Por José Rogério Cruz e Tucci
Meu saudoso Pai, Rogério Lauria Tucci, dentre outras valiosas lições, ensinou-me que o Advogado jamais deve transigir com a violação de suas prerrogativas profissionais.
Dedico esse texto à memória de meu saudoso Pai, Rogério Lauria Tucci, que, dentre outras valiosas lições, ensinou-me que o Advogado jamais deve transigir com a violação de suas prerrogativas profissionais…
A incivilidade que exorna atualmente o ambiente forense foi destacada, de forma contundente, por Manuel Alceu Affonso Ferreira, em artigo que merece ser lido e que constitui importante repositório de memória àqueles que, como eu, recordam-se, com um certo saudosismo, das relações bem mais cordiais que marcavam o relacionamento entre os protagonistas da justiça. Invocando este passado, já remoto, Manuel Alceu enfatiza os tempos “em que o data venia não constituía sinal de fraqueza ou de rendição ao adversário; nos quais os advogados falavam em pé, pediam licença e protestavam respeitos, esmeravam-se na conjugação verbal, na pluralização e nas concordâncias; em que magistrados não encaravam como impertinentes, por isso assumindo fisionomias agressivas e carrancas belicosas, o causídico que buscava um urgente despacho ou, a propósito dessa urgência, tecia breve exposição presencial; a época em que inexistia a surpreendente categoria hoje formada pelos que, nos tribunais, ‘não recebem advogados’, dessa recusa se jactando; os julgamentos transparentes, com os seus votos abertamente proclamados sem o humilhante apelo à reles leitura (per saltum e geralmente inaudível…) de ementas nada esclarecedoras…” (Funeral da cordialidade, Revista da CAASP, p. 50-51).
No contexto de uma experiência jurídica, como a do Brasil, na qual o advogado exerce atividade indispensável à Administração da Justiça e é investido de função pública, dúvida não há de que juízes e advogados são inseridos moralmente, ainda que não materialmente, no mesmo plano axiológico. Desse modo – afirmava Calamandrei -, o juiz que falta ao respeito para com o advogado e, também, o advogado que não tem deferência para com o juiz ignoram que magistratura e advocacia obedecem à lei dos vasos comunicantes: não se pode baixar o nível de uma, sem que o nível da outra desça na mesma medida.
No âmbito de um cenário mais digital, é certo que os operadores do Direito – mesmo os mais antigos – vão se acostumando com as plataformas eletrônicas e com as novas regras que propiciam a participação do advogado na realização de inúmeros atos processuais a distância.
Observo, a propósito, que a operosa Associação dos Advogados de São Paulo, atualmente presidida pelo ilustre colega Renato Cury, vem prestando inestimável auxílio aos seus associados para inseri-los, tanto quanto possível, na dinâmica cotidiana de um mundo virtual, que, para muitos, descortina-se como absoluta novidade.
Passados alguns meses, quanto ao ambiente em que tenho atuado com mais frequência, vale dizer, nos domínios da Justiça Estadual de São Paulo, devo ressaltar, em primeiro lugar, o inequívoco empenho do nosso Tribunal de Justiça, sob a direção segura de seu eminente presidente, desembargador Geraldo Francisco Pinheiro Franco, cujos entusiasmo e esforço refletem-se certamente na consciência da grande maioria dos magistrados e dos serventuários.
Todavia – é sempre oportuno ressaltar -, que esse novo normal impõe alguns cuidados, uma vez que a falta de atenção nas sessões por videoconferência já revelou desde um advogado folgado interagindo com o tribunal numa rede de descanso, uma advogada fazendo sustentação oral num automóvel em movimento, um procurador de justiça numa situação escatológica, um magistrado dormindo, outro lixando as unhas em plena sessão do Superior Tribunal de Justiça e, ainda, um ministro dessa Corte de Justiça deixando-se mostrar de cueca!
Todo cuidado é pouco, a câmera não perdoa, registra tudo!
E acabou captando um episódio gravíssimo e inusitado, perante o qual não posso me calar, visto que as prerrogativas profissionais de um Colega – que não conheço – foram violentamente ofendidas. Tal ocorrência se verificou durante uma sessão, ao que parece, nesta última semana do mês de outubro, da 8ª câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo.
Pelo que a gravação evidencia, o Doutor Vinícius, devidamente inscrito para fazer sustentação oral num habeas corpus, após o intervalo para o almoço, ingressou na respectiva sala virtual, aguardando o momento de sua intervenção.
Antes do início da retomada dos trabalhos, mas com a câmera aberta, a relatora e outro desembargador, também integrante da turma julgadora, teceram comentários pejorativos acerca dos antecedentes do paciente em favor de quem o Advogado iria sustentar.
Diante do ocorrido – circunstância deveras inusitada -, o Advogado corajoso, com fundamento no artigo 7º, incisos X e XI, do Estatuto da Advocacia, requereu a palavra pela ordem para intervir, protestando, com respeito, pelo inequívoco prejulgamento da causa na qual proferiria sustentação oral.
Antes de concluir o seu raciocínio, o desembargador presidente, de forma absolutamente indelicada, determinou que o Advogado se trajasse adequadamente, o que foi feito incontinenti, ao vestir a sua beca. Desculpou-se pelo fato de ainda não ter sido apregoado o seu habeas corpus…
Continuou o Advogado, argumentando que não iria mais efetivar a sustentação, uma vez que, diante das considerações prévias abertamente expostas pelos integrantes da respectiva turma julgadora, despontava notória a suspeição destes.
No entanto, de modo ríspido e arbitrário o presidente da 8ª câmara de Direito Criminal passou a tecer uma série de advertências, absolutamente inconsistentes, ao corajoso Advogado. A rigor, o desembargador tentou inverter os papéis…
Em primeiro lugar, com uma atitude incondizente com a urbanidade que deve exornar a atuação de qualquer magistrado, passou a afirmar que o “Advogado estava ouvindo conversa de outras pessoas de modo indevido“. Disse mais, que o diálogo entre “os desembargadores era extra autos“, e que ele Advogado, a despeito do que ouviu, fizera “um pré-julgamento“.
Literalmente, asseverou o presidente da sessão, ainda em tom grosseiro, que o Advogado fizera “coisa errada, ouvindo conversa dos outros, extra autos“; que iria “comunicar à OAB (que ele Advogado) estava escutando conversa que não tinha que ouvir, que não lhe dizia respeito; o senhor não foi delicado, escutou conversa de outras pessoas, faltou com o respeito“. E na altercação, arrematou: “tenho direito de entender que o senhor foi indelicado” e, por fim, em tom de intimidação, “será comunicada a OAB a sua indelicadeza“.
Na verdade, permito-me dizer que o Conselho Nacional de Justiça é que deve ser comunicado da arbitrariedade, de enorme obviedade, cometida pelo desembargador presidente!
A propósito, a minha experiência tem revelado, ao longo do tempo, que esse tipo de comportamento exacerbado de alguns magistrados só se mostra contra advogados mais jovens e, convenhamos, sem serem muito conhecidos! Raramente, a prepotência é constatada contra advogados de nomeada…
Daí, o meu desejo de congratular o Doutor Vinícius, não apenas pela coragem, mas, sobretudo, pela consciência de que o Advogado não pode, jamais, transigir com as suas respectivas prerrogativas profissionais!
Não é difícil inferir que os desembargadores protagonistas desse lamentável périplo afrontaram, quando nada, o disposto no artigo 35, inciso IV, da Lei Orgânica da Magistratura, dado o tratamento descortês e ameaçador dirigido ao aludido Advogado.
Ademais, o diálogo prévio estabelecido, de forma clara, entre os integrantes da turma julgadora, evidencia notório prejulgamento, que compromete a imparcialidade. Bem é ver que a disciplina constitucional da magistratura descreve um rol de privilégios para assegurar a independência dos juízes, que é pressuposto necessário para que se possa alcançar a imparcialidade (art. 95 CF).
Deturpada a garantia de imparcialidade, de forma clara, como se denota do infausto episódio, o Advogado, Doutor Vinícius, agiu corretamente, ao enfatizar que não mais havia condição para sustentar oralmente, diante de um simulacro de julgamento! Julgamento, na verdade, já havia ocorrido na conversa prévia, aberta a quem quisesse ouvir…
Diante desse cenário, invoco, para concluir, Ruy Barbosa, ao responder à consulta de Evaristo de Moraes, naquele célebre texto – Dever do Advogado: a imparcialidade dos juízes, pela qual a honra da nossa profissão tem o mandato geral de zelar, cumpre que, dentre a nossa classe, um ministro da lei se erga, para estender o seu escudo sobre o acusado.
Foi exatamente o que fez o caríssimo Doutor Vinícius, dando formidável exemplo a todos nós Advogados!
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José Rogério Cruz e Tucci é professor titular Sênior da Faculdade de Direito da USP. Advogado.
Publicado no Migalhas.
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