É preciso atenção para notar que a expressão, cunhada por Umberto Eco, se manifesta na vida política atual; saiba ler os sinais e não se deixe enganar
Em uma de suas mais importantes conferências, proferida há mais de 30 anos, Umberto Eco defendia que a reprodução do fascismo italiano ao longo do tempo se devia ao fato de que ele não podia ser definido em uma palavra, ou em um conceito essencial.
Essa natureza difusa e imprecisa do fascismo é o que permite sua repetição oculta, responsável pelo que ele definiu como “fascismo eterno”. É preciso algum grau de conhecimento histórico e perspicácia de observador atento para notar de que forma esse fascismo eterno se manifesta na vida política atual. É preciso saber ler os sinais e não se deixar enganar.
Nos EUA, os sinais de que a ancestralidade fascista impregnou a política são bastante evidentes. O sinal mais claro disso talvez nem seja esta ou aquela ideia de Donald Trump, suas caras e bocas, suas medidas extremas, ou seus discursos de expansionismo territorial, que emulam, sem disfarce, a defesa do que os nazistas chamavam de “espaço vital”.
O sintoma mais dramático do escurecimento da democracia americana é a capitulação de setores de onde mais se esperaria algum tipo de reação. O juramento de lealdade vindo de universidades tradicionalmente contrárias ao autoritarismo representado por Trump, assim como a adesão pública de escritórios de advocacia e de setores da imprensa, mostram que não existe mais chance de sobrevivência para dissidentes —ou pelo menos poucos querem correr o risco de desagradar o líder supremo.
Foi um medo parecido que fez Norberto Bobbio jurar lealdade ao fascismo, embora fosse um conhecido antifascista, e integrante do grupo “Giustizia e Libertá”, liderado por Leone Ginzburg, que, ao contrário, se recusou ao juramento, perdendo o posto de professor na Universidade de Turim.
No Brasil, é preciso estar atento aos sinais. No último dia 6 de abril, Jair Bolsonaro reuniu apoiadores na avenida Paulista para protestar contra o STF e manifestar indignação pela acusação criminal que lhe atribui responsabilidade pelo crime de tentativa de golpe de Estado e abolição violenta do Estado democrático de Direito. É direito do ex-presidente manifestar-se publicamente contra seus acusadores. Isso faz parte do jogo democrático.
No evento, que contou com a presença de vários políticos e governadores, o coro geral foi em defesa da anistia, ou seja, a favor do esquecimento jurídico dos crimes cometidos pelos golpistas. Ainda que possamos não concordar, é preciso convir que o movimento em favor da anistia não é proibido, nem tampouco configura condescendência criminosa a golpistas. Portanto, até aqui, a manifestação daquele domingo poderia ser enquadrada em um ato plenamente legítimo dentro de uma democracia. No entanto, como nos alertava Umberto Eco, é preciso ler os sinais.
Pode ter passado despercebido para alguns, mas no ato público, Bolsonaro foi muito além de buscar apoio político à sua defesa no Supremo ou ao movimento da anistia. Em alto e bom som, fez questão de entoar o mesmo discurso golpista que o levou a se sentar no banco dos réus. Reiterou na prática delitiva, como se costuma dizer em jargão jurídico. Voltou a atacar as urnas, e acusou a eleição do atual presidente Lula de golpe contra a democracia, apoiado pelo Judiciário.
Ora, não precisa ser muito perspicaz para entender o recado. Se a eleição de Lula foi um golpe contra a democracia, a tentativa de apeá-lo do poder era legítima. É uma confissão. Mas não apenas uma confissão simples, é uma confissão qualificada: quando o réu admite a autoria, mas invoca um motivo legítimo para a prática do crime. Ou seja, além de confessar, Bolsonaro continua a defender o golpe. A anistia que pretendem não é o esquecimento do crime, mas somente das penas. O crime continua vivo em suas mentes e corações.
O mais grave é que Bolsonaro discursou sob o aplauso de uma plateia plena de políticos, entre eles vários governadores, alguns inclusive potenciais candidatos a presidente da República no ano que vem. Por um olhar pragmático, a presença destes governadores pode ser vista apenas como oportunismo político, e não adesão ao espírito golpista do ex-presidente. É possível, mas quem pode confiar?
Para o escritor italiano Antonio Scurati, o fascismo do século 21 se revela em letras claras e bastante legíveis em pensamentos, palavras, ações e omissões. É preciso ler os sinais.
Artigo publicado originalmnente na Folha de S.Paulo.
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