Por Silvio Essinger
Isolada em seu apartamento, em Copacabana, cantora lança gravação de ‘Juízo final’, samba de Nelson Cavaquinho, e a inédita ‘Negão negra’, um libelo contra o racismo no Brasil
‘O Brasil é o país mais racista que nós temos. A coisa aqui é braba, uma doença que não tem cura, uma situação absurda, nojenta. É a minha raça que estou vendo ser destruída, e é preciso dar um grito de basta”, diz Elza Soares, às vésperas de completar 90 anos de uma história marcada por sacudidas de poeira e voltas por cima.
Voz-símbolo na luta contra o racismo, o machismo e tantas outras persistentes covardias da vida brasileira, a cantora conta que sentiu na carne as mortes da menina Ágatha Félix (baleada em setembro passado quando voltava para casa com a mãe, no Complexo do Alemão) e do adolescente João Pedro Matos Pinto (alvejado por um tiro em maio, dentro de casa, no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo).
— Nos Estados Unidos, mataram um homem negro e o mundo veio abaixo. Aqui parece que é brincadeira. Rezo muito para que isso não chegue aos meus sobrinhos e meus netos — diz a intérprete de versos como “a carne mais barata do mercado é a carne negra”.
Aniversários vários
Elza conversou com O GLOBO por telefone, depois que a neta Vanessa atendeu à ligação. E foi logo avisando:
— Não sou muito apegada a aniversário, não. É o que eu digo sempre: esquece esse, outros virão.
Sua data de nascimento, controversa, já virou folclore. No livro “Elza” (2018), o biógrafo Zeca Camargo alertava: “Como aprendi nessa convivência, essa é uma questão menor — 23 de junho de 1930? 1931? 1935? A idade não importa.” Já a Deck, gravadora da cantora, esclarece em press release: “O aniversário da Elza é sempre comemorado em várias datas, sendo dia 22 de julho o dia do seu nascimento e 23 de junho a data que consta em seu documento quando foi emancipada. De qualquer forma, a data correta e sua idade são o que menos importa.”
Sendo assim, a partir da próxima terça-feira estão liberadas as comemorações dos (primeiros) 90 anos de Elza Soares. E a festa ganha trilha nova. No dia 26, ela lança uma nova versão de “Juízo final”, samba de Nelson Cavaquinho, em ritmo de rock industrial. Um mês depois, sai a inédita “Negão negra”, parceria de Flavio Renegado e Gabriel Moura, na qual Elza divide com Renegado duros versos sobre racismo, como “pra cada um que cai, choramos rios e mares/ mas nunca calaram as nossas vozes, milhares” (confira a íntegra da letra abaixo).
Ano passado, ela lançou pela Deck o álbum “Planeta fome”, o primeiro depois da celebrada dobradinha formada por “A mulher do fim do mundo” (2015) e “Deus é mulher” (2018), discos marcados por parcerias com jovens compositores da cena paulistana que foram sucesso de público e crítica.
— Mal eu fiz o disco e acontece tudo isso… O planeta está com fome! — diz. — Será que a Humanidade aprende alguma coisa depois desse castigo, dessa surra (da pandemia)? Tem que melhorar! Com todo mundo trancafiado dentro de casa, as praias vazias, não é possível que as pessoas não aprendam. Os professores do Universo nos deram uma lição muito boa como dever de casa.
Elza passa a quarentena em seu apartamento, em Copacabana.
— Tenho que dar graças a Deus porque estou em minha casa e não no hospital. Tô aí. O palco faz falta, o público faz falta, mas quando eu entro em casa, eu fico em casa. Estou aproveitando para descansar o corpo e a cabeça, porque, quando começo a trabalhar, não paro. Esse foi o tempo que Deus me deu para descansar.
Hora do ‘Juízo final’
Nada mais oportuno, ela diz, do que lançar “Juízo final” agora. Com o Brasil e o mundo atravessando “este período drástico”, cai bem cantar “o momento em que o bem vence o mal, uma música clara, além de muito bonita”.
— É disso que a gente precisa: que o sol volte a brilhar — espera a cantora, que foi bem próxima de Nelson Cavaquinho (1911-1986), poeta da dor imortalizado em sambas como “A flor e o espinho”, “Folhas secas” e “Notícia”. — Quando o Nelson tomava os pileques brabos, ele ia se esconder na minha casa. Ele dizia: “Vou chegar em casa, a nega não vai me deixar entrar, deixa eu ficar aqui…”
Enquanto o sol não volta, Elza trata de cuidar do corpo, ter cautela, não se aborrecer, manter a fé e rezar. Mas o palco não é a única saudade em tempos de isolamento por causa da pandemia de Covid-19:
— Você sabe do que eu sinto falta? Dos estudantes na rua. Eles fechavam tudo e acabavam com a bagunça. Hoje a gente não tem mais estudantes na rua, não tem mais ninguém na rua… Está todo mundo amedrontado.
E no momento em que se “fala de racismo com sede de falar”, ela canta no samba-trap “Negão negra”:
“Sempre foi luta/ sempre foi porrada/ contra o racismo estrutural/ barra pesada.”
Confira a letra da canção inédita ‘Negão, negra’, de Flavio Renegado e Gabriel Moura
Nunca foi fácil
Nunca será
Para povo preto
Do preconceito se libertar
Sempre foi luta
Sempre foi porrada
Contra o racismo estrutural
Barra pesada
Negão, negão, negão, negão
Negão, negão, negão, negão
Negra, negra, negra, negra
Negra, neeegraaa
Negão, negão, negão, negão
Negão, negão, negão, negão
Negra, negra, negra, negra
Negra, neeegraaa
Fala pro homem cordial e sua Falha engrenagem
Sou corpo livre, com amor, cor e Com coragem
Pra cada um que cai, choramos Rios e mares
Mas nunca calaram as nossas Vozes milhares
Sem gêneros ou preceitos, Humanos em nova fase
Wakanda é o meu mundo, Palmares o setor a base
Quem topa esse role da asas a liberdade
No feat filho do rei e a deusa Elza Soares
Todos os dias me levanto
Olho no espelho
Sempre me encanto
Com meu cabelo
E a cor da pele
Dos meus ancestrais
Todas as noites no quarto escuro
Peço a Deus e aos Orixás
Que a escravidão não volte
Nunca, nunca, nunca mais
Negão, negão, negão, negão
Negão, negão, negão, negão
Negra, negra, negra, negra
Negra, neeegraaa
Negão negão negão negão
Negão negão negão negão
Negra, negra, negra, negra
Negra, neeegraaa
Texto publicado originalmente no O Globo.
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