Por Bárbara Ferrito
Juíza trabalhista analisa como o direito agrava desigualdade de gênero e cobra pluralidade na magistratura
O Perfil Sociodemográfico dos Magistrados, publicado pelo Conselho Nacional de Justiça em 2018, mostrava que 38% dos juízes brasileiros eram mulheres e 18% eram negros (16,5% se declaravam pardos e só 1,6%, pretos). Eles tinham, em média, 47 anos. Mulher e negra, Bárbara Ferrito, hoje com 37, tornou-se juíza do trabalho aos 31. “Sabe quando você sente que achou o seu lugar?”, resumiu. Mas foi também na magistratura que ela começou a perceber vozes dissonantes dizendo-lhe o contrário. “Você está em outro mundo. Você é a exceção, você causa estranhamento, isso é muito desconfortável, e é um desconforto ao qual eu não estava acostumada. Me reconhecer negra, ver que eu sou vista de maneira diferente, veio com a toga.” No convívio com colegas negros, encontrou acolhimento e passou a entender a si mesma.
Diretora-executiva do Encontro Nacional de Juízas e Juízes Negros (Enajun), Ferrito considera o grupo um divisor de águas na sua trajetória, assim como o mestrado na UFRJ, onde também cursou a graduação. Sua dissertação debateria o assédio moral – até Ferrito se dar conta de que todos os seus exemplos tratavam de mulheres. Resolveu falar da desigualdade de gênero no mercado de trabalho a partir do conceito de pobreza de tempo: a sociedade, incluindo o Direito do Trabalho, determina papéis e tarefas que demandam tempo a certos grupos; por isso, a liberdade do que fazer com o tempo não é igual para todos. No caso das mulheres, a sobrecarga de tarefas domésticas tira delas a disponibilidade para um mercado de trabalho que cada vez mais demanda tempo do trabalhador. O estudo gerou o livro Direito e desigualdade: uma análise da discriminação das mulheres no mercado de trabalho a partir dos usos dos tempos, lançado neste ano.
Em depoimento a Hellen Guimarães
Fui criada no Méier, passando os fins de semana em Inhaúma, ambos na Zona Norte do Rio. Minha história é bem suburbana. Tenho quatro irmãos: três por parte de pai, que não moravam comigo, mas a gente se dá super bem, e uma irmã que cresceu comigo. É uma família grande. Morávamos eu, minha mãe e minha irmã, pois meu pai faleceu quando eu tinha sete anos. Ele era técnico desenhista, e minha mãe é professora.
Estudei no Colégio Pedro II. No 4º ano, num laboratório de ciências, a professora fez um júri simulado sobre automedicação. Quando a aula terminou, perguntei: “quem é que trabalha com isso?” Ela retrucou: “o que, com medicamento?” Respondi: “não, defendendo pontos de vista, lutando pelos fracos e oprimidos” etc. Ela disse que eram o advogado e o promotor. Decidi ser promotora, isso com oito anos de idade. Nunca mudei de ideia.
Assim que me formei, comecei a estudar para concurso. Fiquei três anos e meio estudando para entrar na Justiça do Trabalho. Fiz mais de dez concursos. Eu ganhava bem mal e usava meu dinheiro todo para pagar cursos e viagens para as provas. Fiz prova para Goiás, São Paulo, Mato Grosso… Viajei muito de ônibus, dormi em hotel de caminhoneiro e passei uns perrengues, mas tudo isso faz parte das aventuras quando você é concurseiro. A gente sempre dá um jeito, porque tinha que pagar as contas e continuar tentando, e o concurso para magistratura é caro.
Nunca tinha gostado de Direito do Trabalho, achava bobo. Eu queria penal, para defender os massacrados pelo sistema. Quando comecei a trabalhar com Direito do Trabalho, percebi que os verdadeiros fracos e oprimidos são os trabalhadores, coitados. No meio do caminho, as coisas me levaram para a magistratura. Quando fiz minha primeira audiência de instrução, quase chorei. Sabe quando você sente que encontrou o seu lugar, que é aquilo que você precisa fazer? Liguei pra minha mãe e disse: “mãe, estou no lugar certo, era mesmo para eu ser juíza.” E ela, sem nenhuma surpresa, respondeu: “Bárbara, eu falo isso desde que você tinha nove anos”.
Já tive muito advogado com dificuldade de reconhecer minha autoridade na mesa. Faço audiência de toga, o que não é comum no Rio, mas faço para marcar bem que eu sou a juíza na sala. É muito comum eu estar sentada na sala de audiência, na cadeira do juiz, de toga, e o advogado falar: “cadê o juiz?” Aquele corpo negro não é reconhecido como juiz, ainda que ele esteja na cadeira, com a roupa e com a postura de juiz.
Sou sistematicamente barrada na porta do tribunal. Se mudar a equipe de segurança, eles vão querer que eu mostre carteira, faça um monte de coisa que não é exigida dos meus colegas brancos. Aconteceu duas vezes de eu dar palestra e ser interpelada por estudantes negras jovens da faculdade de direito, e elas me falarem assim: “eu não sabia que a gente podia ser juíza. Eu nunca tinha visto uma juíza negra”. Isso, além de ser muito triste, recoloca a gente naquele lugar de exceção, de exótica, que causa estranhamento. Uma vez uma servidora me disse que eu não tinha cara de juíza. E é interessante porque é um pouco do conjunto, não é só a cor da pele, mas um pouco da postura, do linguajar, sou muito informal, falo gíria. Tento me controlar, mas é um pouco de quem eu sou, então não fico me penalizando. Mas sai um pouco da ideia da liturgia do cargo, do homem branco idoso formal.
O engajamento nos movimentos negro e feminista, para mim, é fundamental. O Enajun é um divisor de águas na minha vida, assim como o mestrado. Na minha infância no subúrbio, eu tinha amigos negros, brancos, pobres e outros com um pouco mais de condição financeira… era bem misturado. Quando você vai para a magistratura, é outro mundo. Você é a exceção, causa estranhamento, é muito desconfortável e é um desconforto ao qual eu não estava acostumada. Para mim, o “ser negro” veio com a toga. Me reconhecer negra, ver que eu sou vista de maneira diferente veio com a toga. Ter um grupo de juízas e juízes negros, para além da mobilização, que é extremamente necessária, pessoalmente foi muito importante. Tive companhia nesse descobrir-me negra, no meu letramento racial, que veio bem junto com o feminismo, num processo de reconhecer minhas vulnerabilidades.
Pautar essas questões, promover cursos nas escolas judiciais, mostrar incongruências da magistratura, a importância de ter pluralidade, tudo isso é gratificante. Quando eu comecei o mestrado, minha orientadora perguntou se eu não queria tratar do mercado de trabalho do negro e da mulher negra. Eu disse que era muito difícil para mim falar sobre negritude, era algo que doía muito ainda, isso em 2017. No ano seguinte, entrei no Enajun, comecei meu letramento racial e agora já consigo falar sobre essas coisas.
Passei no concurso para o Tribunal Regional do Trabalho aos 31 anos. Morei por seis meses no interior de Goiás até conseguir a transferência de volta para o Rio. Hoje moro em Niterói com meu marido e minha filha de 1 ano e 8 meses. Quando começou a pandemia, ela estava iniciando a introdução alimentar, com seis meses. E eu com trabalho, sem empregada, me senti meu próprio objeto de pesquisa (risos). Sou casada há onze anos. A gente consegue dividir tudo de forma razoavelmente igual. Não é uma divisão muito certinha, às vezes preciso fincar o pé para não fazer algumas coisas, mas, no geral, temos um equilíbrio. Fico bem fora da curva nesse sentido.
Percebo às vezes, não só na minha, mas na casa de amigos também, que a divisão nunca é natural. A gente tem que sentar, negociar, pedir atenção para as tarefas. Eu me cobro coisas que, às vezes, não dá para fazer. No meio da pandemia, trabalhando, com filha pequena, em introdução alimentar, a casa tinha que ser deixada de lado. Mas me doía o fato de ninguém conseguir fazer aquilo. A gente tem essa cobrança cultural. E a solução para reduzir essas desigualdades passa também por uma mudança de posturas culturais.
Meu livro é o resultado da minha dissertação de mestrado. Inicialmente, eu queria tratar de assédio moral. Minha orientadora perguntou o porquê e comecei a citar vários exemplos, mas percebi que todos envolviam mulheres. Percebi que minha temática era a questão feminina de gênero, e mudei meu objeto.
A primeira parte do livro trata de feminismo. Mesmo quando a gente está querendo pensar a mulher, a história do direito faz isso a partir de modelos masculinos. É importante pegar esse olhar feminista e trazer para o direito. Se você não tiver esse olhar que coloca a mulher no centro, não vai conseguir entender. Se você olhar para o assédio sexual como um problema apenas de violação à liberdade sexual, não vai conseguir entender que a grande questão do assédio sexual são relações de poder, a ideia de que a mulher é um objeto e que o corpo dela está disponível simplesmente por sua presença no ambiente de trabalho. Feminização da pobreza, seletividade das normas, enfim, há diversos conceitos que precisam ser lidos por essa lente.
A segunda parte trata do tempo. O mercado exige cada vez mais disponibilidade do trabalhador. A gente tem a sensação de que todo mundo tem o mesmo tempo. Mas, à medida que você tem obrigações impostas pela sociedade e elas demandam tempo, a liberdade que você tem para esse tempo não é a mesma que os outros têm. Se você tem a capacidade de impor obrigações sociais que demandem tempo a outros, você tem o poder de determinar o uso do tempo daquela pessoa. É uma forma de controle social. Se você tem uma cidade em que o Centro é rico e as periferias são pobres, todos os empregos estão no Centro, e o pobre tem que demorar 3 horas para chegar e voltar do trabalho, você está determinando que 6 horas do dia dele têm que ser gastas com transporte, enquanto a pessoa que está perto do Centro chega ao trabalho em 15 minutos.
A principal consequência disso, em termos de gênero, é a falta de disponibilidade da mulher para o mercado de trabalho. A ideia de pobreza de tempo veio da constatação de alguns economistas, na década de 1970, de que bem-estar e qualidade de vida não poderiam ser medidos em moeda. Para medir qualidade de vida, bem-estar, você precisa que as pessoas tenham tempo para coisas mínimas. A pandemia confirma e agrava desigualdades. Intensifica demandas de serviço doméstico, que é o principal fator de pobreza de tempo das mulheres. Esse tempo é tirado do trabalho produtivo. Isso gera discriminação, restrição do acesso a poucos cargos, precarização do trabalho, submissão a empregos informais ou precários. Temos hoje em dia, com a nova legislação trabalhista, um mercado de trabalho muito flexibilizado. As exigências do trabalho dominam os outros tempos e fazem com que, a todo tempo, você esteja pensando no trabalho. Logo, quem não tem tempo tem essa dificuldade: vai ser considerado um trabalhador menos dedicado, menos disponível, e isso afeta a mulher.
Na terceira parte, mostro como o direito, que pretende proteger contra a discriminação, também atua como tecnologia de gênero e é capaz de agravar essas desigualdades no mercado quando coloca papéis sociais nos gêneros. Quando você tem licença-maternidade de 120 dias e licença-paternidade de 5, você está dizendo que quem vai cuidar do bebê é a mãe. Nada impede que a mulher tire o leite e o homem dê a mamadeira, enfim, há vários arranjos possíveis que o direito não considera porque presume que quem tem que estar com o bebê é a mulher e não o homem. O nosso direito do trabalho ainda vê a mulher como alguém a ser tutelada, que precisa de uma proteção similar à de um menor incapaz.
A gente tem que esclarecer por que a participação das mulheres nesse tipo de arena é importante. Não é pra fazer de conta ou ficar bonitinho na foto a paridade de gênero. A importância de você ter múltiplas perspectivas… E aqui falo de mulher mas também de raça. Pensar nas múltiplas perspectivas, nos múltiplos interesses, permitir que qualquer indivíduo faça parte daquele grupo. É preciso superar a ideia de que partir de uma perspectiva de gênero e de raça fere o princípio da igualdade ou da imparcialidade. O texto não é neutro, a gente precisa superar isso. Pensar nele a partir de uma perspectiva não faz dele parcial, faz apenas mais justo.
Também é necessário pautar o letramento racial e feminista do Judiciário, fazer perceber que interpretar por perspectiva não é ser parcial, não é não ser jurídico, e sim reconhecer que a desigualdade na nossa sociedade não pode ser ignorada pelo direito, sob pena de ele ser um reprodutor dessa desigualdade. Pessoalmente, tenho visto que minha presença nesses lugares, por si só, já é muito importante para normalizar a força da mulher negra nos lugares de fala, de poder, de decisão. Minha filha vai crescer com essa ideia de que as mulheres negras têm os seus lugares, e ninguém vai poder dizer a ela que ela não pode ocupá-los, isso para ela não vai fazer o mínimo sentido. Só por refletir sobre essas questões, já vou dar a ela mais ferramentas para ela se proteger e perceber qual o lugar dela na sociedade, que é onde ela quiser estar.
A mudança no perfil da magistratura traz a sensação de um Judiciário mais democrático. Múltiplas perspectivas: sou uma mulher negra do subúrbio, tenho uma colega que é mulher negra e mora na Baixada, então você sai daquele eixo Flamengo-Leblon. Não quer dizer que não possa haver a perspectiva do Leblon, a gente só não quer que ela seja a única. Reconhecer que existem realidades para além da sua permite ser mais empático com elas, ainda que você não as conheça. Isso também favorece a sensibilidade do juiz.
Ser juíza pode ser um trabalho bem chato para quem não gosta. Meu grande feito não foi me tornar juíza, mas ser o que eu queria ser. A grande conquista profissional foi não permitir que os estereótipos de gênero e raça limitassem minhas possibilidades. Eu me permiti sonhar mais do que a sociedade sonharia para mim.
Artigo publicado originalmente na Revista Piauí.
1 Comentario
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Faggner Amaral
25/05/2021, 10:59Exemplos as demais estudantes de Direito e as meninas NEGRAS para se ter uma nova perspectiva de profissão.
ResponderPosso mencionar que a mesma é uma “BANDEIRANTE” no ser e estar em “lugares”, digamos pouco acolhedor a nossa etnia e os apuros que se passa dentro e fora dos tribunais.