O tema do momento é se Lula vai ser preso ou se vai permanecer solto após o julgamento de seu Habeas Corpus. Despersonificando o problema, preferível pensar que a grande questão é: como o Plenário do Supremo Tribunal Federal interpretará o inciso LVII do caput do artigo 5º da Constituição? A decisão dirá respeito à presunção de inocência de Luiz Inácio Lula da Silva e, consequentemente, sobre a liberdade ou prisão do ex-presidente. Mas o principal resultado desse esperadíssimo julgamento será definir a garantia constitucional da presunção de inocência de todos os brasileiros.
Deixemos o paciente de lado. Eis o que interessa: no Brasil, até quando deve perdurar a presunção de inocência? Ou, de modo mais simples: até quando o acusado é presumido inocente?
Do ponto de vista dinâmico, a Constituição é clara ao estabelecer o marco temporal final da presunção de inocência: “Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória”. Não se trata de uma garantia que se aplica somente até a sentença penal recorrível, ou mesmo até o julgamento em segundo grau de jurisdição.
A despeito da clareza do dispositivo constitucional, somente com mais de duas décadas de atraso o Supremo Tribunal Federal reconheceu, no ano de 2009, ao julgar o Habeas Corpus 84.078, que a presunção de inocência se aplicava até que houvesse uma condenação transitada em julgado. O posicionamento, na prática, impediu a execução provisória da pena, enquanto pendesse qualquer recurso. Ou, para usar uma linguagem processual civil, os recursos especial e extraordinário, a despeito da regra do parágrafo 2º do artigo 27, da Lei 8.030/1990, então vigorante.
Todavia, em julgamento no dia 17 de fevereiro de 2016, o STF, por seu Plenário, ao julgar o Habeas Corpus 126.292/SP, relatado pelo ministro Teori Zavascki, por maioria de votos, considerou que é possível dar início à execução da pena após a confirmação da sentença condenatória em segundo grau. Isso porque, segundo se entendeu, a condenação pela segunda instância encerra a análise de fatos e provas que assentaram a culpa do condenado, o que autoriza o início da execução da pena, ainda que provisoriamente. A decisão restringiu o arco temporal da garantia constitucional do artigo 5º, caput, inciso LVII, da Constituição, que estabelece como marco final da presunção de inocência o “trânsito em julgado da sentença penal condenatória”, e não “até a condenação em segundo grau”!
A diferença prática das duas posições é que, segundo o posicionamento atual do STF, nega-se efeito suspensivo ao recurso especial e extraordinário. Logo, os tribunais de Justiça e tribunais regionais federais, em caso de acórdão condenatório, determinam a expedição de mandado de prisão, como efeito da condenação a ser provisoriamente executada. Não se trata de prisão preventiva, mas de prisão como espécie de pena privativa de liberdade.
Pode-se indagar: seria da essência da presunção de inocência que tal estado do acusado vigore temporalmente até que a condenação transite em julgado? A resposta é, seguramente, negativa. O que se assegura, por exemplo, no plano dos tratados internacionais de direitos humanos é que o acusado tem o direito de que se presuma sua inocência “enquanto não for legalmente comprovada a sua culpa” (Convenção Americana de Direitos Humanos, artigo 8.2); ou “enquanto a sua culpabilidade não tiver sido legalmente provada” (Convenção Europeia de Direitos Humanos, artigo 6.2); ou, ainda, “até que sua culpabilidade tenha sido legalmente estabelecida” (Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, artigo 14.2). Em todos esses dispositivos, é possível, do ponto de vista hermenêutico, considerar que a “culpa” estará legalmente comprovada, provada ou estabelecida com uma decisão que aprecie o mérito da causa. Isto é, havendo uma sentença condenatória, mesmo que impugnada por meio de recurso, já se terá apreciado a culpa ou a inocência do acusado. Com maior razão, havendo acórdão condenatório em segundo grau, mesmo que antes do trânsito em julgado, a culpa terá sido legalmente provada e estabelecida.
Aliás, é de se observar que algumas Constituições modernas sequer estabelecem o momento final da presunção de inocência. No continente europeu, o artigo 24.2 da Constituição Espanhola de 1978 prevê que “todos têm direito a um Juiz ordinário predeterminado pela lei, à defesa e à assistência de advogado, a serem informados da acusação formulada contra eles, a um processo público sem dilações indevidas e com todas as garantias, a utilizar os meios de prova pertinentes à sua defesa, a não prestar declarações contra si mesmo, a não se confessar culpado e à presunção de inocência”. No mesmo sentido, a Constituição Francesa de 1958 declara adesão aos princípios da Declaração de 1789 que, com já visto, assegura que “o povo francês proclama solenemente sua adesão aos Direitos do Homem e aos princípios de soberania nacional tal como foram definidos na Declaração de 1789, confirmada e completada pelo preâmbulo da Constituição de 1946”, que garante: acusado é considerado inocente até ser declarado culpado. Outros países, contudo, em suas Constituições, garantem a presunção de inocência até o trânsito em julgado da condenação penal. É o caso da Constituição italiana, de 1948, que no artigo 27, comma 2º, assegura: “O imputado não é considerado culpado até a condenação definitiva”. O mesmo conteúdo foi adotado pela Constituição portuguesa, de 1974, no artigo 32.2, que entre as garantias do processo criminal assegura: “Todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa”.
Voltemos à Constituição brasileira. Aliás, não é demais lembrar que o Supremo Tribunal Federal deve interpretar a Constituição da República Federativa do Brasil! É importante saber como é a presunção de inocência nos Estados Unidos ou na França, mas não é essencial para definir o alcance do inciso LVII da cabeça do artigo 5º da nossa Constituição. O constituinte de 1988 seguiu os modelos italiano e português e, dando efetividade máxima ao compromisso do Estado brasileiro com a preservação da dignidade da pessoa humana, reforçou entre nós a garantia da presunção de inocência: estabeleceu como marco temporal final de sua aplicação o momento derradeiro da persecução penal. O acusado tem o direito de que se presuma a sua inocência “até o trânsito em julgado” da sentença penal condenatória. Com a definição clara do momento de cessação do estado de inocência, evitava-se — ou se imaginava que evitaria — discussões sobre se a presunção de inocência estaria garantida: (i) até que estivesse legalmente provada ou comprovada a culpa, significaria apenas o momento final uma sentença condenatória, ainda que recorrível; (ii) ou mesmo até um acórdão em que se julgasse, pela última vez, matéria fática; (iii) ou, finalmente, se só com o trânsito em julgado de uma condenação penal seria destruído o estado de inocente.
Isso, contudo, não foi o bastante para o Supremo Tribunal Federal. Evidente que na organização judiciária nacional cabe ao guardião da Constituição dar a última palavra sobre sua interpretação. A Constituição, contudo, é uma carta escrita pelo constituinte, e não uma folha de papel em branco, a ser preenchida como quiserem os ministros. O Supremo Tribunal Federal pode muito, mas não pode tudo! Nem mesmo aos 11 ministros da cúpula do Poder Judiciário é dado o poder de reinventar conceitos processuais assentados em — literalmente — séculos de estudo e discussão e que integram a dogmática processual. Ser guardião da Constituição não é ser o dono ou tampouco o criador do Direito Processual Penal ou de suas categorias jurídicas. É temerário admitir que o Supremo Tribunal Federal possa “criar” um novo conceito de trânsito em julgado, numa postura solipsista e aspirando ser o marco zero de interpretação dos institutos do Direito. Trânsito em julgado é um conceito assentado ao longo de secular evolução histórica. Diante do texto constitucional, e mesmo sem confundir o enunciado linguístico com a norma, é preciso reconhecer — nem mesmo o Supremo Tribunal Federal está imune a isso — que há limites hermenêuticos insuperáveis para a interpretação de um dispositivo que atribua um direito — qualquer que seja — até o “trânsito em julgado”.
É certo que o trânsito em julgado não se confunde com a coisa julgada, seja ela material ou formal. José Carlos Barbosa Moreira, em conceito do insuperável, lecionava: “Por ‘trânsito em julgado’ entende-se a passagem da sentença da condição de mutável à de imutável. (…) O trânsito em julgado é, pois, fato que marca o início de uma situação jurídica nova, caracterizada pela existência da coisa julgada – formal ou material, conforme o caso”[1]. Há, portanto, e agora nos valendo das palavras de Machado Guimarães, “uma relação lógica de antecedente-a-consequente (não de causa-e-efeito) entre o trânsito em julgado e a coisa julgada”. E concluía: “A decisão trânsita em julgado cria, conforme a natureza da questão decidida, uma das seguintes situações: a) a coisa julgada formal, ou b) a coisa julgada substancial”[2].
Assim, o trânsito em julgado da sentença penal condenatória ocorre no momento em que a sentença ou o acórdão torna-se imutável, surgindo a coisa julgada material. Não há margem exegética para que a expressão seja interpretada, mesmo pelo Supremo Tribunal Federal, no sentido de que o acusado é presumido inocente, até o julgamento condenatório em segunda instância, ainda que interposto recurso extraordinário para o Supremo Tribunal Federal ou recurso especial para o Superior Tribunal de Justiça.
Não é possível, portanto, concordar com a premissa adotada pela maioria dos ministros do Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Habeas Corpus 126.292/SP, e nas decisões posteriores que reafirmaram tal posição no julgamento, também do Plenário, que indeferiu as liminares pleiteadas nas ações declaratórias de constitucionalidade 43 e 44. Na mesma linha, é inaceitável a tese fixada pelo STF reconhecer a repercussão geral no Recurso Extraordinário com Agravo 964.246/SP, nos seguintes termos: “A execução provisória de acórdão penal condenatório proferido em grau recursal, ainda que sujeito a recurso especial ou extraordinário, não compromete o princípio constitucional da presunção de inocência afirmado pelo artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal”[3]. Em apertada síntese, o que se extrai de tais julgados é que a presunção de inocência não vigora mais até “o trânsito em julgado da sentença penal condenatória”, como assegura o inciso LVII do caput do artigo 5º da CF, mas só até “o acórdão condenatório em segundo grau”!
Evidentemente que os ministros, dotados de notório saber jurídico, não desconhecem os conceitos de trânsito em julgado e de coisa julgada. A questão não é de técnica jurídica, mas axiológica. Há uma clara e inconteste escolha de valor em tais decisões acima mencionadas. Como bem explica Maurício Zanoide de Moraes: “Essa visão ‘gradualista’ da presunção de inocência não deixa de esconder um ranço técnico-positivista da ‘presunção de culpa’, pois sob seu argumento está uma ‘certeza’ de que, ao final, a decisão de mérito será condenatória. Desconsiderando a importância da cognição dos tribunais, ‘crê’ que a análise do juízo a quo pela condenação prevalecerá e, portanto, ‘enquanto se espera por um desfecho já esperado’, mantem-se uma pessoa presa ‘provisoriamente’”[4].
O problema, portanto, não é só jurídico, mas ideológico. Em suma, do ponto de vista da ordem jurídica, é correto afirmar que o acusado goza da mesma situação jurídica que um inocente. Esse é um ponto do qual deve partir tanto a lei quanto a jurisprudência de um Estado de Direito no regramento de sua persecução penal. E essa paridade ou igualdade substancial não se altera nos diversos momentos da persecução penal: o investigado, o acusado e o condenado, enquanto pende recurso da sentença condenatória, estão na mesma situação jurídica que o inocente, isto é, quem nunca foi investigado ou processado.
Por tudo isso, a única coisa que se pode desejar, do tão esperado julgamento desta quarta-feira (4/4), é que o Supremo Tribunal Federal restabeleça a Constituição! Que a coisa julgada volte a ser coisa julgada. Que a presunção de inocência volte a ser o que o constituinte quis que ela fosse, e não naquilo que uma maioria eventual de ministros do Supremo Tribunal Federal desejou transformá-la.
E se a reafirmação da presunção de inocência vier a ser tomada por um propósito personalista, para que Lula fique solto? Será de se lamentar que casuísmos ocorram numa corte constitucional. Não deveriam existir, mas, se forem inevitáveis, antes que sejam para respeitar em vez de violar a Constituição. Que venha, portanto, um casuísmo para o bem da Constituição e do processo penal. Terá sido preciso que o risco iminente à liberdade de um ex-presidente da República estivesse presente para que o texto constitucional volte a ser respeitado para todos.
[1] José Carlos Barbosa Moreira, Ainda e sempre a coisa julgada. Direito processual civil (ensaios e pareceres). Rio de Janeiro: Borsoi, 1971, p. 145.
[2] Luiz Machado Guimarães, Preclusão, coisa julgada, efeito preclusivo. Estudo de Direito Processual Civil. Rio de Janeiro-São Paulo: Jurídica e Universitária, 1969, p. 14.
[3] STF, ARE 964.246/SP, Pleno, rel. min. Teori Zavascki, j. 10/11/2016, v.u.
[4] Presunção de inocência no processo penal brasileiro: análise de sua estrutura normativa para a elaboração legislativa e para a decisão judicial. 2008. Tese (livre-docente). Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, cap. IV, p. 483.
Artigo publicado originalmente no Consultor Jurídico.
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