantias quando estão sob a mira da justiça — Dallagnol, por exemplo, disse que a firula chamada “prescrição” era o câncer da impunidade e, pasmem, agarrou-se a essa coisa maldita.
Não, não, juiz natural não é contrário de juiz artificial. Quer dizer, até é. Se você cometeu um delito em Santos, não pode ser julgado em Recife.
Pior ainda, se é que pode haver algo mais grave que a incompetência, é um juiz parcial. O que é um juiz parcial? Pense no futebol. Ele pode decidir o jogo. De vários modos. Quem conhece um pouco do ludopedismo sabe o que um árbitro parcial pode fazer. Mais grave ainda é se depois do jogo o juiz for assumir um cargo na diretoria do time que venceu, quer dizer, do time que foi beneficiado pelo referido apitador.
É isso. Vamos separar o joio do trigo. Não transformemos a discussão sobre a suspeição de Moro em uma questão de “almoço de família”.
A suspeição de Moro é algo tão evidente como a ineficiência dessas máscaras de papel vendidas em bancas de jornal e padarias. Ou você acredita que basta usar qualquer máscara que estará protegido? Bom, se sim, nem dá para discutir a suspeição de Moro. São coisas excludentes.
Enquanto isso, você pode escolher: acredita no padeiro ou acredita na ciência do direito? Acredita na cloroquina ou na vacina? Se acredita na cloroquina, quer dizer, no Moro, então você pode sofrer um “aluvião”. Ou uma “enfiteuse”. Ou você pode ser embargado. Ou sofrer um agravo. De instrumento. Não sabe o que é isso? Pois é. Nós também não sabemos o que é hebefrenismo ou Mononegavirales. São termos médicos. Por isso sempre respeitamos os médicos. Os cientistas. E não os padeiros.
Você concorda com isso? Sim? Então acredite aqui na gente. Parcialidade é uma doença grave do direito. É como a Covid-19. Não tem remédio. Só vacina. A vacina é a anulação de todas as provas.
OK? Estamos de acordo? Então pare de acreditar no dono da padaria. E nos jornaleiros.
Publicado no Consultor Jurídico.
Deixe um comentário
Seu endereço de e-mail não será publicado. Os campos obrigatórios estão marcados com *