I – A Declaração Universal dos Direitos Humanos e a escravidão no Brasil
A Declaração Universal dos Direitos Humanos é o mais importante documento internacional a respeito dos direitos humanos, forjado pela consciência humana universal, sua força-matriz, de que o direito a proteção da dignidade da pessoa humana representa a maior conquista jurídica e social, aflorada em reação às atrocidades praticadas no bojo da 2ª Guerra Mundial.
Segundo Fábio Konder Comparato, a partir da Declaração Universal dos Direitos Humanos, “podemos ter a certeza histórica de que a humanidade – toda a humanidade – partilha alguns valores comuns, dentre os quais se destaca a dignidade da pessoa humana como razão justificadora dos direitos humanos2”.
O respeito aos direitos humanos pressupõe o fortalecimento do chamado jus cogens, direito das gentes, donde emerge, com sofreguidão, o direito em não ser escravizado, reconhecido por todas as nações como irredutível e irrenunciável, como pertencente ao “mínimo ético universal”.
O art. IV da Declaração Universal dos Direitos Humanos dispõe que: “Ninguém será mantido em escravidão ou servidão, a escravidão e o tráfico de escravos serão proibidos em todas as suas formas”. Há um consenso na comunidade internacional de que a proibição da escravidão é absoluta, imperativa, insuscetível de qualquer relativização ou flexibilização.
Desde a sua criação, em 1919, no Tratado de Versalhes, a Organização Internacional do Trabalho proclama que a Sociedade das Nações tem por objetivo estabelecer a paz universal e que a paz não pode ser fundada senão sobre a base da justiça social e que o trabalho humano não pode ser considerado uma mercadoria. “Para assinalar suas prioridades e atualizar seu enfoque para o século XXI, a OIT formulou o conceito de trabalho decente. Fundamentou-se no reconhecimento de que o trabalho é fonte “de dignidade pessoal, estabilidade familiar, paz na comunidade”, e também de democracias que produzem para as pessoas e crescimento econômico que aumenta as possibilidades de trabalho produtivo e o desenvolvimento das empresas. Considera a OIT que “o emprego produtivo e o trabalho decente são elementos-chave para alcançar a redução da pobreza3”.
Enquanto, o “trabalho em condições análogas à de escravo é a antítese do trabalho decente”4. O maior contraponto ao princípio da dignidade da pessoa humana, “razão justificadora dos direitos humanos”. Significa a extremada sujeição de um ser humano a outro, a precarização do trabalho (dos problemas mais graves da atualidade) em seu mais alto grau de degradação da vida humana. Desafortunadamente, uma prática ainda encontradiça no Brasil, não apenas no meio rural (mais recorrente), como também no urbano, especialmente em locais em que a presença do Estado é rarefeita.
“Os relatos são múltiplos e atingem o Brasil de ponta a ponta: as usinas de açúcar de Pernambuco, as carvoarias de Minas Gerais, as madeireiras do Pará e Amazonas, os imigrantes das indústrias têxteis em São Paulo, expondo, de maneira contundente, a agressão feita ao princípio basilar dos direitos fundamentais: o princípio da dignidade da pessoa humana”5.
Formalmente, o trabalho escravo foi abolido no Brasil em 13 de maio de 1888, com a edição da Lei Áurea, cujo artigo 1º assim decreta de forma peremptória: “É declarada extinta, desde a data desta Lei, a escravidão no Brasil”. Exato 13 de maio de 2015, foi veiculada na mídia a seguinte matéria jornalística (Alexandro Martello, do G1)6:
“Em 20 anos, 50 mil trabalhadores em situação de escravidão foram “salvos”. Balanço foi divulgado no 20º aniversário do Grupo de Fiscalização Móvel. 95% dos trabalhadores são homens e maioria (23,6%) veio do Maranhão. Quase 50 mil trabalhadores em situação análoga à escravidão foram resgatados nos últimos 20 anos, informou o Ministério do Trabalho nesta quarta-feira (13) em cerimônia que celebra o aniversário do Grupo Especial de Fiscalização Móvel (GEFM). O evento aconteceu no mesmo dia em que foi abolida a escravatura no Brasil, em 1888. O GEFM, que atua no combate ao trabalho análogo ao de escravo, é integrado por auditores-fiscais do Trabalho, membros do Ministério Público do Trabalho; delegados e agentes da Polícia Federal, Policiais Rodoviários Federais; por membros da Procuradoria Geral da República e defensores Públicos da União. “Quase 50 mil trabalhadores [em situação análoga à escravidão] foram resgatados e têm de ser oferecidas condições de voltarem a ser trabalhadores. Para evitar que se repita esse ato vergonhoso para a sociedade. Temos de dar e eles condições de educação, conhecimento, de acesso à qualificação profissional, de ter acesso a condições para não precisar mais se humilhar e se submeter à vontade dos poderosos. Temos de ter ferramentas e ações concretas”, disse o ministro do Trabalho, Manoel Dias. Segundo ele, os trabalhadores que são resgatados recebem cursos de qualificação profissional e, também, o seguro-desemprego. “Se você não criar condições para acesso ao conhecimento, ele continua sendo presa fácil para repetição desse crime hediondo”, declarou o ministro.
Em 2016, o Brasil tornou-se o primeiro país condenado pela Corte Interamericana de Diretos Humanos (uma instituição judicial autônoma da Organização dos Estados Americanos – OEA), por tolerar a escravidão em suas formas modernas, responsabilizado internacionalmente por não prevenir a prática de trabalho escravo moderno e de tráfico de pessoas. Segundo assinalado na sentença proferida pela CIDH no caso “Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde vs. Brasil”, a escravidão moderna “se manifesta nos dias de hoje de várias maneiras, mas mantendo certas características essenciais comuns à escravidão tradicional, como o exercício do controle sobre uma pessoa através da coação física ou psicológica de tal forma que implique a perda de sua autonomia individual e a exploração contra sua vontade”. Nesse caso emblemático, 128 trabalhadores foram resgatados durante fiscalizações do Ministério Público do Trabalho na Fazenda Brasil Verde (pertencente ao Grupo Irmãos Quagliato, um dos maiores criadores de gado do país), no sul do Pará, nos anos de 1997 e 2000. Aliciados por “gatos” (como são chamados os responsáveis pelo recrutamento para trabalho análogo à escravidão), os trabalhadores eram forçados a trabalhar jornadas de 12 horas de serviços pesados, com apenas 30 minutos de intervalo, e a comer alimentos insuficientes e de péssima qualidade que, ainda por cima, eram descontados do pagamento. Enredados em situação de servidão por dívida, não recebiam salário algum. Tomavam banho em uma grota junto com os animais utilizando da mesma água que bebiam. Dormiam amontoados em redes sem acesso a eletricidade ou assistência médica, sem instalações sanitárias. Trabalhavam sob ameaças e vigilância armada, com as carteiras de trabalho retidas e os trabalhadores eram ainda obrigados a assinar documentos em branco.
Em pleno século XXI, o trabalho em condições análogas à de escravo ainda se faz desgraçadamente presente no processo produtivo nacional, uma chaga aberta, cancro difícil de ser extirpado do seio da sociedade brasileira.
Como advertido por Joaquim Nabuco no século XIX, o problema não estava na escravatura, mas em sua naturalização: “Essa obra – de reparação, vergonha ou arrependimento, como a queiram chamar – de emancipação dos atuais escravos e seus filhos é apenas a tarefa imediata do abolicionismo. Além desta, há outra maior, a do futuro: a de apagar todos os efeitos de um regime que, há três séculos, é uma espécie de desmoralização e inércia, de servilismo e irresponsabilidade para a casta dos senhores7.”
O sonho de Nabuco com um país rico e desenvolvido, o que só ocorreria com o fim da escravidão e a integração do negro num projeto de nação, ainda não se realizou. Hoje não temos os mercadores de escravos de outrora, transportando, expondo e negociando seus exóticos objetos de trabalho com os coronéis protegidos pelo direito de propriedade, mas a complexidade de um jogo desigual de forças que sutilmente escraviza em pleno século XXI.
No ano em que a Declaração Universal de Direito Humanos completa 70 anos, e Lei Áurea 131, a lógica da escravidão permanece vívida, valendo-se de grilhões que, embora muitas vezes invisíveis, aprisionam ainda mais do que os de aço. “No Brasil, muito se conquistou no que diz respeito aos direitos de liberdade. Muito se avançou na dinâmica de reconhecimento, declaração e efetivação dos direitos fundamentais trabalhistas. Isso é evidente. Mas também é evidente que a prática da escravidão continua a vitimar milhares de pessoas que, presas às amarras da fome, da miséria, do desespero e da desesperança, não enxergam a saída daquela relação de exploração a que são submetidas e que, muitas vezes, equivocadamente a identificam como relação de trabalho8”.
II – O enquadramento jurídico da escravidão moderna
Reduzir alguém à condição análoga à de escravo viola, direta e frontalmente, à dignidade da pessoa humana, cuja proteção constitui fundamento primeiro da República Federativa do Brasil, como proclamado logo no artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal. A escravidão atenta contra os direitos humanos, que são universais, todas as pessoas deles são titulares, pela simples condição de ser pessoa. Portanto, afronta toda a principiologia internacional e constitucional, atinge as raízes da árvore do Direito, abala os alicerces legítimos do edifício jurídico. Reflexamente, afeta todo o sistema protetivo trabalhista e os valores sociais e morais do trabalho, legal e constitucionalmente protegidos.
Como bem destaca Celso Antonio Bandeira de Melo: “violar um princípio é muito mais grave do que transgredir uma norma qualquer. A desatenção a um princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de inconstitucionalidade conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumácia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra9”.
A escravidão é o exemplo mais caricato da “subversão dos valores fundamentais” do sistema jurídico. O “princípio atingido” é o da dignidade da pessoa humana, situado no mais alto escalão, na linguagem kelseniana: a norma hipotética fundamental.
Sob essa perspectiva principiológica e constitucional, considerando-se que se trata de um crime contra a humanidade, que deve ser interpretado o art. 149 do Código Penal, que tipifica como crime a escravidão, nos seguintes termos:
“Art. 149 Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto”.
Pena – reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência.
Parágrafo 1º Nas mesmas penas incorrem quem:
I – cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, como o fim de retê-lo no local de trabalho;
II – mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho.
Parágrafo 2º A pena é aumentada de metade, se o crime é cometido:
I – contra criança ou adolescente
II – por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem”.
Somente na relação jurídica de trabalho em que pode ocorrer a prática do ilícito penal tipificado no dispositivo acima transcrito. A essência de qualquer forma de escravidão é a superexploração da força de trabalho humano. “Sem essa intenção exploratória, o fato social ou ilícito penal poderá ser outro, mas de escravidão não se trata10”.
Evidentemente, não é qualquer violação dos direitos trabalhistas que configura trabalho escravo, conforme obtempera a Ministra Rosa Weber no Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal no Inquérito n. 3.412/AL, cuja elucidativa ementa está assim redigida11:
“EMENTA: PENAL. REDUÇÃO À CONDIÇÃO ANÁLOGA À DE ESCRAVO. ESCRAVIDÃO MODERNA. DESNECESSIDADE DE COAÇÃO DIRETA CONTRA A LIBERDADE DE IR E VIR. DENÚNCIA RECEBIDA. Para configuração do crime do art. 149 do Código Penal, não é necessário que se prove a coação física da liberdade de ir e vir ou mesmo o cerceamento da liberdade de locomoção, bastando a submissão da vítima “a trabalhos forçados ou à jornada exaustiva ou “a condições degradantes de trabalho”, condutas alternativas previstas no tipo penal. A “escravidão moderna” é mais sutil do que a do século XIX e o cerceamento da liberdade pode decorrer de diversos constrangimentos econômicos e não necessariamente físicos. Priva-se alguém de sua liberdade e de sua dignidade tratando-o como coisa e não como pessoa humana, o que pode ser feito não só mediante coação, mas também pela violação intensa e persistente de seus direitos básicos, inclusive do direito do trabalho digno. A violação do direito ao trabalho digno impacta a capacidade da vítima de realizar escolhas segundo a sua livre determinação. Isso também significa “reduzir alguém à condição análoga à de escravo. Não é qualquer violação dos direitos trabalhistas que configura trabalho escravo. Se a violação aos direitos do trabalho é intensa e persistente, se atinge níveis gritantes e se os trabalhadores são submetidos a trabalhos forçados, jornadas exaustivas ou a condições degradantes, é possível, em tese, o enquadramento no crime do art. 149 do Código Penal, pois os trabalhadores estão recebendo o tratamento análogo ao de escravos, sendo privados de sua liberdade e de sua dignidade. Denúncia recebida pela presença dos requisitos legais”
O trabalho escravo contemporâneo compreende não apenas o trabalho forçado, atrelado à restrição da liberdade, como também o trabalho degradante, com restrições à autodeterminação do trabalhador. Nitidamente, há dois bens jurídicos tutelados pelo art. 149: a dignidade e a liberdade, como distinguido na ementa acima reproduzida.
Pensar na escravidão apenas sob a ótica da liberdade de locomoção é pensar na problemática de forma reducionista, atrelada a uma visão antiquada e distorcida da escravidão do século XXI, como sublinham Valena Jacob Chaves e Eduardo Correia Gouveia Filho: “O que certas pessoas (movidas por interesses obtusos) tentam não enxergar é que as condições inerentes à relação de trabalho escravo prendem o trabalhador muito mais que os grilhões de outrora conseguiriam. Desta feita, o trabalho análogo ao de escravo, ao violar os direitos básicos do trabalhador brasileiro, como o direito ao trabalho digno, atinge a capacidade da vítima de realizar escolhas segundo a sua vontade, fazendo com que o trabalhador deixe de ter domínio sobre si mesmo. Por isso que, mesmo sem ter sua liberdade de ir e vir cerceada, por meio da coação física, ainda permanece cativo executando aquele tipo de labor.” “Mais do que a liberdade de locomoção, o tipo penal objetiva tutelar a liberdade de autodeterminação do trabalhador12”
III – A escravidão, o complexo de avestruz e o Direito do Trabalho
O trabalho análogo à escravidão é a violação máxima aos direitos sociais trabalhistas, previstos para assegurar o chamado mínimo existencial, abaixo dois quais não há que se falar em dignidade da pessoa humana. O Direito do Trabalho atende tanto aos interesses do empregado, exatamente ao assegurar o patamar mínimo ético civilizatório, como também os do empregador, por legitimar a própria lógica de exploração do sistema capitalista.
O advento do Direito do Trabalho marca a passagem do modelo do direito do Estado de Direito Liberal para o modelo do direito do Estado de Direito Social. Surgiu para debelar a questão social deflagrada pela chamada revolução industrial, época em que prevalecia a livre contratação e o dogma da autonomia da vontade, transpostos para o âmbito da relação jurídica de emprego, intrinsecamente assimétrica (pressupõe a subordinação jurídica de uma parte em relação a outra), desaguou no trabalho degradante, em condições aviltantes, no cumprimento de jornadas exaustivas e estafantes (16 e, até 18 horas), especialmente das mulheres e dos menores, que constituíam a mão de obra mais barata, em regime análogo ao de escravo.
Arnaldo Sussekind descreve bem o panorama da época da revolução industrial13:
“Explorando e escravizando a massa trabalhadora, a minoria patronal não se preocupava com a condição de vida dos seus empregados: as relações entre patrões e trabalhadores se constituíam dentro dos muros de cada fábrica. Fora desta pressinta estreita, deste pequeno território comum, as duas classes – a rica e a trabalhadora – viviam tão separadas, tão distantes, tão indiferentes, como se habitassem em países distintos ou se achassem divididas por barreiras intransponíveis. Criara-se o contraste flagrante e violento entre o supermundo dos ricos e o inframundo dos pobres.
No seu supermundo, em monopólio absoluto, os ricos avocavam para si todos os favores e todas as benesses da civilização e da cultura: a opulência e as comodidades dos palácios, a fartura transbordante das ucharias, as falas e os encantos da sociabilidade e do mundanismo, as honrarias e os ouropéis das magistraturas do Estado. Em suma: a saúde, o repouso, a tranqüilidade, a paz, o triunfo, a segurança do futuro para si e para os seus.
No seu inframundo repululava a população operária: era toda uma ralé fatigada, sórdida, andrajosa, esgotada pelo trabalho e pela subalimentação; inteiramente afastada das magistraturas do Estado; vivendo em mansardas escuras, carecida dos recursos mais elementares de higiene individual e coletiva; oprimida pela deficiência dos salários; angustiada pela instabilidade do emprego; atormentada pela insegurança do futuro, própria e da prole. Estropiada pelos acidentes sem reparação; abatida pela miséria sem socorro; torturada na desesperança da invalidez e da velhice sem pão, sem abrigo e sem amparo.”
Os abusos do liberalismo clássico cedo se fizeram patentes aos olhos de todos, suscitando súplicas, protestos e reinvindicações coletivas em prol de uma intervenção estatal em matéria de trabalho, como pressuposto indeclinável para a garantia da dignidade da pessoa humana, vez que o trabalhador não despe de sua condição de cidadão quando ingressa no meio ambiente de trabalho. Seguiu-se a máxima de Henri Dominique Lacordaire (de 1848): “Entre os fortes e os fracos, entre os ricos e pobres, entre senhor e servo é a liberdade que oprime e a lei que liberta”.
A valorização do trabalho é um dos princípios cardeais da ordem constitucional brasileira democrática, que completou 30 anos em 2018. Reconhece a Constituição a essencialidade da conduta laborativa como um dos instrumentos mais relevantes de afirmação do ser humano, quer no plano de sua própria individualidade, quer no plano de sua inserção familiar e social.
Ao mesmo tempo, a escravidão implica na violação da concorrência empresarial, como sublinha Luiz Carlos Fabre:14 “não são apenas razões de ordem humanitária que empolgam o combate ao trabalho escravo; são, também, razões de ordem econômica: trata-se de proteger o empregador cumpridor da legislação da concorrência desleal de quem adrede a inobserva.” (…) O enfoque econômico do trabalho escravo é relevante em situações, infelizmente comuns, em que a vítima não enxerga sua condição de rebaixamento, seja em razão de seu arrebatamento psicológico pelo explorador, seja em virtude de condições de vida ainda mais desfavoráveis em sua localidade de origem. Em síntese, no cotidiano do enfrentamento ao trabalho escravo, é comum o trabalhador afirmar que não se sente reduzido a tal condição.
Enquanto, “não deixamos de ser uma sociedade escravocrata”, como assevera, categoricamente, Luciana Aparecida Lotto: “Uma escravocracia camuflada. Hodiernamente, não somente os negros estão relegados à herança da escravidão oficial, como também brancos pobres, mulheres e criança são submetidos a verdadeiros regimes escravocratas de trabalho nas mais diversas regiões do País; desde as mais industrializadas, como o Sul e Sudeste, às menos desenvolvidas, como Norte e Nordeste”. “O perfil do trabalho escravo contemporâneo iniciou a partir da “continuação da dominação, à qual permaneceu submetido o negro e, em geral, todos aqueles rurícolas sem maiores perspectivas, aliada à grande extensão territorial do país e à fragilidade das leis que regulavam as relações laborais dos campesinos.” “Na atualidade, a nova escravatura é exercida por latifundiários que desenvolvem uma agricultura obsoleta e arcaica e também por setores modernos da economia, tais como bancos, montadoras, multinacionais de veículos, dentre outras instituições. Podemos citar o caso do Bradesco S/A, a maior instituição bancária privada do país, onde foram descobertos exemplos de trabalho escravo voltado ao desmatamento e povoamento da Amazônia. E o caso da empresa de montagem de veículos Volkswagen do Brasil, proprietária da fazenda Vale do Rio Cristalino, localizada no sul do Pará, ondem utilizam trabalho escravo voltado à criação de gado com a mais alta tecnologia15”.
Evidentemente, “uma sociedade escravocrata” é totalmente incompatível com a configuração de um Estado Democrático de Direito. Não há democracia sem direitos humanos, tampouco direitos humanos sem democracia. O Estado Democrático de Direito é caracterizado pela existência de limites ao exercício do poder. São os direitos fundamentais da pessoa humana, como obstáculos do exercício do poder, que asseguram a dimensão democrática do Estado. Uma democracia real e substancial, e não meramente formal. Por Estado Democrático entende-se um estado constitucional, que nós advogados prestamos juramento de defender quando recebemos a carteira da OAB. Quando os próprios limites, os direitos sociais fundamentais são vistos como mercadorias, e como tal explicitamente descartáveis, tem-se como finado o Estado Democrático de Direito.
O tema da escravidão contemporânea está intrinsecamente relacionado com a dignidade da pessoa humana, como também com a democracia real. É tratado de forma tanto dissimulada, ainda como um tabu, não pela imensa vergonha de sua persistência, mas para encobertar o racismo estrutural da sociedade brasileira. Para tanto, erigiu-se no Brasil o mito da democracia racial, segundo o qual pretos e brancos convivem harmonicamente, desfrutando iguais oportunidades de existência, sem nenhuma interferência, nesse jogo de paridade social, das respectivas origens raciais ou étnicas. “O mito da democracia racial ainda é, nos dias de hoje, fonte de autoengano nacional16.”
Como anota o sociólogo Jessé de Sousa: “Pode-se falar de escravidão e depois retirar da consciência todos os seus efeitos reais e fazer de conta que somos continuação de uma sociedade não escravista. É como tornar secundário e invisível o que é principal e construir uma fantasia que servirá maravilhosamente não para conhecer o país e seus conflitos reais, mas, sim, para reproduzir todo tipo de privilégio escravista ainda que sob condições modernas17.”
Pode-se falar também que se trata de um costumeiro estratagema nacional o de deixar de enfrentar ou escamotear as questões sociais candentes, numa espécie de complexo de avestruz que inviabiliza uma autoanálise nacional, como diz com todas as letras Carlos Eduardo Araújo: “Nós, brasileiros, temos o vezo do não enfrentamento de questões historicamente cruciais e, talvez, por isso, necessárias, urgentes e incômodas. Esquivamos-nos de nos defrontar, por exemplo, com a grave questão da ditadura militar, por nós vivenciada entre os anos de 1964 a 1985. Ao contrário do que fizeram nossos vizinhos Argentina, Chile, Peru e Uruguai. Preferimos varrê-la para debaixo do tapete da história, impedindo uma necessária catarse coletiva, social, política e humana18.”
A necessidade de encarar de frente a questão da escravidão evoca a célebre advertência de Norberto Bobbio, em discurso proferido em homenagem ao vigésimo aniversário da Declaração Universal dos Direitos do Homem: “o problema grave de nosso tempo, com relação aos direitos do homem, não é mais o de fundamentá-los, mas sim o de protege-los”. “(…) Não se trata de saber quais e quantos são esses direitos, qual é a sua natureza e o seu fundamento, se são direitos naturais ou históricos, absolutos ou relativos, mas sim o modo mais seguro de garanti-los, para impedir que, apesar das solenes declarações, eles sejam continuamente violados”.
Como bem arremata Paulo Bonavides: “Sem a concretização dos direitos sociais não se poderá alcançar jamais a “sociedade livre, justa e solidária”, contemplada constitucionalmente como um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil”.
A concretização dos direitos fundamentais sociais trabalhistas exige uma atuação protagonista do Estado, a começar no combate ao trabalho escravo, como uma política de Estado e não de governo, e em todas as suas vertentes: Executivo, Legislativo e Judiciário, como também do Ministério Público. Em especial, uma fiscalização trabalhista organizada, eficaz e concertada nesse país de dimensões continentais, como a realizada pelo Grupo Especial de Fiscalização Móvel (GEFM), integrado por auditores-fiscais do Trabalho, membros do Ministério Público do Trabalho; delegados e agentes da Polícia Federal, Policiais Rodoviários Federais, membros da Procuradoria Geral da República e defensores Públicos da União. Como também uma atuação coletiva e coesa dos corpos intermediários da sociedade civil, dentre os quais, e fundamentalmente, das entidades sindicais.
O Brasil foi um dos primeiros países a reconhecer diante das Nações Unidas a persistência de formas contemporâneas de escravidão. O primeiro a criar uma política nacional efetiva de libertação de trabalhadores em 1995. Também o primeiro a lançar um plano integrado de combate ao crime em 2003 e a publicar, periodicamente, um cadastro com os infratores a parir do mesmo ano. Criou o primeiro pacto empresarial contra a escravidão em 2005. E implementou ações pioneiras de repressão e prevenção que se tornaram referência em todo o mundo.
Porém, as medidas adotadas pelo atual Governo Federal trilham em sentido diametralmente oposto ao da concretização dos direitos sociais e do combate ao trabalho escravo, notadamente: a extinção do Ministério do Trabalho; a redução do número de auditores fiscais do trabalho, atingindo um índice abaixo do recomendado pela OIT; e, mais recentemente, a ameaça de extinção da CONATRAE (Comissão Nacional Para a Erradicação do Trabalho Escravo), pelo Decreto n. 9.759, de 11 de abril de 2019, que prevê a extinção de diversos conselhos e comissões colegiados no âmbito do governo federal. A CONATRAE, criada em 2003, ligada ao extinto Ministério dos Direitos Humanos, composta por representantes do governo e da sociedade civil, dentre os quais: a OAB e a ABRAT (Associação Brasileira de Advogados Trabalhistas), é responsável pelo monitoramento dos casos de trabalho escravo no Brasil, bem como pela elaboração do Plano Nacional de Enfrentamento ao Trabalho Escravo, que apresenta medidas preventivas e repressivas a serem adotadas pelos diversos órgãos dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, pelo Ministério Público e entidades da sociedade civil brasileira.
Em seu parecer apresentado à Corte Interamericana de Direitos Humanos, na modalidade affidavit, nos autos do processo “Fazenda Brasil Verde versus Brasil”, Luís Antonio Camargo de Melo, aponta que falta, no Brasil, uma maior articulação para eliminar definitivamente todas as mazelas da escravidão. “Uma intervenção mais efetiva do Poder Público, por todas as suas instâncias e organismos, determinada, organizada, com vontade política; disponibilização de recursos orçamentários e financeiros; garantia de independência na atuação do todos os órgãos, em especial àqueles subordinados ao Poder Executivo; sensibilização dos agentes do Poder Legislativo e do Poder Judiciário. Ao mesmo tempo, as entidades mais representativas da sociedade civil organizada devem permanecer próximas dos agentes do Poder Público, cooperando, mas também vigiando, pois, as ONG’s, os sindicatos, e até mesmo entidades internacionais, como a OIT-Organização Internacional do Trabalho, são fundamentais em um processo de intervenção articulada.”
O término da chaga da escravidão no Brasil implica, necessariamente, no fortalecimento do Direito do Trabalho, direito das pessoas (jus cogens), reduto, por excelência, da democracia social, substancial. Com o advento do Direito do Trabalho que o trabalhador passou de objeto (mercadoria) a sujeito de direito (pessoa humana). O trabalho deve ser visto não apenas como meio de sobrevivência, mas como requisito de desenvolvimento pessoal e social, assim como de preservação da atividade econômica da empresa. Essa proteção dos direitos da personalidade requer a eliminação do trabalho degradante, a melhoria da qualidade de vida e do trabalho, bem como a equilibrada delimitação temporal das atividades laborais. O problema, no fundo, é que a preocupação com o bem viver, à qual faz parte também de uma convivência bem-sucedida, cede lugar cada vez mais a uma preocupação por sobreviver.
Notas
2 COMPARATO, Fabio Konder A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 2003.
3 GUNTHER Luiz Eduardor. O trabalho decente na perspectiva do Direito Internacional do Trabalho.
4 Expressão cunhada por José Cláudio de Brito Filho, em Trabalho escravo: caracterização jurídica. 2ª. ed. São Paulo. LTr. 2017.
5 ARRUDA Kátia Magalhães, “Trabalho forçado no Brasil: o difícil percurso entre o reconhecimento e a ruptura” – in Trabalho e Justiça Social Um Tributo a Mauricio Godinho Delgado, Daniela Muradas, Roberta Dantas de Melo Solange Barbosa de Castro Coura, Coordenadoras, São Paulo, Ltr. 2013, pág. 376.
7 Joaquim Nabuco. O Abolicionismo. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2003, pág. 27.
8 Gabriela Neves Delgado e Lívia Mendes Moreira Miraglia. 130 anos da Lei Áurea no Brasil: a regulamentação de uma representação simbólica de liberdade humana.
9 Celso Antonio Bandeira de Melo.Curso de Direito Administrativo, 12ª edição, Malheiros, 2000, p. 748.
10 Wilson Prudente apud José Cláudio de Brito Filho, em Trabalho escravo: caracterização jurídica. 2ª. ed.. São Paulo. LTr. 2017.
11 http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=3076256
12 Valena Jacob Chaves e Eduardo Correia Gouveia Filho. O trabalho escravo contemporâneo – dignidade e liberdade em Kant e Honneth. In Trabalho, castigo e escravidão: passado ou futuro? Benizete Ramos de Medeiros, Ellen Hazan, coordenadoras. JUTRA Ltr. 2017, pág. 86.
13 Arnaldo Sussekind, Segadas Viana e Délio Maranhão. Instituições de direito do Trabalho. 12ª Ed. – São Paulo : Ltr, 1991.
14 Conforme texto produzido em conjunto com os demais integrantes do Ministério Público do Trabalho que participaram da 103ª Conferência da OIT, em Genebra, em 2014 (Revista Direitos, Trabalho e Política Social; v.1, n.1, pp. 311/335; jul./dez. 2015).
15 Luciana Aparecida Lotto. Ação civil pública trabalhista contra o trabalho escravo no Brasil, 2 ed. LTr, 2015 págs. 31/32.
16 Carlos Eduardo Araújo. Escravidão, uma chaga ainda aberta. Site Justificando. 27.11.2018.
17 Jessé Souza. A elite do atraso. Rio de Janeiro. Leya 2017 pág. 40.
18 Carlos Eduardo Araújo. Escravidão, uma chaga ainda aberta. Site Justificando. 27.11.2018.
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